Quem são as bruxas da contemporaneidade? O que podemos aprender e ensinar a partir de suas bruxarias? Quais são suas políticas, suas práticas, suas técnicas, seus conhecimentos químicos/científicos, seus modos de existências e práticas diárias? Seus conjuntos de técnicas e saberes são oriundos de seus ofícios e, também, de suas políticas de vida. Quase o ofício da bruxa, da alquimista: acreditar que transformando a natureza, transforma a si mesma.
Ao buscar narrar a história de bruxas, alquimistas e cientistas, almejo também explorar outras formas de olhar os modos de fazer químicas, ciências e políticas. Frente ao cenário atual de produção de conhecimento e de captura das subjetividades capitalistas, as bruxas são as que resistem. São elas que procuram por outros caminhos, outros modos de existir, ou seja, criam fraturas nos modos de consumo.
Ancorada nas interfaces dos Estudos Culturais das Ciências e das Educações e da Filosofia da Diferença, convoco algumas mulheres-bruxas-alquimistas-cientistas para minha convenção: uma delas, formada em química, trabalha com cosmetologia natural, em que seus produtos são confeccionados em barra para evitar uso de embalagens plásticas; outra trabalha com aromaterapia e florais; a outra é farmacêutica e trabalha com homeopatia; há também um grupo de mulheres da diocese que plantam ervas e colhem para fazer uma pomada para a comunidade; outra é agricultora e trabalha com agroecologia, alimentos orgânicos e a resistência para com pesticidas; e há, também, uma mulher que trabalha nas ruas de Londrina, comercializando um produto de limpeza geral.
Busco com essas práticas pensar em ciências menores, em linhas de fuga e em criar tensões na ciência acadêmica e no capitalismo que induz a um consumo desenfreado, em prol da defesa da Gaia (Mãe-Terra) e de uma Educação, um Ensino de Química, de Ciências, que reflita a respeito de uma cosmopolítica, de uma química menor e de uma slow Science, opondo-se à captura de regimes de subjetividade capitalista, como teoriza a filosofa da ciência Isabelle Stengers.
Problematizo a mulher bruxa como um resgate às práticas dos modos de produção regional, marginal, mágico, da ciência. Uma vez que a bruxaria, na Idade Média, funcionava como um castigo para quem não se enquadrava nas normas locais. Nesse sentido, o rótulo de bruxa é, muitas vezes, pejorativo, pois marca mulheres que supostamente não são confiáveis, endemoniadas, o que pode estimular as demais a se adequarem por medo de serem estigmatizadas.
Em contraponto, as mulheres bruxas são vistas como poderosas, donas de seus próprios corpos e saberes. São elas quem resgatam os valores femininos, como a solidariedade, a força do coletivo, a união com Gaia com a natureza. Logo, as bruxas da contemporaneidade não podem mais ser queimadas vivas. Então, de que forma é possível narrar um mundo no qual as mulheres, que foram condenadas, exiladas, queimadas, são hoje, resistência, na produção de conhecimentos químicos e científicos?
O que almejo é tencionar, problematizar e dilatar as possibilidades de enxergar conhecimentos menores da química e das ciências. Em vez de imaginá-las como separadas da teia social, busco demonstrar que seus significados emergem de um coletivo de diferenças que transitam – sem pudores – entre conhecimentos não acadêmicos, de dentro e fora dos critérios de demarcação científica, delegados como não ciência, não química, como faziam e fazem as bruxas queimadas por construírem seus conhecimentos e o domínio de suas feminilidades.
Assim como traz Michel Foucault no prefácio de seu livro As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas, falo da perturbação do que é familiar ao pensamento, de desorganizar as superfícies que são interessadamente organizadas para produzir a química, a ciência como conhecimentos/invenções supostamente privilegiadas, hegemônicas, maiores.
As bruxas da contemporaneidade, assim como as da Idade Média, são aquelas que possuem domínios da manipulação e do cuidado com a natureza. São elas que produzem conhecimentos menores da ciência. Ou seja, são elas, nós, você e eu que afrontam o próprio poder conferido à ciência hegemônica.
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Penso menor conforme Gilles Deleuze e Félix Guattari, que trazem o conceito a partir da literatura de Franz Kafka. Menor não está atrelado a um desmerecimento ou em um sentido de pequenez e insignificância, mas, sim, a uma certa marginalidade e resistência. Adapto aqui ao âmbito da química/ciência as características principais deste conceito. Dessa forma, menor se caracteriza a partir de três eixos: a) uma desterritorialização da ciência; b) uma ramificação política; e c) o recurso a um agenciamento coletivo.
