Professoras defendem a necessidade de se rever a forma como as instituições de ensino superior têm lidado com a questão da violência contra a mulher
A foto viralizou nas redes sociais, repercutiu na imprensa e ganhou alcance nacional em abril. Nela, cinco estudantes do último semestre do curso de Medicina da Universidade Regional de Blumenau (FURB) faziam gestos com as mãos em alusão ao órgão sexual feminino. Dois deles apareciam na imagem com jaleco e estetoscópio, a exemplo dos alunos da Universidade de Vila Velha, posados para imagem semelhante dias antes. Em nota, à época, a FURB se posicionou sobre o episódio, com repúdio e alegando que “a postura é incompatível com os valores que regem a instituição”. Uma comissão foi criada para apuração dos envolvidos, aberto processo administrativo contra os estudantes e o caso corre em sigilo.
O fato e a foto foram públicos, em frente ao Teatro Carlos Gomes, numa das principais e mais movimentadas ruas da cidade. No entanto, o processo foi posto em segredo. A disparidade da dimensão entre o fato e o encaminhamento pode levar a questionamentos. Afinal, por que temas como esse não correm com a devida visibilidade tal qual foi a ação?
Nem sempre a violência contra a mulher no ambiente universitário revela-se de forma visível. O baixo número de denúncias e, em consequência, de punições, são desafios a serem superados. A pesquisa Violência contra a Mulher no Ambiente Universitário, realizada em 2015 pelo Instituto Avon em parceria com o Data Popular, denunciou que ao menos 56% das universitárias do país já sofreram assédio sexual. Os estudos sobre assédio na universidade demonstram o fenômeno da subnotificação, com um número reduzido de registros formais feito pelas vítimas às instâncias universitárias. Apontam ainda a falta de canais efetivos nas universidades para o acolhimento de vítimas.
Assédio sexual seria a pauta de um dos encontros da programação do Universidade Aberta, anunciado pela FURB para ocorrer em 28 de junho. A universidade, no entanto, cancelou o evento em função da indisponibilidade das palestrantes convidadas. As professoras e historiadoras Ivonete Pereira, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) e Tania Mara Cruz, da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), que viriam ao encontro, aceitaram conceder entrevista por email. Elas defendem a necessidade de se rever a forma como as instituições de ensino superior têm lidado com a questão da violência contra a mulher, enfatizando a necessidade de adoção de medidas mais rígidas para evitar os casos e reduzir as desigualdades de gênero.
Considerando os alarmantes casos de assédio sexual no meio acadêmico, há uma compreensão por parte dos gestores nas universidades de que o assunto deve ser tratado como uma preocupação urgente?
Ivonete Pereira – Não! Primeiro porque os gestores das universidades não concebem esses casos como um dado alarmante da prática cotidiana no espaço acadêmico. Segundo porque, mesmo sabendo dos casos de assédio sexual, a cultura machista (que também impera no meio acadêmico) relativiza a importância desses casos, tornando-os questões de menor importância e de preferência invisíveis; o que, claro, justifica a negligência dos gestores que somente tomam alguma atitude depois de muitas denúncias e do conhecimento público.
Saberiam dizer o que está sendo feito nas universidades com relação aos casos de assédio sexual no ambiente acadêmico?
Ivonete – Infelizmente, por parte dos gestores e Conselhos Universitários não existe uma política de conscientização, esclarecimento e atendimento às vítimas do Assédio, o que existem de fato no inteiro das universidades, muito particularmente nas Universidades Públicas, são iniciativas pontuais de Grupos de Pesquisas (Professores/as e acadêmicos/as) e Coletivos Feministas que, por meio da pesquisa e extensão, organizam mesas redondas, palestras, minicursos e oficinas que visam, não apenas atender a uma demanda de esclarecimento, conscientização e prevenção, mas também de denúncias; tanto de casos de assédios já ocorridos, quanto da negligência dos gestores, que em nome do cuidado com a imagem da instituição e do corporativismo (no caso dos docentes acusados), prefere ignorar e/ou “abafar” os acontecimentos, tornando invisíveis os casos ocorridos, do que de fato tomar alguma atitude em relação ao agressor, que geralmente segue impune.
