Casal de evangélicas cria grupo de estudos para falar sobre diversidade
Anicely Santos e Elis Lages organizaram um grupo de estudos para falar sobre diversidade com a comunidade evangélica
A história de Anicely Santos e Elis Lages é marcada pela luta por um cristianismo mais amoroso, plural e acolhedor para as pessoas LGBTQIA+. Casadas, as duas se aproximaram construindo o Movimento Negro Evangélico de Pernambuco, criado em 2017. Ambas fazem parte da Rede de Mulheres Negras Evangélicas e criaram na organização o GT de diversidade, um grupo de estudos com a proposta de abrir diálogo com a comunidade cristã sobre a pauta LGBTQIA +.
“Eu consigo fazer uma leitura da Bíblia em que eu enxergo que toda vez que eu luto por uma pessoa LGBQIA+ eu estou fazendo o evangelho”, afirma Elis.
As duas entrevistadas fazem parte da nossa série especial com as protagonistas da terceira temporada do podcast Narrando Utopias. Em “FÉministas: evangélicas por um futuro democrático e amoroso” elas compartilham a experiência de serem um casal homoafetivo dentro do meio evangélico.
A temporada de “FÉministas” já está disponível nas plataformas digitais, abordando as teologias negra, feminista e queer. A produção conta com a parceria do grupo Prosa, da UFSC, e a colaboração da Rede de Mulheres Negras Evangélicas.
Vale destacar que a conversa foi realizada com as duas ao mesmo tempo, por isso você acompanha abaixo ambas as respostas.
Confira a entrevista com o casal de evangélicas:
Vocês são um casal homoafetivo, mas também são duas pessoas evangélicas. Podem contar um pouco da trajetória de vocês dentro e fora da igreja? Vocês congregam em alguma igreja?
Elis: Atualmente a gente não congrega em uma instituição, mas já congregamos e aí falando da minha história eu sou de uma família cristã protestante então eu também cresci dentro da igreja, tive a maior parte da minha vida dentro da igreja. Eu participei, eu congreguei em duas instituições, ambas são Batista, mas uma é renovada e a outra é tradicional. Eu passei alguns anos revoltada com a igreja e saí, depois eu voltei e atualmente eu não congrego em nenhuma instituição.
Any: Eu tenho uma história parecida com a de Elis. Eu não nasci evangélica, mas eu fui evangélica quando criança, então meio que minha vida toda foi nesse contexto evangélico. O que eu sei em vida tem inclinação religiosa. Eu passei por duas igrejas também, uma na linha pentecostal e outra na linha tradicional que foi a batista. Saí da igreja por não aguentar mais e me sentir sufocada com várias coisas, mas o fato de me entender como uma pessoa LGBT não foi um dos motivos. Hoje eu entendo que posso ser cristã sem necessariamente estar dentro de uma instituição. Isso me dá a liberdade de poder visitar outros espaços e congregar quando eu sentir vontade. Eu entendo que ser cristão é isso. Não estar preso às amarras das instituições.
Any, você falou que não saiu por conta da sua homoafetividade, então o que fez com que o espaço da igreja deixasse de ser um espaço de acolhimento para você?
Any: Há muitas problemáticas internas, administrativas. Saí da igreja pentecostal por questões que eram consideradas doutrina baseada na Bíblia, mas como eu sempre li bastante a Bíblia via que algumas coisas ali não faziam muito sentido. As respostas aos meus questionamentos não conversavam. Essa primeira saída foi bem dolorosa porque naquele momento a igreja me ensinava que aquela linha era a única linha que levaria aos céus, com todo aquele contexto religioso radical. Depois, cheguei na Batista e lá o olhar é outro. Embora hoje ainda exista aquela coisa de que mulheres não podem ser nomeadas como pastoras, há espaços que já estão no processo de entender esse lugar.
