Esses dias, assisti com profunda tristeza ao relato de Priscila Menezes, mãe do jovem Thiago Flausino, de apenas 13 anos, executado pela polícia militar enquanto andava de moto com um amigo na Cidade de Deus, favela da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Priscila carregava consigo a blusa do clube de futebol onde seu filho treinava, uma das medalhas conquistadas entre os vários campeonatos que disputou, a Bíblia que ele levava para igreja, mas o que aquela mãe carregava e me marcou mesmo foi o boletim e o caderno da escola. Thiago foi mais uma das quase 270 vítimas fatais entre as mais de 600 crianças e adolescentes baleadas na região metropolitana nos últimos sete anos, de acordo com levantamento lançado recentemente pelo Instituto Fogo Cruzado.

A violência policial e o seu impacto sobre jovens negros de favelas e periferias é tema histórico no Brasil – e particularmente no Rio de Janeiro, estado que tem servido como verdadeiro laboratório para experimentação de políticas que afinal são promotoras de insegurança pública. 

Ao longo dos últimos 30 anos, execuções como de Maicon, Ágatha Felix, Eduardo e João Pedro, além de chacinas como a de Acari (1990), da Candelária (1993), de Vigário Geral (1993), do Borel (2003), da Baixada (2005), de Costa Barros (2015), do Jacarezinho (2021), do Salgueiro (2021), as tantas no Complexo da Maré e no Alemão, deixaram marcas profundas na nossa história. E todas cumprem plenamente a função de consolidar uma política de extermínio, de um país que há décadas conta com uma das polícias mais violentas do mundo. 

O fracasso retumbante das Unidades de Polícia Pacificadora – inclusive analisado por Marielle Franco em 2014 em sua dissertação de mestrado em Administração – é exemplo concreto de que o Estado de polícia sempre foi a única resposta de política pública oferecida às favelas e periferias fluminenses. Além disso, o estado do Rio foi também objeto de uma intervenção federal militar na segurança pública em 2018, mesmo ano em que Marielle (que era relatora da comissão que fiscalizava a intervenção a partir da Câmara Municipal) foi assassinada.

Para além da violência que mata de tiro, as famílias das vítimas precisam também enfrentar a violência simbólica de ter que provar a inocência de seus entes queridos. A criminalização das vítimas é estratégia comum usada pelo próprio Estado para tentar justificar o injustificável. Em resposta, famílias que sequer tiveram tempo de processar o luto já precisam mergulhar numa disputa narrativa cruel e desleal. 

Durante minha atuação como ativista e pesquisadora em segurança pública, ouvi constantemente frases como “ele estava com a blusa da escola”, “ele estava saindo da igreja”, “ele jogava bola de gude na porta de casa”, “ele tinha saído com amigos para comemorar o primeiro emprego”, “ele queria ser jogador de futebol” sendo entoadas diuturnamente por mulheres, em sua esmagadora maioria. Mulheres negras mães, irmãs, tias, primas, sobrinhas e avós que se transformam nas vozes daqueles que lhes arrancaram de maneira tão violenta. 

Em alguns povos africanos, as griôs tinham a função de contar histórias, narrar os acontecimentos de um povo e passar as tradições para as gerações futuras. Fiquei pensando que no Brasil se consolidou esse griotismo ativista, a partir do qual mulheres negras que protagonizam a luta contra a violência policial nas favelas e periferias do Rio de Janeiro e outras partes do país cumprem um papel fundamental de manterem viva a memória de seus familiares e seguirem contando “a história que a História não conta”, a fim de que seja feita justiça e que outras não chorem a perda violenta dos seus.

Somos contemporâneas de griôs que nos ensinam sobre o mundo a partir de suas piores mazelas, mas que também nos dão importantes pistas sobre os caminhos para a reconstrução de novas bases sociais. E ela será através do afeto, da solidariedade, da empatia e da luta coletiva. 

A organização política do movimento de mães e familiares, essencialmente matriarcal, é revolucionária. Uma revolução que me arrisco a dizer que acontece de maneira quase que obrigatória, por parte dessas mulheres que têm seus filhos tirados de si de maneira tão bruta. Aprendo sobre luta no abraço acolhedor e na retórica inigualável de Ana Paula Oliveira das Mães de Manguinhos, no papo reto e na rebeldia da Débora Silva do Movimento Mães de Maio, na doçura e na liderança aguerrida de Dona Edna Carla das Mães do Curió, no resgate impecável da memória histórica e capacidade de articulação da Patricia Oliveira da Rede contra Violência, no olhar e postura firme de Dona Rute Fiuza das Mães de Maio do Nordeste, na disputa dentro e fora da institucionalidade que a Mônica Cunha constrói desde a vereança e do Movimento Moleque. 

Por tudo isso e muito mais, devo boa parte da minha formação de vida (enquanto pessoa e ativista) a essas e outras tantas griôs, lutadoras incansáveis que transformam seu luto em luta, na esperança de alcançar a justiça pelos seus, e fazendo com que o bem viver e a dignidade se tornem costume.

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  • Lígia Batista

    Lígia Batista é diretora executiva do Instituto Marielle Franco. Formada em Direito, pesquisa sobre representação políti...

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