Por quê a masturbação é algo tão discriminado até os dias atuais?
O historiador americano Thomas Laqueur, em seu livro “Solitary Sex, a Cultural History of Masturbation” (Sexo solitário, uma história cultural da masturbação), nos explica muito bem.
Laqueur lembra que a masturbação era uma prática comum, mas irrelevante, até a modernidade. A partir do século 18, tornou-se um grande tema cultural. A coisa começou com um tratado anônimo, de 1712, que descrevia as terríveis consequências da masturbação e prometia remédios milagrosos. Desde então, a medicina se apoderou do caso. Durante dois séculos, a masturbação foi estigmatizada, cresceu a lista de seus efeitos nefastos, e foram propostos recursos para contê-la: desde a ideia de prender as mãos de meninos e meninas até a prática de cauterizar o clitóris das meninas com ferro quente (sem anestesia, claro).
Laqueur mostra com grande detalhe, numa argumentação que o aproxima de Foucault, que o projeto liberador do Iluminismo contraditoriamente se transforma num programa de vigilância e tentativa de controle daquilo que até então tinha sido o mais secreto, privado e aparentemente inofensivo dos atos sexuais – a masturbação. Para tanto, passou-se a policiar a imaginação, o desejo e as expressões da individualidade que ele mesmo acabava de promover.
Durante esse período, a masturbação acabou representando o lado obscuro da autonomia tão enaltecida pelos intelectuais de então. O pensamento iluminista valorizava o indivíduo, desde que este fosse uma engrenagem da máquina social. Na masturbação, o indivíduo se isola, não produz nada de útil para os outros, não está sujeito ao controle da sociedade. Para o filósofo alemão Immanuel Kant, masturbar-se era “abraçar a animalidade nua”. Essa visão prevaleceria até a virada do século 20.
No começo do século 20, com a psicanálise, ninguém consegue mais acreditar nos efeitos danosos, tanto físicos como mentais, da masturbação. Aos poucos, a prática é criticada sobretudo por razões morais.
Freud diz que a masturbação é uma das manifestações universais da sexualidade infantil e que seus eventuais aspectos prejudiciais não decorrem dela em si e sim do contexto mais amplo da vida sexual. Refere-se ele aos turbilhões inevitáveis da castração e do complexo de Édipo, que dão conformidade à nossa própria constituição como sujeitos e – consequentemente – à nossa identidade sexual. São estes conflitos inconscientes que produzem as fantasias que alimentam não só a masturbação, mas a vida psíquica em geral. Assim, a questão não é – como durante os últimos dois séculos se dizia – combater a masturbação e as fantasias que a geravam, e sim analisar os conflitos geradores de fantasias, inibições e sintomas.
No tocante às mulheres, o problema era ainda pior, já que para ele, ao atingir a idade adulta, a mulher deveria transferir seu centro de prazer do clitóris – um órgão erétil, uma referência masculina – para a vagina, onde residiria a verdadeira sexualidade feminina. Assim, uma mulher que se masturbasse com estimulação clitoridiana não somente seria imatura: teria problemas de identidade sexual.
Todavia, durante esse período a masturbação feminina foi tratada de forma ambígua. Havia a execração do hábito, mas, ao mesmo tempo, a estimulação genital era largamente praticada por médicos para o tratamento daquilo que se chamava de histeria – as oscilações de humor provocadas por insatisfação sexual. O orgasmo feminino era encarado como uma crise histérica. E, com o estímulo a crise, a libertação da mesma. Tal procedimento médico foi a semente da indústria de brinquedos masturbatórios destinados ao público feminino. “No começo do século 20, houve um boom de aparelhos destinados a poupar os médicos do tédio de massagear a genitália de mulheres histéricas: vibradores elétricos, máquinas hidroterápicas, tudo vendido nos catálogos das lojas de departamento”, afirma Laqueur.
Vislumbrando partes dessa história sobre a sexualidade feminina, ficamos assombrados diante de tanto desconhecimento e preconceitos para subjugar e aniquilar o feminino. A costela de Adão, vaso receptor, a puta, traidora, diabólica, histérica e por aí vão as generalizações do que poderia ser o feminino e sua sexualidade. Somos julgadas, condenadas, classificadas, obrigadas a desempenhar tarefas e destinadas a um certo modo de viver em função de discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder.
Ao nos apoderarmos dessa história visamos uma libertação ontológica. A busca de um significante geral para a multiplicidade do ser-mulher, a afirmação de um sujeito-em-si, não apenas um reflexo invertido ou uma construção do olhar masculino.
Esse texto integra a pesquisa que deu origem à exposição “Conhece-te a ti mesma” de Angelita Cardoso, que segue até 23 de março em exposição no Sítio Arte e Educação em Florianópolis. Outros capítulos serão publicados na coluna.