No Dia Internacional do Meio Ambiente do ano em que a COP30 acontecerá no Brasil, há muito a ser dito. Em termos gerais, diante das evidências cotidianas e científicas da existência de uma crise climática e socioambiental que impacta diretamente a vida humana e não humana, perguntamo-nos: como viveremos daqui por diante?

A reflexão gera ansiedade, mas também mobiliza pesquisadores e pesquisadoras de diversas áreas do conhecimento na busca por soluções. A ciência ética e propositiva dá ao tema outra entonação: 

Que novos mundos criaremos para nos adaptarmos e mitigarmos a crise climática?

Na lição do ambientalista indiano Ashish Kothari e de outros intelectuais contemporâneos, é possível criar mundos sustentáveis, compatíveis com a crise socioambiental global, através de alternativas pós-capitalistas situadas; alternativas essas que conformam um conceito denominado “pluriversos”. 

Pluriverso é o termo que designa a coexistência de múltiplos mundos, saberes, cosmovisões e modos de vida que desafiam a ideia hegemônica de desenvolvimento único, linear e ocidental. 

Embora o conceito seja novo, ele se volta ao passado para valorizar os saberes ancestrais, a diversidade epistêmica e cultural, e reconhecer que há muitas formas legítimas de viver e se relacionar com a natureza.

Enraizado em perspectivas decoloniais, indígenas, ecofeministas e de justiça socioambiental, propõe alternativas ao modelo ainda dominante de globalização e progresso que, sabidamente, é incompatível com a permanência da vida na Terra. 

Afinal, o início e o fim de tudo se dá nos corpos femininos

No livro “Carta à Terra: e a Terra responde”, a economista francesa Geneviève Azam escreve ao corpo celeste: “se a mudança climática é certa, se a rápida redução de seres vivos também é certa, se uma parte do futuro já foi hipotecada por danos irreversíveis, resta uma parte do desconhecido em que reside uma esperança. Vejo simultaneamente tempos sombrios e a explosão de germes fecundos”.

Apeguemo-nos então, a esses germes fecundos na tentativa de proliferar. Para isso, sugiro ponderarmos junt@s sobre um pluriverso elementar: os ecofeminismos.

Cada vez mais populares, os ecofeminismos não são só uma teoria, mas também um conjunto de práticas; uma perspectiva através da qual a relação entre as categorias mulheres e natureza é estabelecida a partir da compreensão de que diferentes formas de dominação, exploração e opressão direcionadas a elas estão interconectadas, e retroalimentam-se.

EcofeminismoS, porque essa é uma perspectiva plural

O termo “ecofeminismo” foi usado pela primeira vez pela ambientalista francesa Françoise d’Eaubonne – em 1974, mas surgiu no bojo de uma série de movimentos sociais no fim dos anos 70 e início dos 80. Desde então, o mundo transformou-se.

O acidente nuclear de Chernobil (1986), a queda das Torres Gêmeas (2001), a pandemia de COVID-19 (2019), a globalização e a emergência climática, são alguns exemplos de fatos que propulsionaram mudanças. As ameaças inicialmente identificadas pelo ecofeminismo tornaram-se mais profundas e complexas, e o movimento se desdobrou em uma série de manifestos, pesquisas, atos e apoiadores.

Os ecofeminismos hoje conformam um movimento não homogêneo e complexo, com diferentes vertentes (que por vezes se sobrepõem) e tensões internas, que abrangem estudos inter e transdisciplinares feministas, ambientalistas e animalistas, desenvolvidos por autores e autoras de diferentes etnias e nacionalidades. 

Há uma relação estrutural entre a exploração das mulheres, a exploração da natureza e as dinâmicas do capitalismo, do patriarcado e do colonialismo.

Para a filósofa indiana Vandana Shiva e a socióloga alemã Maria Mies, todos os ecofeminismos conectam a luta feminista à luta ecológica e partem desse mesmo princípio, a partir do qual desencadeiam-se formas de opressão não acidentais, porque fazem parte de uma lógica que vê tanto a natureza quanto os corpos das mulheres (especialmente as do Sul Global) como recursos a serem explorados.

No campo jurídico, as concepções ecofeministas suleiam uma atuação que vai além da normatividade tradicional, tensionando os limites do positivismo hegemônico para abrir espaço à justiça socioambiental. A própria construção do Direito reflete uma racionalidade patriarcal, colonial e extrativista que persiste, e é excetuada, vez ou outra, por uma abordagem jurídica decolonial – na tentativa de posicionar o Direito como instrumento efetivo de mediação de conflitos socioambientais, portanto, como instrumento de realização de justiça.