Até que em determinado momento questões pessoais com o pastor (da igreja) acabaram se misturando com questões da própria instituição, afetando outros membros, inclusive a mim. Como eu já estava em um outro momento da minha vida, já tinha novos entendimentos, participar da Igreja Batista me deu essa liberdade ver novos horizontes teológicos.
Comecei a ter algum entendimento de que embora a instituição estivesse me afetando, eu não precisava da instituição para viver a minha vida com Deus.
E vocês se conheceram na igreja?
Elis: Sim. Nosso relacionamento existe a partir desse envolvimento com questões da igreja, mas não necessariamente uma igreja. Havia um grupo em Recife chamado MUR – Missão Urbana Recife – e esse grupo fazia algumas ações políticas, mas não necessariamente político-partidárias. Nos conhecemos num encontro desse grupo, mas a nossa maior aproximação foi quando o Movimento Negro Evangélico de Pernambuco foi iniciado aqui, em 2017. O Jackson Augusto, que deu início aos trabalhos aqui junto com a Vanessa Barbosa, me convidou para participar e em seguida eles convidaram a Any. Então, nosso relacionamento está totalmente envolvido com questões de igreja, mas não com uma igreja específica.
Por vezes a igreja não é um lugar acolhedor, mas qual foi a principal motivação de vocês pra ter seguido na religião? O que faz com que vocês continuem tendo a fé cristã como uma parte fundamental da vida?
Elis: Existe sim uma decepção bem grande, e eu acho que essa decepção foi o motivo que fez com que a gente se afastasse, mas o motivo que faz com que a gente continue é encontrar uma forma diferente de enxergar a religião. Dentro das igrejas a gente tem todo um estudo, mas a gente é muito regido por por dogmas. Então, cada igreja vai ter a sua forma de falar, vai ter a sua regra, digamos assim.
E aí quando você começa a fazer uma leitura da Bíblia que é diferente daquilo que está sendo falado rotineiramente você consegue perceber que tem coisas ali que não se encaixam com o que está sendo dito dentro das igrejas. Continuar na militância e me declarar pessoa evangélica é exatamente por conseguir fazer essa leitura da Bíblia.
Eu consigo fazer uma leitura da Bíblia em que eu enxergo que toda vez que eu luto por uma pessoa LGBQIA+ eu estou fazendo o evangelho. Toda vez que eu luto por uma pessoa negra eu estou fazendo evangelho. Toda vez que eu luto contra a redução da maioridade penal eu estou fazendo evangelho. Toda vez que eu luto contra a proibição do aborto eu estou fazendo evangelho.
Elis, essa leitura da Bíblia que você faz é totalmente diferente da leitura dos fundamentalistas religiosos. Uma leitura que acaba sendo muito mais compartilhada…
Elis: O que a gente precisa pensar é que a Bíblia existe há muito tempo, mas toda a mensagem de Jesus, enquanto o personagem principal da Bíblia, é de inclusão.
Nunca existiu uma mensagem de exclusão nas palavras de Jesus Cristo traduzidas na Bíblia. Quando a gente vê que as igrejas estão fazendo esse processo de exclusão é aí que está o problema.
Eu passei dez anos afastada da igreja, dos meus 15 aos 25, e quando eu voltei pra igreja a primeira vez, o primeiro culto em que eu estive, eu escutei o pastor falando que a mulher precisava ser submissa ao seu marido. Imediatamente isso vem em choque com tudo aquilo que eu acredito de que não existe esse lugar de submissão. Não existe um Jesus que exclui. Por isso que a minha militância existe. Porque eu acredito nisso. O Jesus que eu sigo não exclui, ele inclui.
Vocês fazem algum trabalho específico voltado para a comunidade LGBT?
