A ex-namorada dele não me olhava nos olhos
Na crônica, a autora reflete sobre como a monogamia constrói a figura da ex e como essa lógica impacta as relações entre mulheres.
Eu e meu parceiro fomos a uma festa em que sua antiga namorada também estaria. Ao escolher minha roupa, pensei nela. Naturalmente, queria me arrumar, mas, por outro lado, não demais. Tive uma conversa anterior com meu parceiro em que propus não ficarmos muito melosos durante a festa. Ele disse que sim, agradecendo aliviado. Senti que ainda rolava algum sentimento entre os dois.
Eu e ele tínhamos uma relação não monogâmica e a possibilidade de tê-la por perto me animava desde que tivéssemos uma boa relação. Eu tinha a expectativa de que nosso encontro fosse positivo. Mas, ao chegar na festa, ela me cumprimentou friamente, sem olhar nos meus olhos. Até ali, a ideia de sentir ciúmes não tinha me passado pela cabeça. Mas, naquele momento, a insegurança me atacou como um tubarão.
Ela não estava interessada em amizade, pelo contrário. Isso feriu minha fantasia de que a gente se gostasse e tudo fosse um campo de margaridas floridas. Em dado momento, ela e meu parceiro estavam conversando e eu olhava aquilo como quem observa um quadro de paisagem bucólica sentindo a melancolia de estar totalmente apartado daquela realidade. O afeto não era para mim naquele momento, nem o dele, muito menos o dela.
Paradoxalmente, gosto quando meu idealismo romântico se choca com este tipo de realidade. Gosto e preciso lembrar que nem tudo é para mim. Saber que o mundo é muito grande e ninguém, nem uma convenção social, tem autoridade para proibir nosso acesso a ele, é um direito que não abro mão e que estabeleço em minhas parcerias.
Aqui, vale um parênteses: para as pessoas que, de antemão, possam pensar que meu poliamor é fruto de opressão machista, saibam que opressão, para mim, foi o imenso desgaste durante anos tentando caber em relações monogâmicas.
Me isolei em um canto para lamber as feridas e pensar um pouco. Na escalada monogâmica, talvez a única referência de ética relacional daquela mulher, ela estava em desvantagem. A ex; “a que não deu certo”. No amor romântico, o término é o atestado de que aquele não é o parceiro certo – porque certo, só tem um. E este posto único articula intimamente com a construção de gênero da mulheridade. A escolhida, a mais bonita, a melhor, a mais especial. Todas nós sabemos o peso desta competição na qual somos lançadas.
Eu não sabia das suas motivações pessoais ou sua opinião sobre mim e, naquele ponto, não era o mais importante para mim, mas podia imaginar o que ela, enquanto mulher, estava sentindo naquela situação.
Uma das coisas que a não monogamia me mostrou de uma maneira muito didática, foi que quanto maior a distância que estamos de alguém, mais inseguranças essa figura pode nos provocar. É o mesmo fenômeno das redes sociais, conexões pela vitrine.
A gente transforma as pessoas que não conhecemos a fundo nos objetos das nossas fantasias, seja de amor, medo ou insegurança. Depois destas reflexões, me despedi do meu campo de margaridas floridas e voltei para a festa da água para o vinho.
Ela estava sentada em uma rodinha de amigos. Sentei-me em uma das cadeiras, o que deve ter sido uma surpresa. Meti-me na conversa. Até aquele momento, ela ainda não tinha olhado para mim e continuou assim. Eu falava com o rosto na direção dela, convidando-a. Continuou ignorando minha presença.
Fui mais insistente e fiz uma pergunta diretamente a ela, que respondeu com surpresa e receio. Insisti puxando mais papo até ver sua expressão de desconfiança desaparecer. Ela viu que eu não estava interessada em usar os artifícios sociais que estavam a meu favor para competir. Foi uma conversa breve, mas conseguimos nos olhar sem qualquer hostilidade. Missão cumprida, levantei-me da mesa. Não era felicidade que eu sentia. Estava um pouco cansada e pensativa sobre mais esta história para contar.