Tania Mara Cruz – A USP, onde fiz meu doutorado e pós-doc, tem construído uma política em relação a isso. Possui disciplinas sobre relações de gênero em alguns cursos e tem produzido materiais midiáticos para essa discussão. Inclusive na POLI (Escola Politécnica), um lugar que é ainda predominantemente masculino, as estudantes dos Centros Acadêmicos têm produzido vídeos especificamente sobre o assédio. Na UNISUL/SC, onde sou professora do Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Educação, ministro disciplinas nas licenciaturas e na pós sobre a importância de se tratar da questão de gênero e feminista nos espaços educativos. Temos ainda o Grupo de Pesquisa em Educação, Infância e Gênero – GEDIG. Apesar da universidade ainda não ter uma ação explícita contra o assédio, temos a figura da assistência pedagógica, que inclui atender alunas também sobre essa questão. Eu mesma, quando fui assistente pedagógica em período anterior, acompanhei dois casos, ouvimos ambos os lados, advertimos os professores, remanejamos alocações (outros professores) para a disciplina com o cuidado para que as alunas pudessem continuar os estudos sem que tivessem que ter qualquer proximidade com esses professores que, conforme nosso acompanhamento na época, não mais praticaram tais atos.
Quais medidas, na sua avaliação, seriam mais eficazes no combate aos casos de assédio na universidade?
Ivonete – Primeiro, entendo que em todas as Instituições, principalmente de ensino, devam existir políticas de prevenção, que passam inicialmente por um processo de esclarecimentos sobre temáticas como gênero, machismo, violência de gênero, violência doméstica, diversidade, sexualidade, direitos igualitários, racismo, preconceito, homofobia, gordofobia, entre outros.
Paralelo ao debate constante destas temáticas, que visam entre outras coisas, à prevenção da violência de gênero, mais precisamente a violência sexual, quer seja o estupro, quer seja o assédio; é importante que as Universidades destinem um órgão/ local específico para receber essas denúncias, com profissionais capacitados e qualificados para lidarem com tais situações. É fundamental, ainda, que as Universidades tenham em seus códigos disciplinares penas previstas para os casos de assédio e que para além de divulgado o teor do código, quando necessário, de fato, seja aplicada a pena prevista no interior da Instituição e que para além disto, a própria Universidade assegure à agredida todo o apoio e acompanhamento, tanto médico, quanto jurídico ao levar o agressor à justiça comum.
Tania – Creio ser importante realizar as medidas “no final da linha”, ou seja, denúncias e punições aos culpados e divulgação de pessoas a quem essas alunas podem recorrer, mas penso ser necessário realizar na universidade cursos de formação para professores e alunos, ações que ainda são tímidas, a meu ver. Palestras são insuficientes, porque não se ouve o senso comum, não se pode problematizar… Curiosamente, pela minha experiência de formadora feminista realizada junto com estudantes universitárias na minha universidade e em outras, não é só na área de exatas que ocorre uma predominância de assédio, mas também na área de Direito. A participação das estudantes em Centros Acadêmicos discutindo temáticas feministas é fundamental para impor respeito e trabalhar os aspectos culturais nas relações de gênero.
Atribuir a responsabilidade à vítima tem sido uma postura comum com relação aos encaminhamentos aos casos de assédio sexual. Por que isso ainda ocorre?
Ivonete – Isso é fruto da cultura machista, que é reproduzida pela sociedade e difundida entre as gerações. Essa cultura prega a suposta superioridade do homem sobre a mulher, impondo regras de comportamento e atribuindo-lhes um papel social de convívio no âmbito doméstico/privado, discriminando todas as mulheres que se opõem a todos esses preceitos. Essa cultura oprime mulheres e naturaliza a violência de gênero. Mulheres que não se comportam conforme os padrões da cultura machista são alvos do preconceito de gênero, sendo acusadas da própria violência sofrida e pelos motivos mais pífios e superficiais, como o tipo de roupa que vestem, a cor do batom que usam, a maneira de andar e o tipo de companhia ou falta dela.
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Tania – Atribuir a culpa à vítima é uma manifestação clara das relações de poder e o mesmo se diz de indígenas, negras/negros e homossexuais em geral: se recusar a “ficar no seu lugar”, ou “agir conforme a moral dominante, determinada pelo opressor”, incomoda. Por que as/os indígenas não se aculturam com os brancos e desistem de suas terras? Por que negros/as insistem em ocupar espaços tradicionalmente brancos? Por que gays, lésbicas e transexuais não permanecem camuflados? Enfim, por que as mulheres insistem em ser donas de seus corpos e desejos? A cultura alimenta isso no cotidiano de todos os espaços de formação que por sua vez se reflete na falta de punição no final da linha. Temos o convencimento e a coerção contra as vítimas…
Qual o melhor caminho para denunciar?
