Três anos depois da abertura da investigação, jornalista relembra as tensões geradas com a cobertura do episódio que contribuiu para lançamento de campanha sobre o tema

 

A passagem do Dia Internacional da Mulher em 2016 foi o ponto de partida para pensar uma cobertura especial no Expressão Universitária, jornal mensal do Sindicato dos Servidores Públicos do Ensino Superior de Blumenau (SINSEPES). Assim, mais de um mês antes da data, com a preciosa ajuda do Centro de Memória Universitária (CMU) e da Divisão de Gestão de Pessoas (DGDP) da Universidade Regional de Blumenau (FURB), comecei a apuração e o levantamento de dados que resultou na edição temática em março daquele ano[2].

A intenção inicial era mostrar a participação das mulheres na universidade e desnaturalizar suas ausências nos cargos de chefia, com ênfase para a baixa representatividade. O avanço na investigação reforçou a invisibilidade histórica das mulheres nos espaços de poder na universidade, justamente lugar que deveria conviver com pluralidade e igualdade. Não é uma exclusividade da FURB, mas me atenho aqui a este caso específico por razões explicadas adiante.

A reportagem especial de 8 de março não foi constituída apenas a partir da ocupação das mulheres nos cargos de alto escalão (vice-reitoria e pró-reitorias)[3], mas também de um tema ainda muito recorrente e pouco tratado: as denúncias de assédio sofrido por alunas da FURB. Esse eixo apareceu a partir da demanda das estudantes. Inicialmente, a pretensão era mostrar a atuação do coletivo feminista dentro da instituição. Não tinha conhecimento das denúncias quando marquei a conversa com elas. O assunto apareceu logo no início da conversa pessoalmente.

Registrei o que foi me relatado: O coletivo feminista recebeu denúncias de assédio por parte de professores contra alunas na FURB. Os casos foram levados para os departamentos, mas não obtiveram o tratamento esperado, de acordo com as estudantes. Embora tenha se tornado capa do jornal, diante da necessidade de ilustrar a reportagem, não foi previsto maior destaque para tais denúncias naquela edição. Assim, o tema em questão recebeu apenas um único parágrafo (!) da reportagem de três páginas. Segui o planejamento inicial, considerando que pudéssemos abordar o assunto em profundidade, talvez na edição seguinte – adotando prática recorrente no jornalismo.

O jornalista Luiz Guilherme Antonello, então recém-chegado ao SINSEPES como estagiário do curso de Jornalismo, acompanhou a entrevista que fiz com as integrantes do grupo, sem o uso do gravador, apenas do bloco de anotações. Ele acabou se tornando testemunha do caso: ouviu as respostas das entrevistadas, confirmando posteriormente a veracidade do texto publicado.

A repercussão do jornal foi estrondosa. Na capa, junto com o lançamento da campanha salarial dos servidores, uma foto colorida em destaque mostrava as duas estudantes segurando um cartaz com os seguintes dizeres – escrito por elas durante a reportagem: “Me dar aulas não te dá o direito de dar em cima de mim”, em direta referência ao tipo de conduta que condenam.

Pressão e censura

Mal iniciou a distribuição do jornal no campus da universidade, apareceram questionadores do tema, mesmo que nenhum nome de professor ou qualquer outro funcionário tenha sido citado. Foi um escândalo na instituição. Não demoraram a surgir acusações, ameaças e questionamentos sobre o conteúdo da denúncia das estudantes. Houve também reações desproporcionais por parte de professores que se diziam sentidos e altamente ofendidos com a reportagem e passaram a ameaçar tanto quem pesquisou e escreveu as denúncias, como o próprio jornal e o sindicato responsável pela publicação.

Foram dias de ânimos exaltados na universidade. O tema integrou a pauta de uma reunião do Conselho Universitário (CONSUNI) – órgão máximo de deliberação dos assuntos de ordem acadêmica, administrativa e financeira envolvendo a FURB. Foi apresentado como informes da Reitoria, um espaço usado pela gestão para informar assuntos relevantes. Um dos temores era com o impacto negativo da publicação e suas possíveis consequências para a universidade.

Novos casos de denúncias em diferentes departamentos se espalharam. Assim como os questionamentos. Lembro que alguns professores chegaram a afirmar que minha militância, na condição de feminista, estava se sobrepondo ao profissionalismo, como jornalista, sugerindo que minha abordagem foi enviesada, como se fosse possível uma atuação totalmente “neutra” e “isenta” em qualquer cobertura. Ou como se denúncias de assédio não devessem ser investigadas pela universidade, pois isso era coisa de “jornalista feminista” ou militante.

Foi curioso ver que professores não se sentiram constrangidos em aparecer pessoalmente se dizendo atingidos; chegando até a questionar uma entrevistada sobre a veracidade das informações repassadas. Atuando no jornalismo desde 2001, jamais tinha vivenciado situação tão delicada no ambiente profissional.

