Por Yuderkys Espinosa Minoso*.

Traduzido por: Jeane Rinque.

A denúncia a Boaventura Santos teria tido o mesmo nível de impacto e recepção se não tivesse sido feita por três acadêmicas brancas, duas delas europeias? Será que aquele artigo seria publicado do mesmo modo na revista acadêmica se fosse assinado por mulheres racializadas? Por que disseram à Moira Ivana Millán (líder mapuche argentina) para não tentar denunciar, que ninguém a ouviria, enquanto outras são publicadas em uma revista acadêmica, aplaudidas e escutadas quando ousam? Quantas acadêmicas (brancas ou branqueadas) teriam saído para apoiar Moira ou qualquer outra camarada racializada que tivesse denunciado Santos? Quantas sairão para se juntar a nós quando denunciarmos a matriz de dominação que pesa sobre os corpos racializados na academia?

Nota da editora: A argentina Moira Ivana Millán, 53, ativista mapuche pela recuperação de terras indígenas, fez a acusação em junho do ano passado, durante encontro de mulheres indígenas no México. Os fatos, no entanto, ocorreram em 2010, em Lisboa.

Quando contaremos com esse nível de indignação e apoio às nossas denúncias de racismo interpessoal, institucional e epistemológico? Quando teremos tribunais de ética nas universidades que avaliem e julguem as violências que sofremos como indígenas, afros, ciganos, palestinos, pessoas racializadas dissidentes de sexo-gênero em todas as esferas da academia? Quando teremos uma justiça restaurativa que transforme as práticas racistas e classistas dos homens e, atenção: mulheres brancas e mestiças brancas na academia extrativista? As histórias de maus tratos, assédio, violência, roubo intelectual por “professores estrelados” se acumulam em qualquer instituição de ensino de menor e maior perfil, as piores vivi e ouvi pessoalmente nos espaços mais prestigiosos. Será que nesses casos a máxima de corpos que importam e corpos que não importam ainda prevalece? Se para a violência sexista as paredes parecem falar, será que elas se calam diante da violência contra as filhas, filhos e filhes dos condenados do mundo?

Sei que estas linhas podem parecer irritantes e inapropriadas, podem parecer deslocadas, mas lembremos que algumas (senão muitas) vítimas do “extrativismo sexual” são produtoras de extrativismo epistêmico e gozam de um privilégio de raça e classe que não negam e se beneficiam de forma desavergonhada e sem medo de serem denunciadas, investidas como estão com um poder que as pessoas racializadas em geral não têm; quando digo em geral incluo também os homens racializados. E poderia ser, insisto que é possível, que aqueles que são vítimas do sexismo sejam ao mesmo tempo perpetradores da mais vil e canalha violência contra outres que estão em um nível inferior de privilégio.

E digo isto deliberadamente neste momento crítico, para que não nos esqueçamos. Porque de repente volto a ouvir discursos que parecem esquecer, como se tanto já não tivesse sido dito, que não somos todas iguais aqui e que não é tão verdadeiro que se “mexem com uma, mexem todas”, porque depende sempre de com quem se mexe.

E digo isto, correndo o risco de ser irritante, para interromper o pequeno discurso da irmandade que só surge quando mexem com aquelas que têm privilégios e onde a indignação pela companheira racializada que também foi vítima da mesma coisa, é usada, no melhor dos casos, para endossar a dor da branca sofredora: porque é evidente que se antes o discurso da racializada não era escutado, agora é.

E para que conste, falo apelando à experiência, a mesma experiência que é usada como base para validar a dor da privilegiada, mas que aparentemente não tem o mesmo valor quando apelamos ao seu uso por negras, indígenas, ciganas, muçulmanas, travestis etc., etc. 

Apelo, então, à experiência, a minha e a de tantas de nós que temos denunciado nosso sofrimento, sem ter conseguido tocar um cabelo na cabeça de agressoras colonizadoras racistas, lesbofóbicas, transfóbicas e extrativistas que continuam a falar em nome de todas quando nada mais fazem do que falar de si mesmas e no mesmo ato escondem “os prazeres mais sutis de sua escravidão” (Audre Lorde) e escondem seu próprio lugar na casa do senhor, um lugar que reivindicam como seu próprio direito.

Finalmente (para que não invalidem tudo o que eu disse por não parecer solidário com as vítimas): como é bom que uma parte (uma) da teia perversa do privilégio colonial na academia seja revelada, como é bom que as práticas machistas de um de nossos prestigiados sejam desnudadas… Só espero que isto seja apenas o começo e não o fim do ato de desmantelar a academia como uma entidade de produção de hierarquias das quais muitos se beneficiam, mas, insisto, também muitas.

Texto publicado originalmente aqui sob o título “Com sua permissão, se me permitem falar – Algumas perguntas impertinentes a propósito da denúncia contra Boaventura de Souza Santos”. 


* Escritora, pesquisadora e professora afro-caribenha. Uma das precursoras da feminista descolonial, sua contribuição aponta para uma crítica à “colonialidade da razão feminista”. Diretora do Caribbean Institute for Decolonial Thought and Research (INCAPID) e membro fundadora do Latin American Group for Feminist Studies, Training and Action (GLEFAS) e da Junta de Prietas. Junto com um grupo de colegas, obteve o Prêmio Berta Cáceres de Pesquisa do CLACSO e recebeu uma bolsa Käte Hamburger para residência de pesquisa no CAPAS, da Universidade de Heidelberg, Alemanha, 2021-2022. Ela também foi convidada como editora de uma edição especial sobre feminismo decolonial para Hypathia, Philosophy (2023) e é curadora do projeto expositivo “Cimarron Antifuturism” que reúne 17 artistas individuais e coletivos racializados de Abya Yala. Ela é autora de numerosos ensaios e textos acadêmicos, bem como editora de várias compilações importantes do feminismo decolonial, como “Weaving in other way: Feminism, epistemology and decolonial bets in Abya Yala” (Universidad del Cauca, 2014).

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  • Jeane Adre Rinque

    Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ - Professora Filosofia - INTEGRAR - Projeto Educação Popular...

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