Ivonete – No interior das Universidades nos órgãos colegiados (coordenação de curso, coordenação de centro, coordenação de campus e conselho universitário). Além de denunciar no interior da universidade, a agredida deve denunciar em algum órgão de atendimento público, como Delegacia da Mulher, Polícia Civil, Polícia Militar, Promotoria Pública (na ausência de um, se dirigir ao outro) e ainda pode denunciar no Ligue 180, onde terá um atendimento certo e eficaz.
Podemos afirmar que o histórico como as universidades lidam com esses casos não estimula as denúncias?
Ivonete – Certamente que a pouca importância dada à gravidade do problema nas universidades e a tentativa de silenciamento dos casos influencia diretamente na não realização da denúncia por parte de muitas mulheres, por conta do entendimento de que a denúncia não será tratada com a devida seriedade, correndo ela, a agredida, o risco de sofrer represálias por parte de seu agressor e da própria instituição. É comum a mídia noticiar casos de estupro e/ou assédio nas comunidades acadêmicas, sendo que, na maioria das vezes, o agressor sai impune ou recebe uma pena branda, continuando ele na convivência com a agredida, intimidando-a ou punindo pela denúncia feita.
O que caracteriza o assédio sexual? Como ele se define?
Ivonete – O assédio sexual é uma das formas de violência de gênero que, segundo o art. 216-A do Código Penal, é caracterizado como “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico”. Há, portanto, uma relação de poder nessa violência, em que o agressor se aproveita da (suposta) condição de vulnerabilidade de sua vítima para obter favores sexuais, físicos ou verbais, sem o requerimento ou consentimento dela, provocando grande constrangimento e ofensa à agredida. Vale ressaltar que, não necessariamente precisa existir uma relação de poder explícita, embora estes casos sejam os mais comuns. Contudo, há casos de assédio entre conhecidos e/ou desconhecidos, que podem ocorrer em diversos e diferentes espaços tanto no interior de qualquer instituição e local, quanto nas ruas. A não presença da hierarquia (chefe ou professor, por exemplo) não deve desqualificar tal ato ou fazê-lo parecer de menor importância, pois tais casos ainda continuam sendo assédio, que ocorrem justamente nas relações de gênero, em que o homem (conhecido ou não) se julga superior a mulher agredida.
Por que parte das vítimas prefere ainda o silêncio?
Ivonete – Elas não preferem o silêncio, há um entendimento muito forte no senso comum de que as mulheres que não denunciam, gostam de sofrer violência. Isto não é verdade e não tem nenhum fundamento lógico! Ninguém gosta de sofrer qualquer tipo de violência; ninguém gosta de sofrer. As mulheres não denunciam porque estão presas em um ciclo de violência, e este ciclo tem diversas interfaces, como presença da dependência emocional, o medo, ou por acharem que a denúncia será um constrangimento, uma exposição que acarretará mais prejuízo a elas do que a punição ao seu agressor. A decisão sobre a denúncia é muito pessoal e infelizmente essa decisão é desencorajada pela negligência das autoridades (universitárias, policiais e jurídicas) na punição de seus agressores; pela possível culpabilização delas e da estigmatização que sofrerão após a denúncia. Porém, enfatizo que é importante fazer a denúncia para coibir essas práticas, uma vez que estamos vivendo tempos em que essa cultura machista está sendo posta em xeque e a sociedade está se abrindo para compreender as discussões que vêm sendo travadas. As delegacias especializadas de atendimento às mulheres vêm sendo cada vez mais e melhor preparadas para atender esses casos, através da capacitação dos profissionais que lá atuam e na adoção de medidas que contribuem para a proteção das agredidas. Ainda há muito a ser feito, mas avanços têm sido conquistados e as denúncias colaboram para isso.
Tania – Não raro, a própria vítima incorpora o discurso do opressor e se vê culpada de algum modo por aquela situação.
É necessária uma extrema confiança para que te procurem e façam uma denúncia porque a vítima está muito fragilizada e essa relação tem que ser construída antes, com mecanismos de apoio institucional (setores específicos e bem formados) ou de organizações feministas. Mas também tem o medo – o que acontecerá depois? Como sua família e amigos reagirão? E no caso da estudante universitária: quais as garantias de continuidade dos estudos sem perseguição? Será ainda aluna do assediador? Circulará nos mesmos espaços que o assediador? Como os outros a tratarão após tal denúncia, já que há uma rede social e profissional em torno do ensino superior? Não se pode desconsiderar estas questões.