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Elis: Sim. Fazemos. É algo recente, mas com uma importância imensa. Criamos o GT de Diversidade dentro da Rede Mulheres Negras Evangélicas no fim do ano passado. A intenção é estudar sobre o assunto, trazer literaturas, entender biblicamente e chamar pessoas que já são pesquisadoras para conversar com a gente. Convidamos pastoras LGBTs para os nossos eventos para que as pessoas enxerguem que elas são tão profetizas quanto qualquer outra. Fizemos um grupo de estudos a partir de um livro que durou 3 meses. No próximo semestre teremos outro grupo de estudos fazendo e pela primeira vez no nosso evento anual vamos trazer uma pessoa declaradamente LGBT que faz essa defesa. Então, esse foi o primeiro momento de atuação mais forte da gente, de início e de concretização.
Como tem sido falar a pauta LGBTQIA+ em espaços de fé?
Any: Pensando no contexto da Rede, somando com o que Elis já falou, a Rede é composta por mulheres de diversas linhas teológicas. Por isso que nasceu o GT, para que a gente conseguisse conversar com aquelas que ainda não entendem que há espaço para todo mundo no Reino de Deus. Têm sido uma experiência interessante. A gente faz um trabalho de formiguinha. Mas alguém precisa iniciar, alguém precisa fazer. Como a Elis falou, vamos aprendendo no processo. Eu, por exemplo, me entendi como uma mulher bissexual não faz muito tempo, assim como não faz muito tempo que me entendi como uma pessoa negra.
A gente não chega lá para ditar regras, mas sim para que todo mundo aprenda junto. E no final, o objetivo maior é que todo mundo entenda que há espaço para todo mundo.
Também gostaríamos da opinião de vocês sobre um estudo da Sensata. Esse levantamento descobriu que a ideia de impedir que outros cometam pecado tem impulsionado a rejeição das causas ligadas aos direitos humanos como a causa LGBTQIA+. Como dialogar com essa população evangélica que acredita que está “salvando” as outras pessoas do pecado? Existe uma outra noção de pecado que poderia ser trabalhada?
Any: Acho que esse embate de “eu estou certo e você está errado” não leva a lugar nenhum. Mas fazer o outro refletir a partir daquilo que ele acredita talvez seja um caminho mais interessante. “Por que você pensa sobre isso? Por que você considera que isso é correto? Por que você acha que coisa X é pecado e outra coisa não?”. Então, acho que o processo de reflexão é o melhor caminho para fazer com que as pessoas repensem suas atitudes, repensem seus pensamentos e cheguem a um denominador comum.
Elis: É muito complexo. O próprio diálogo com pessoas que concordam com a gente já é difícil. Então, existem sim caminhos e, como Any bem trouxe, tentar fazer as pessoas refletirem a partir do que elas acreditam acho que é uma das melhores alternativas. Mas também acredito que precisamos encontrar outros espaços para falar de formas diferentes.
Infelizmente as pessoas que lucram muito com as igrejas protestantes não querem deixar de lucrar. Para que elas não deixem de lucrar, elas precisam ter o controle da narrativa. E aí o caos, a desgraça, a intolerância fazem parte desse lucro.
Então, talvez o nosso maior trabalho seja mostrar para as pessoas que quem está ali dizendo que se você fizer isso você vai pro inferno é tão humano e passível de erros quanto você. Mostrar que o caminho é Jesus, o caminho não é o seu diácono, o caminho não é a sua dirigente, o caminho não é o pastor presidente, o pastor adjunto. O caminho é mostrar quem é Jesus, o que ele fez e como eu devo me portar a partir disso. Eu olho pra Jesus e para como Jesus agiu e eu não consigo ser indiferente às injustiças.
Elis: Só fazer um pequeno comentário. Às vezes a gente não tem noção de quem e o quanto a gente consegue alcançar. Logo no primeiro semestre, uma amiga pessoal da gente participou, mas só dentro do grupo de estudos que ela se sentiu confortável para expor e dizer “Então, é isso. Eu sou uma pessoa lésbica e eu tenho muita dificuldade porque eu sei que na minha igreja eu não vou ser aceita. Sei que a minha família vai ter dificuldade com isso”. Ali ela finalmente conseguiu verbalizar essas coisas para si e para outras pessoas. Sentir que estava num espaço seguro. Isso é um ponto que faz a gente pensar: “Bom, faz sentido esse trabalho da gente”.
