Por Fabiana Souza

Ela só queria brincar

Dos 6 aos 10 violentada 

Sendo criança, brincar ela queria…

4 anos sofrendo calada, abusada…

 Machucada

Do corpo até a alma doía

Aos 10 resolveu falar

Daquele pesadelo queria acordar

Alguém, por favor, faz ele parar?

Dentro da menina

O medo

  Do afeto 

Dentro do medo

  O feto 

O Feto foi crescendo

O medo também 

Os dois: reféns 

Reféns do machismo

  AMÉM 

Reféns do fascismo 

  AMÉM 

Reféns da hipocrisia

  AMÉM 

Enquanto suas bocas rezam

A dor da menina desprezam….

Que Deus é esse que com violência silencia?

Colocando a culpa na vítima?

C-O-V-A-R-D-I-A

E aquele que sua infância roubou? 

Aquele que causou tanta dor?

Vai ser perdoado? Ou vai virar pastor?

Aos gritos de assassina

Arrancaram o feto

Mas a dor de uma infância perdida ficou.

A dor ficou. 

O medo ficou.

Isso tudo continua lá dentro da menina.

Ninguém vai conseguir arrancar…

A menina só queria brincar…

(Maria Ribeiro e Amália Leonel**)

Primeiro semestre de 2021. Clarice Lispector veste um lenço verde na Praça Maciel Pinheiro, no Centro de Recife. Ela é a única mulher a integrar o conjunto de 12 estátuas que compõem o Circuito da Poesia, homenagem feita aos escritores que tiveram a vida e a obra ligadas a Pernambuco. “A paixão segundo G.H.” (1964) é considerada por muitos a obra-prima de Clarice. Nesse livro, a protagonista G.H. narra em tom confessional, não sem hesitar, um abortamento induzido no passado, o que lhe causa culpa, sofrimento, e muitas reflexões existenciais. 

O que teria pensado Clarice do caso da menina de 10 anos que, não bastasse ter sido abusada ao longo da infância, engravidar do abusador, sofreu ameaças e perseguição quando ia realizar o aborto que lhe foi garantido por lei? O que diria Clarice da fragilidade do direito ao aborto seguro e gratuito no Brasil? Teria ela celebrado a conquista da vizinha Argentina, onde uma maré de mulheres cobriram de verde as ruas, apesar da pandemia – muito melhor administrada e portanto menos danosa lá do que cá, diga-se -, até conseguirem a aprovação do direito ao aborto legal, seguro e gratuito para todas? Talvez por supor que sua voz se somaria ao coro, o lenço verde tenha chegado até Clarice. Quem o colocou? É de se considerar a distância geográfica entre o pano verde das argentinas e toda a paleta de cores presente nas lutas e tradições do território Pernambuco-Recife. Cada povo e cada chão possuem seus percursos e deslocamentos. Qual seria o sentido do pano verde chegar até Clarice? 

Enquanto as argentinas experenciam a onda verde, nós brasileiras vivemos os efeitos do neoconservadorismo através de uma alegoria de muito mau gosto que conjuga direito, igreja e milícias.  O lenço verde nos traz uma interrogação: será que não seria o tempo de nos vermos, além de brasileiras, como latinoamericanas? Trata-se de somarmos força. Não é algo corriqueiro ou fácil nos vermos parte de um território comum pois os nossos invasores foram diferentes, as sequelas do colonialismo ibérico se dão nas distintas línguas (português e espanhol) e em tantos outros aspectos da nossa formação cultural. Diante da fragilidade política que nós brasileiras estamos vivendo, esse parece ser um convite para nos enlaçarmos na sororidade e na dororidade com as hermanas do continente.

*Fabiana Souza é gaúcha, contadora de histórias, poeta, e integra o coletivo Mães Costurandeiras.

**Amália Leonel é pernambucana, nutricionista, trabalha com saúde indígena, e integra o coletivo Mães Costurandeiras.

**Maria Ribeiro é gaúcha, psicóloga, mestre em Psicanálise (UFRGS), e integra o coletivo Mães Costurandeiras.

REFERÊNCIAS:

do NASCIMENTO, Maria de Fátima. Re(leitura) do romance A Paixão segundo G.H., de Clarice Lispector: o aborto voluntário de G. H. simbolizado na morte da barata. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v. 17, n. 27, pp 131-150. Abralic, 2015.

LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

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