Assim, a trabalhar pela ciência ética e propositiva, importa esclarecer que, na prática, as ideias ecofeministas (entre outros pluriversos) podem ser refletidas de diferentes formas no Direito: (i) a partir de pesquisas jurídicas decoloniais – que reconhecem e valorizam cosmovisões distintas, e são situadas; (ii) em modelos de governança e políticas públicas que assegurem a participação feminina nas decisões socioambientais; (iii) na construção de marcos regulatórios que considerem a economia do cuidado; (iv) com a inclusão de cláusulas socioambientais em contratos empresariais e cadeias de suprimento, a fim de que a sustentabilidade inclua dimensões de gênero, entre diversas outras possibilidades.

“Eu não sou submissa!”

Finalmente, mas ainda quanto às acepções práticas dos ecofeminismos, destaque-se que a relação entre a opressão das mulheres e da natureza se revelou de forma contundente na recente audiência da Ministra Marina Silva na Comissão de Infraestrutura do Senado.

Nascida em uma comunidade ribeirinha no seringal Bagaço, no Acre, Marina Silva carrega em sua trajetória as marcas de uma cosmovisão amazônica profundamente enraizada na interdependência entre seres humanos e natureza. Filha de seringueiros, analfabeta até os 16 anos e sobrevivente de doenças negligenciadas como hepatite, malária e contaminações por metais pesados, sua vida traduz as desigualdades históricas impostas aos corpos racializados, empobrecidos e femininos do Sul Global.

Sua formação política se dá na luta dos povos da floresta, ao lado de Chico Mendes, articulando resistência contra o extrativismo predatório, o colonialismo e as violências que atingem tanto os territórios quanto os corpos de mulheres, indígenas, quilombolas e habitantes da Amazônia.

Ao tentar constranger a ministra, os parlamentares demonstraram misoginia e também desprezo pelo meio ambiente, pela emergência climática e por tudo que Marina representa e defende. Nesse contexto, no Dia Internacional do Meio Ambiente de 2025, às portas da realização da maior conferência mundial sobre o tema no Brasil, chegamos à realidade posta:

Não haverá sustentabilidade no Brasil enquanto uma ministra do meio ambiente for alvo de misoginia e violência institucional no Congresso Nacional.

Afinal, a erradicação da violência de gênero na política e em todos os espaços de poder é condição basilar para o enfrentamento às mudanças climáticas, assim como o resgate e a visibilização dos saberes femininos e comunitários.

O machismo estrutural impacta diretamente a crise climática, e isso é uma constatação respaldada por inúmeros dados, pesquisas e análises: mulheres são desproporcionalmente impactadas pelas mudanças climáticas e sua participação é essencial para encontrar soluções de mitigação e adaptação.

Em última análise, desde o período da inquisição, a busca das mulheres por equidade de gênero e pelo reencantamento do mundo tem sido brutalmente tolhida, ainda hoje, na tentativa de criar pluriversos e novos mundos sustentáveis, mulheres são perseguidas e mortas.

Feitas essas considerações, no intuito de acabar em bons termos, outra citação de Geneviève, extraída de sua correspondência à Terra: 

“É hora de terminar esta carta. Escrever para você fortaleceu minhas intuições, minhas convicções, um desejo de agir e resistir sem demora. Que ela inspire aquelas e aqueles que ainda estão hesitantes ou oprimidos pela angústia, pela aflição por este mundo, pela vergonha ante o destino que te espera. Tua presença inspira alegria tingida de medo e mistério. Tua proximidade encanta e anima. Você nos dá a medida: temos que ajustar nossa raiva à tua”.

Para saber mais:

AZAM, Geneviève. Carta à Terra: e a Terra responde. Prefácio de Ailton Krenak. Tradução de Adriana Lisboa. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2022.

EAUBONNE, Françoise d’. Le Féminisme ou la Mort. Paris: Pierre Horay, 1974.

KOTHARI, Ashish; SALLEH, Ariel; ESCOBAR, Arturo; DEMARIA, Federico; ACOSTA, Alberto (orgs.). Pluriverso: dicionário do pós-desenvolvimento. Tradução de Isabella Victoria Eleonora. São Paulo: Elefante, 2021.

SHIVA, Vandana; MIES, Maria. Ecofeminismo. Belo Horizonte: Luas Editora, 2021.

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  • Luciana Ricci Salomoni

    Advogada e pesquisadora. Sócia-fundadora da Ricci Salomoni Sociedade de Advogados (RSLaw). Mestra em Meio Ambiente e Des...

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