Any, você acha que a religião pode ser inclusiva, amorosa e aberta ao diálogo? O que que precisa mudar pra que isso aconteça?
Any: Sim. Acredito que ela possa sim ser tudo isso, mas vai ter dificuldade para mudar porque tem muita coisa engessada e é preciso muita paciência pra conseguir chegar lá. Mas chega lá. A palavra para esse contexto é paciência. Paciência para entender os processos, paciência pra entender como lidar com as pessoas. Eu não tenho respostas absolutas, mas tenho fé de que é possível. Porque como vai dizer Lucas “para Deus nada é impossível”, então é possível sim.
Elis: Sim, eu acredito. Há muito tempo atrás eu li uma frase que dizia que toda religião é pura na sua essência e eu acredito muito nisso. Acredito que dentro do cristianismo haja espaço para todas essas coisas, mas o que precisa acontecer é exatamente isso, uma coisa que foge do que a gente consegue pensar. Uma parte de mim até pensa “Rasga essa folha! Começa tudo de novo e dessa vez faz certo”. É um caminho difícil de alcançar. O que podemos fazer é ir aos poucos. Construir um caminho de migalhas e todo dia coletando uma, todo dia fazendo um pouquinho a mais. O grande, a coisa grandiosa, talvez eu não consiga enxergar, talvez as nossas crianças não consigam enxergar. Talvez esse caminho seja ainda muito longo. Ele não é impossível. É sobre crença. Eu creio que é um caminho possível.
Qual futuro vocês sonham para o Brasil e o que vocês estão fazendo para alcançar esse futuro sonhado?
Elis: Meu maior sonho é não ver ninguém passando fome. Que todo mundo consiga fazer no mínimo três refeições; que mulheres possam andar na rua sem sentir medo; que a gente consiga ter as nossas matas restauradas. Acho que todas as coisas que a gente tem feito são nesse sentido. Quando a gente se envolve, enquanto pessoas evangélicas, em ações contra o racismo religioso é uma atuação para que todo mundo experiencie a sua fé livremente.
Quando a gente chega para pessoas cristãs e dizemos “Somos pessoas LGBTs e somos pessoas cristãs. Vamos conversar sobre isso? Você quer conversar sobre isso? Você teria espaço na sua vida para entender isso?”. Essa é uma das nossas atuações.
Além de tentar mostrar um Jesus diferente. Também queria comentar que, principalmente pra mim, é uma novidade participar de espaços assim, mas estou muito feliz que eles existam. Às vezes a gente acha que está sozinha, mas tem muita gente fazendo coisas incríveis por aí. Que bom que vocês estão fazendo essa coisa incrível também. É muito bom.
Any, agora eu queria saber de você também. Qual é o futuro que você sonha pro Brasil e o que você tem feito para que esse futuro em algum momento se concretize?
Any: Essa vai ser realmente uma resposta bem utópica porque, enfim, sonhar e Brasil na mesma frase.
Eu sonho com um Brasil que seja liberto verdadeiramente de acordo com aquilo que o próprio Jesus diz. Liberto pela verdade. E a partir dessa verdade que a gente consiga tirar todas as amarras do patriarcado, as amarras da violência, do racismo. Meu sonho utópico é esse.
E o que eu tenho feito é estar nesses espaços que eu acredito que são espaços que conversam sobre isso, que tentam trazer a compreensão e a reflexão sobre o que é a verdade. Sobre Jesus. Milhões de coisas são utópicas e a gente precisa respirar e conseguir seguir em frente porque se a gente ficar apenas na perspectiva de que as coisas não vão mudar vamos surtar. Então, é necessária uma dose de utopia na vida para que a gente consiga acordar no outro dia.
Este projeto faz parte de Narremos a Utopia, uma iniciativa do Inspiratorio.org para imaginar futuros feministas, interseccionais e inspiradores.