Alimentos oferecidos aos orixás são gestos de amor à coletividade

Quando Camila Spolon foi a um terreiro pela primeira vez, era festa de Ogum, com direito a muita cerveja, carne e feijoada. Ela, que é de família católica, ficou encantada ao se deparar com um ritual tão pautado na coletividade. “Talvez a festa de Ogum seja uma das mais espetaculares, justamente por a feijoada ser um prato tão popular. Eu fiquei muito surpresa com aquilo e comecei a estudar a feijoada, foi minha porta de entrada na pesquisa”, relembra. Hoje a historiadora é umbandista e há quatro anos se dedica à comida de Santo.

Durante sua imersão, ela descobriu que na cultura de terreiro existe outra maneira de se ver o mundo, menos individual e mais coletiva, e isso se reflete na culinária. “Entre os primeiros assentamentos que se faz quando o terreiro é iniciado, está o da cozinha”, conta a pesquisadora. “Eu costumo dizer que para o europeu, um lugar importante dentro de uma construção é a sala de estar, onde se reúnem as pessoas, e numa ideologia afrocentrada a cozinha é onde se alimentam as memórias e onde se alimenta a comunidade.”

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Imagem: Arquivo pessoal Mãe Kátia D’Omolu.

A quituteira candomblecista Isabel Cristina Ribeiro Rosa, autora do livro “Culinária afro-brasileira: sabores ancestrais”, acrescenta que comunidades de terreiro como a dela alimentam de 50 a 100 pessoas, ou seja, ninguém passa fome.

“O alimento pra gente é sagrado. Ele é cultivado para alimentar toda a comunidade. Depois de qualquer coisa que aconteça no terreiro, servimos comida. Se tem samba de terreiro, tem comida. Se tem uma reunião dos filhos, tem comida. Tudo aqui tem que ter comida. Eu sempre digo que a comida do orixá alimenta o sagrado e o profano, que somos nós.”

Nunca se come sozinho dentro de uma casa de axé. Sempre se comunga o alimento em companhia, seja dos orixás, seja das pessoas. É por isso que a cozinheira umbandista Rosana Caldas encara a feitura com uma dose extra de amorosidade. “Eu digo que cozinhar é um ato de amor. Quando a gente cozinha, também está demonstrando o nosso amor pelas pessoas, e com o orixá não é diferente. Fazemos tudo com muito carinho para quem vai desfrutar daquele prato. É importante manter a mente bem limpa, bem consciente do que estamos fazendo. Se não é comida para o meu orixá, faço com a mesma vibração.”

Comida para comungar

Spolon destaca uma das diferenças essenciais entre a umbanda e o candomblé: a sacralização de animais. “Quando a gente fala de comida de Santo, estamos explorando um território da culinária a base de animais, mas quando a umbanda se estrutura, ela é anunciada a partir de um mito fundante do 15 de novembro, quando há rompimento com algumas práticas que existiam até então – e uma delas é o apagamento dessa tradição.”

A pesquisadora explica que houve uma fusão entre a liturgia de terreiro e ensinamentos do espiritismo e do cristianismo, por isso elementos como a sacralização de animais passaram a ser descartados dentro da umbanda. “Para o cristianismo, Jesus foi o último cordeiro, então não há mais sacrifício de animais na igreja católica. Trazer esse fundamento para uma religião de matriz africana resulta em apagamento. Em outras palavras, a umbanda se afastou de alguns símbolos que remetem à negritude da tradição.”

Hoje os movimentos candomblecistas entendem que por trás dos discursos de defesa à vida animal que tentam criminalizar seus rituais, se esconde uma face do racismo religioso. “É muita hipocrisia, porque no Brasil se consome muita carne, a diferença é que o povo não sabe de onde vem o animal que come e nem de que forma ele foi morto. A gente sabe a origem do animal que está dentro do terreiro, sabe de que forma foi sacralizado e o porquê. Quando se fala em proteção dos animais, quais animais estão sendo protegidos? Porque se você usa um sapato de couro, de onde vem esse couro, quando não é sintético? Esses frangos que estão lá congelados não nasceram em árvore, entende?”, questiona Rosa.

Para ela e outros filhos do candomblé, a sacralização é litúrgica e tem um papel sagrado.

“Todos esses animais, eles não são sacralizados para se colocar na encruzilhada. Isso não é nosso. O nosso é rezado, cantado e preparado com todos os nossos temperos para depois servir a comunidade. Toda comida oferecida aos orixás volta pra gente”, finaliza.

Esta matéria faz parte do “Alimentação ancestral: identidade cultural e orixalidade na comida afro-brasileira”, projeto selecionado pelo Prêmio Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura – Edição 2021, executado com recursos do estado de Santa Catarina, por meio da Fundação Catarinense de Cultura.

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  • Jess Carvalho

    Jess Carvalho é jornalista e pesquisadora da bissexualidade. Atua como editora, repórter e colunista no Portal Catarinas...

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