Mesmo sem a nomeação de qualquer professor, a direção do sindicato decidiu recolher os exemplares do jornal de circulação, pressionada que foi. Era como se o que havia publicado estivesse equivocado ou fosse uma inverdade, embora não existissem erros. Tanto que abrimos espaço no jornal para quem se sentiu incomodado se manifestar na edição seguinte e não houve quem fizesse uso da publicação com essa finalidade.

Foram dias difíceis e de muito incômodo decorrente desta reportagem. Ver jornais recolhidos em março de 2016 e impedidos de circulação me causou temor e demonstrou como ainda não se discute suficientemente os assédios na universidade, o quanto ainda é necessário avançar nesse debate.

 Da polêmica à advertência

Agora, quase três anos depois, em 31 de janeiro de 2019, no finalizar do expediente como reitor da FURB – depois de dois mandatos, desde 2010 – o professor João Natel Pollonio Machado deliberou finalmente o desfecho da Comissão do Processo Administrativo Disciplinar, formada para averiguar os casos denunciados: dois professores foram punidos com advertência (indicando que provável reincidência poderá acarretar em consequência mais grave).

O resultado deliberado pelo reitor, com a advertência a dois docentes efetivos, foi feito com base na Lei Complementar do Município de Blumenau nº 660, de 2007, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos municipais. Antes de seguir as conclusões da Comissão do Processo Disciplinar em advertir os professores, o reitor havia procurado compreender melhor os casos de assédio, falava da possibilidade de instituir um serviço de atendimento às vítimas na universidade, uma espécie de ouvidoria. Ele explicou que apesar da portaria inicial ter tipificado a suposta infração como assédio sexual, as oitivas das depoentes não foram conclusivas nessa tipificação. A Comissão classificou-a como “conduta não condizente com a função de servidor público”.

Cada tipificação de infração corresponde – depois do processo findo, e se for o caso de confirmação – a uma penalidade. Nos casos em questão, as penalidades foram as advertências aplicadas. Estas sanções são anotadas na ficha funcional dos servidores, e caso haja reincidência, explica o professor, há agravamento das penas.

Impulsionada pelos desdobramentos internos na universidade, uma campanha lançada pela FURB e apresentada às demais Instituições de Ensino Superior (IES) do Sistema ACAFE este ano chama a atenção para a importância de denunciar os casos de assédio na universidade. “Por isso, lançamos uma campanha para que, reconheçamos que falar, discutir, educar, investigar, punir (quando for o caso) passe a ser uma realidade, algo como criar uma cultura sobre isso”, destacou o professor Natel, para quem “a FURB colocou como necessário discutir, educar, coibir e punir quaisquer formas de assédio”.

Casos novos já foram encaminhados para apuração. As decisões publicadas em portaria foram resoluções de final de uma gestão. Um ato simbólico. De todo modo, marcam um encaminhamento nesses tempos de conservadorismo e ameaça de direitos, especialmente às mulheres.

Um dos avanços que ainda podem ser obtidos é com o debate em torno da criação de um protocolo, um regramento público para evitar novos casos e para saber as maneiras de tratá-los quando ocorrerem.

Embora algumas opiniões possam apontar como ainda um ato bastante tímido e singelo a advertência (mas com o registro do nome dos professores divulgado publicamente), o agora ex-reitor João Natel, ao transmitir cargo mais elevado da universidade a uma mulher, seguiu o parecer da Comissão em advertir os professores. É importante ressaltar a necessidade das universidades criarem mecanismos de ouvidoria e denúncias de estudantes, funcionários/técnicos e demais membros do corpo universitário.

Como qualquer local de trabalho, o assédio não deve ser admitido no ambiente universitário. Resulta sempre de abuso de poder em relações assimétricas. E há outros casos semelhantes em universidades catarinenses que precisam receber a devida atenção. Quem sabe o tratamento dado pela FURB seja apenas um pequeno ato inicial. Ao se dar advertência aos dois professores, a universidade reconheceu que houve má conduta, não esperada dos docentes. O episódio serviu para mostrar que não podemos negligenciar esses casos e que o processo relacional tem também seus limites.

 

O caminho das mulheres na ocupação dos cargos de alto escalão da FURB

 

O momento em que as estudantes têm tomado coragem para a difícil decisão de denunciar um assédio coincide com a chegada, mesmo que demorada, da conquista de mais mulheres à frente da gestão universitária. A equipe completa da nova gestão que recém tomou posse com a reitora Márcia Cristina Sardá Espíndola é composta por 12 mulheres e 15 homens.

Em 2016, com 52 anos de fundação, a primeira universidade do interior de Santa Catarina registrava ao longo de sua história apenas sete mulheres tendo ocupado cargos de alto escalão na sua administração.

O diagnóstico era impactante quando se percebia o total apagamento delas ao longo da trajetória da instituição: as mulheres só começaram a ocupar cargos de mais poder na esfera universitária apenas a partir de 1984, ou seja: 20 anos após a fundação da entidade.

