Face mais cruel do país é impedir que crianças vulneráveis tenham sonhos e possam realizá-los.

Vem com a graça da ginasta brasileira Rebeca Andrade, medalhista de ouro e prata nos Jogos Olímpicos de Tóquio, uma das lições de determinação mais importantes dos últimos tempos para todos os brasileiros. Filha de mãe solo, ela aprendeu cedo o valor de se empenhar para conquistar seus sonhos.

Não foi uma trajetória fácil para ela, sem dúvida. Nem para a sua mãe. Com oito filhos para criar e sustentar, a mãe precisou se empenhar muito e, principalmente, ser a força que impulsionou a filha quando quis desistir de tudo por conta de três cirurgias no pé e no joelho.

O que chama a nossa atenção é o papel dessa mãe. Moradora de Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, ela é como as milhares de outras mães espalhadas por este país. Aliás, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que elas são mais de 11 milhões, e que 63% das casas chefiadas por elas estão abaixo da linha da pobreza. Nessa situação, elas são pai e mãe, tendo que prover os filhos e educá-los porque a figura paterna é ausente.

A realidade difícil antes da pandemia se agravou desde o ano passado, com a chegada da Covid-19. Para piorar, essas mulheres são invisíveis para as políticas públicas do governo, especialmente sob o comando de Jair Bolsonaro – em que o desmonte e o desprezo aos mais vulneráveis tem se tornado paulatinamente uma marca infeliz.

Rebeca é uma exceção. Conseguiu vencer, com o apoio da mãe, todas as barreiras que insistiam em enquadrá-la e mantê-la na posição de menina negra, pobre e da periferia. É um talento, sem dúvida, mas teve oportunidade e soube agarrá-la.

Podemos imaginar quantas Rebecas não têm a chance de cruzar a periferia em busca de um futuro melhor? Ou quantas têm a mesma chance, mas não têm condições nem de perceber a oportunidade batendo à sua porta?

Quantos e quais são os talentos que o Brasil perde ano a ano ao ignorar que a periferia é um potencial? E que é preciso, sim, investir em educação e em políticas sérias que resgatem essas crianças e seus sonhos?

Levantamento do Banco Mundial mostra que o país desperdiça quase metade do talento que suas crianças podem adquirir se tivessem condições adequadas de educação e de saúde. Pelo cálculo do banco, crianças nascidas em 2019 deverão chegar ao mercado de trabalho com 55% do seu real potencial. O cenário, que era ruim, também piorou com a pandemia porque as condições de acesso ao estudo foram desiguais (mais uma vez, os vulneráveis foram os mais afetados).

Até quando vamos ver tantas Rebecas da periferia, em famílias chefiadas por mães solo, perdendo a chance de modificar seu destino porque o Brasil, seu país, insiste que são seres humanos de segunda ordem? Ou seja: não têm garantidos o acesso a direitos básicos como cidadania, educação e saúde. Assim, precisam sair cedo para ajudar a colocar comida em casa.

Demoramos muito para ser, como disse o nadador Bruno Fratus, medalha de bronze nos 50 metros livre, “…o povo que a gente pode ser, o país que a gente pode construir”. Vou além: vamos permitir que crianças sejam crianças e tenham a chance de escolher seu futuro – sejam elas da periferia ou não.

* Paola Carvalho é diretora de Relações Institucionais da Rede Brasileira de Renda Básica, uma das organizações integrantes da campanha Renda Básica que Queremos.

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  • Paola Carvalho

    Assistente social, especialista em Gestão de Políticas Públicas na perspectiva de gênero e promoção da igualdade racial,...

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