Mas então, de que modo se constitui uma química menor? Convoco agora as bruxas que trabalham com cosmetologia natural. Em suas práticas elas realizam diversas manipulações químicas, ou melhor, all-químicas, para confeccionar seus produtos, evitando o uso de compostos químicos danosos à natureza e ao corpo. Ou seja, elas desterritorializam a ciência, o território dos grandes laboratórios de pesquisa que desenvolvem “avançados” produtos de beleza e cuidados, levando a novos agenciamentos.
Além disso, desta desterritorilização, suas práticas químicas e científicas menores possuem uma ramificação política, um desafio ao sistema instituído, ao consumo embotado de produtos para higiene e estética. A política está em contestar o que nos é posto, em questionar a promessa que fazem os produtos que as mídias divulgam e em retornar ao natural, ao equilíbrio.
Esse modo de produção de conhecimento opera por um recurso a um agenciamento coletivo, pois essas mulheres compartilham seus produtos e conhecimentos entre si, deixando de pertencer e influenciar o uno, para ser partilhado na coletividade. Os valores de seus conhecimentos tendem a pertencer e serem construídos no coletivo. Bruxas que trabalham com cosmetologia natural buscam se preocupar com a saúde física, com a diminuição do consumo de polímeros sintéticos largamente usados em produtos de cuidado e beleza feminina, transmutando isso em bem-estar físico e espiritual. Uma autêntica all-quimia.
All-quimias são todas as químicas possíveis e impossíveis. As all-quimistas são todas que buscam o equilíbrio consigo mesma e com a natureza, com Gaia. Talvez seja um retorno à ancestralidade, a redescoberta de algo que nos conecta.
Mas afinal, o que podemos aprender e ensinar com as práticas, técnicas e políticas das bruxas all-quimistas, neste momento em que estamos constantemente sendo envenenadas por pesticidas e polímeros sintéticos, explorando de forma descontrolada o uso de recursos naturais, dilatando desigualdades sociais, sufocando o valor social da Educação? A resposta é que podemos aprender outras químicas, outras ciências menores que podem nos conscientizar a promover respeito pela Natureza e por nossos corpos.
A absurda quantidade de polímeros sintéticos, vulgo plástico, que geramos através do que é “descartável”, é um exemplo. E não são apenas os polímeros que consumimos quando usamos canudinho, copo descartável e frutas embaladas em bandejas. Os plásticos estão presentes nos lugares mais inusitados: cosméticos, produtos de higiene e vestuário são exemplos de produtos que em suas composições carregam plásticos, derivados do petróleo, uma fonte não renovável e que se dispersam por nossos corpos e pela Natureza.
Parece que a vaidade do pouco uso e descarte não nos deixar respirar outros mundos possíveis.
E é para isso, também, que a Educação, o Ensino de Ciências deve voltar seus olhos: para uma Educação Científica que promova corpos que saibam lidar com as relações de poder e os modos de captura oriundos das relações entre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente.
Talvez este seja o momento de criar novas rotas de pensamento que cadenciam essas discussões. Talvez uma pedagogia diabólica, como diria a bruxa Sandra Mara Corazza, em seu livro “Para uma filosofia do inferno na educação: Nietzsche, Deleuze e outros malditos afins”, que anuncie conhecimentos infames e liberdade às bruxas, às all-quimistas. Afinal, como afirma a neopagã StarHawk, “a fumaça das bruxas queimadas ainda paira nas nossas narinas”.
Que outras químicas e ciências menores, diabólicas e impossíveis podemos pensar com As Bruxas da Contemporaneidade? Quais as receitas de feitiçarias que elas podem nos revelar?
* Bruna Fary é professora e pesquisadora. Licenciada em Química, doutoranda e mestra em Ensino de Ciências e Educação Matemática pela UEL. Membra do GEPPMat — Grupo de Estudo e Pesquisa do Pensamento Matemático. Possui alguns desassossegos quanto ao papel social da Educação Científica e acredita que é por esse viés que se realizam micropolíticas e microrrevoluções, a fim de construir uma sociedade que conheça o que lhe captura e que saiba lidar com as relações de poder. Pensa que ser professora implica fazer as pessoas pensarem, retirar o pensamento da inércia, envolvendo muita entropia e desordem num sistema, expandindo-se como moléculas gasosas que ocupam o volume que desejarem.