Ainda que as estatísticas dialogassem com a cultura de submissão imposta às mulheres e dificuldade por muito tempo de acesso à educação, havia um dado ainda mais alarmante: Em mais de meio século de trajetória, a universidade reunia 11 reitores, mas ainda não tinha uma mulher à frente de seu comando – feito alcançado somente na última eleição, com a vitória da professora Márcia, que apostou nesta bandeira durante a campanha e tomou posse na noite de quinta-feira, dia 31 de janeiro. Antes disso, as mulheres tinham ocupado o cargo apenas interinamente. As professoras Lúcia Sevegnani e Griseldes Fredel Boos substituíram os reitores em sua falta ou impedimento).

Dados da Divisão de Gestão e Desenvolvimento e Pessoas (DGDP) e do Centro de Memória Universitária (CMU) indicavam apenas seis mulheres[4] nesse cargo desde 1964. No registro, uma única vice-reitora: a professora Griseldes Fredel Boos. A realidade não diferia das outras instituições do sistema ACAFE. Entre as 16 instituições da Associação Catarinense das Fundações Educacionais então, apenas três tinham mulheres como reitoras – a Universidade do Contestado (UnC), a Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE) e o Centro Universitário Municipal de São José (USJ).

Na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pela primeira vez desde a sua fundação em 1960, uma mulher havia assumido a reitoria em 2012, com as professoras Roselane Neckel e Lúcia Helena M. Pacheco. A presença das mulheres nas administrações centrais das universidades tem acontecido aos poucos e timidamente. Muitas ainda não tiveram essa chance, como é o caso da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC) que ainda não teve à frente uma mulher como reitora, por exemplo. A UDESC é também uma instituição que parece necessitar um maior debate sobre assédio, como aponta o caso de denúncia amplamente repercutido na imprensa.

Ainda que a presença de uma mulher no comando não seja por si só garantia de comprometimento com as pautas ligadas à igualdade de gênero, há de se reconhecer a importância simbólica da ocupação desses espaços, especialmente como inspiração e quebra de paradigmas.

A percepção de que a chegada das mulheres em lugares de poder da universidade ajudará na criação de regramentos para lidar com assédio e, por outro lado, a criar uma prática que permita gerações perceberem que as mulheres também podem assumir cargos de chefia, poder e administração ao reconhecer como um direito delas, talvez possa contribuir num rebaixamento de casos de assédios, seja vindo de colegas, de professores e funcionários. Esses temas não devem ser evitados nas universidades, sejam essas instituições geridas por responsáveis homens ou mulheres.

Quanto à FURB, em março de 2016, na entrevista que me concedeu para a reportagem citada, a hoje reitora Márcia Espíndola, citando a escritora nigeriana e ativista pró feminismo Chimamanda Ngozi Adichie, dizia ser feminista e a favor das lutas pela igualdade de gênero. Na sua posse semana passada no Teatro Carlos Gomes, ela reforçou a importância histórica e a responsabilidade de uma mulher assumir o comando da instituição depois de 54 anos. Que o monitoramento dos casos de assédio seja levado adiante pela atual gestão.

*Magali Moser é jornalista, doutoranda em Jornalismo na UFSC e bolsista Fapesc

[1] Agradeço a André Souza Martinello, Caroline Schramm e Luciana Butzke, leitores primeiros desse texto e incentivadores permanentes: Gratidão profunda! Agradeço ainda a Marcela Cornelli, pela presença, confiança e apoio. E ainda aos demais que se dispuseram a ler antes da publicação.

[2] A reportagem foi publicada nas páginas 8, 9 e 10 da edição de março de 2016 no jornal Expressão Universitária, do SINSEPES. Está disponível para consulta no Centro de Memória Universitária da FURB. Pode ser consultada online aqui (ano VI – edição número 70) – http://bu.furb.br/CMU/site/index.php/acervo-jornais

[3] Destaque ainda para as duas únicas mulheres que ocupavam a direção de centros universitários na FURB àquele momento – Márcia Cristina Sardá Espindola, a atual reitora, que estava no comando do Centro de Ciências Tecnológicas (CCT), e Rita Buzzi Rausch, no Centro de Ciências da Educação, Artes e Letras (CCEAL).

[4] Os primeiros 20 anos da FURB, relembrando dados da reportagem publicada à época, não contaram com a participação de mulheres em cargos de destaque na liderança. Desde a criação da FURB, em 1964, até o ano de 1984 nenhuma mulher havia ocupado os cargos da alta gestão. A primeira vez que isso aconteceu foi em 1984, com a professora Hella Altenburg, no comando da Superintendência de Ensino. Em 1986, Gertrudes Knihs de Medeiros foi nomeada Superintendente de Pesquisa e Desenvolvimento. De 1994 a 2002, a Pró-Reitoria de Ensino de Graduação teve à frente a professora Marli Maria Schramm. De 2002 a 2005, a pró-reitora de Extensão e Relações Comunitárias foi a professora Lúcia Sevegnani. Em seguida, de 2006 a 2010, a professora Sônia Regina de Andrade assumiu a como pró-reitora de Ensino de Graduação. De 7 de julho de 2013, a 01 de junho de 2015, a professora Maria José Carvalho de Souza Domingues esteve à frente da Pró- -Reitoria de Ensino de Graduação, Ensino Médio e Profissionalizante.

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