Como avaliam as punições e as responsabilizações aos agressores?
Ivonete – Seja por negligência dos gestores das instituições e/ou falta de conscientização da comunidade acadêmica, a universidade parece ser um espaço onde as mulheres estão expostas a qualquer tipo de violência de gênero. Pouco tem se avançado em relação às penas, o que está intimamente ligado ao silenciamento dos casos, a culpabilização das mulheres e o pouco reconhecimento do assédio como uma violência tão séria e grave como qualquer outra violência (como a física, por exemplo), o que faz com que os agressores fiquem impunes ou recebam penas brandas, continuando na convivência com as agredidas, repetindo a agressão, ou cometendo novas agressões contra ela, bem como fazendo novas vítimas.
Quais são as formas de assédio sexual e violências contra a mulher mais comuns na universidade?
Ivonete – As indiretas, insinuações e cantadas são as mais comuns, muitas dessas formas de violência avançam para tentativas de aproximação e apelo sexual que se caracterizam por passadas de mão a beijos forçados. Quando os agressores são repreendidos e rejeitados, as mulheres tendem a sofrer novas formas de violência, desde violência física, moral e psicológica, à desqualificação intelectual e, no ápice, a violência sexual, que teve o seu início lá no toque sem consentimento, terminando no estupro.
Considerando o meio universitário, como espaço mais elevado da educação e ciência, onde se deveria ter garantido um ambiente de vanguarda à frente da sociedade patriarcal, como analisam a prática do assédio sexual nesses espaços?
Ivonete – Primeiro qualquer tipo de prática de violência deve ser inconcebível em qualquer âmbito e espaço, segundo, deve-se ter garantido e efetivado o combate da lógica e das práticas patriarcas no cerne da sociedade e não só no espaço da ciência e educação, neste caso nos espaços universitários, afinal, a sociedade no geral, através das diferentes relações sociais e culturais também se configura como um espaço de produção e reprodução de conhecimentos e práticas. Por outro lado, como o próprio enunciado da questão declara, a universidade deveria, de fato, ser um local que garante a seguridade de sua comunidade, incluindo, claro, o público feminino. Em tese, este deveria ser um local de convívio entre pessoas bem instruídas e esclarecidas, que é o comportamento que se espera de seu público. Em vista disso, a prática do assédio sexual nesses espaços é inconcebível. Qual o tipo de futuro que a sociedade espera de futuros profissionais, bacharéis e licenciados, que não conseguem respeitar nem a si mesmos? A sociedade nada mais é do que o reflexo de sua própria educação.
Tania – A universidade enfrenta as mesmas contradições presentes nos outros espaços sociais. Não é a escolarização ou conhecimento científico que determina superação das desigualdades e diferenças; as questões de gênero envolvem elementos da construção afetiva e cultural dos sujeitos e não deve ser tratada, portanto, como uma questão cognitiva ou de mais conhecimento; cabe colocar na pauta a reflexão sobre as relações de poder, de classe, de construção da subjetividade de homens e mulheres, de masculinidades e feminilidades, na nossa cultura e em outras. Mas isso só se dá na medida em que as mulheres, protagonistas da luta contra o assédio, assumirem essa bandeira e desmascararem a hipocrisia sobre as relações amorosas e sexuais presente em nossa sociedade.
Como avaliam a criação de Coletivos feministas criados para acolher as vítimas e tirar os casos da invisibilidade?
Ivonete – É uma importante e necessária iniciativa. São ações positivas que visam o acolhimento e o engajamento político-social entre mulheres que cultivam, dentre outros, o objetivo comum de lutar contra a desigualdade de gênero. Não só amparam as mulheres agredidas, como também empoderam-nas para fazer frente às diferentes formas de violência. É a personificação do conceito de sororidade. Para além disto, esses Coletivos surgem para exigir providências dos gestores para a coibição dos diversos tipos de violência, criando junto às defesas já existentes, mecanismos de resistência e proteção às mulheres, assumindo um papel central na luta e permanência de melhores condições às mulheres, bem como, um lugar livre de violência.
Tania – Denunciar os casos é fundamental, mas se esses mesmos coletivos não implementarem ações de formação feminista para homens e mulheres, a mudança será aparente. A punição é necessária mas é circunstancial, tornar uma sociedade cada vez mais punitiva não nos levará, por si só, à uma sociedade em igualdade de condições para homens e mulheres.