Durante o Jornal do Almoço, da RBS TV (emissora afiliada da Rede Globo no RS), na segunda-feira, o apresentador Marco Matos entrevistou três dos candidatos eleitos à vereança em Porto Alegre: Jesse Sangalli (PL), Atena Beauvoir Roveda (PSOL) e Natasha Ferreira (PT).
O primeiro ponto a ser observado é a razão pela qual cada um dos entrevistados estava presente. Jesse Sangalli foi entrevistado por ser o candidato mais votado à Câmara Municipal.
Atena e Natasha, por sua vez, estavam lá por uma questão histórica, haja vista que ambas foram as primeiras pessoas transgêneras eleitas para a Câmara Municipal.
Tal elemento é importante, pois também irá determinar os temas das perguntas. No caso de Jesse, as questões foram sobre como a diversidade de pessoas melhora o ambiente de uma cidade e qual seria a principal discussão na Câmara Municipal nos próximos quatro anos. Ele comentou que o tema mais importante a ser debatido para a próxima legislatura é o Plano Diretor. Por outro lado, para Atena e Natasha as perguntas versaram sobre questões identitárias e as minorias.
À primeira vista, estaria tudo dentro da normalidade. Afinal, Atena e Natasha são, respectivamente, travesti e mulher trans, e como tais deveriam comentar justamente sobre tais assuntos.
Entretanto, tais perspectivas coadunam com o que o pesquisador de sociologia, Nirmal Puwar, defende em Space Invaders (invasores do espaço): “Não sendo a norma somática, eles não têm o direito indiscutível de ocupar esse espaço. No entanto, eles ainda são insiders. Sua chegada põe em relevo o que pôde passar como a norma somática invisível, não marcada e não declarada”. É neste sentido que Puwar entende que corpos como os de Atena, Natasha e outras pessoas trans, incluindo a própria autora deste texto, são invasores de espaço porque são corpos que não pertencem àquele determinado espaço e que, por isso mesmo, estão “fora de lugar”.
A formulação da pergunta de Matos para Atena é um exemplo típico, pois, logo na abertura, ele afirma que se “vê algo que é muito interessante”. Este algo muito interessante é a eleição de Atena e Natasha, que, apesar de serem caras conhecidas no Legislativo municipal porto-alegrense, na condição de suplentes que assumiram, agora, conquistaram mandatos efetivos.
Na realidade, o que ocorre é que Atena e Natasha foram entrevistadas, muito mais pelo fato do que representam dentro do contexto político municipal do que por terem alcançado votações significativas. Tanto é que, enquanto Jesse foi apresentado como o vereador eleito com a maior quantidade de votos, Atena e Natasha foram apresentadas como tendo sido as primeiras mulheres trans a serem eleitas para a Câmara Municipal de Porto Alegre – apesar de cada uma ter feito mais de 4 mil votos.
A pergunta formulada à Atena, é a respeito do que isso representa nesse momento. E aqui Matos refere-se especificamente ao fato de terem sido eleitas vereadoras. A impressão que se tem é a de que Atena e Natasha são entrevistadas por conta de um dos tantos critérios de pauta jornalística que não são nada lisonjeiros: o do apelo, da curiosidade, do diferente, o do quase bizarro.
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E é este aspecto que reflete a invasão de espaço. Atena e Natasha são convidadas a virem a público para serem apresentadas como se tivessem sido retiradas de uma jaula de um zoológico humano europeu qualquer dos idos do século 20.
Para Natasha, Matos questiona se o mandato não se resumiria a tratar apenas de defender o gênero do qual ela faz parte: “Não é só isso, o mandato de vereador, é isso?”. Assim, mesmo quando ele quer ressaltar o fato de que o mandato delas não se resumirá às questões trans, ele ainda necessita recuperar a identidade de gênero delas como uma forma de legitimar suas presenças naquele espaço.
Neste caso em particular, é possível se remeter à questão da camisa de força, conforme aludida por Puwar, e da luta que isso implica para que aquela pessoa seja admitida em posições “convencionais”, uma vez que, como invasoras de espaço, Atena e Natasha não teriam direito àquele lugar. E aqui Puwar afirma que “Estamos testemunhando uma fome multicultural incansável na busca pela diversidade nas instituições. Paralelamente a essa mudança, tradições de longa data parecem estar vivas e bem, pois o espiritual, o autêntico, o exótico, o religioso, o cerimonial, o inocente e o bárbaro continuam a ser formas dominantes pelas quais diversos corpos são recebidos”.
E é, após a citação de um relato da artista Sonia Boyce que Puwar afirma: “O relato de Boyce revela a camisa de força das identidades marcadas, que repetidamente tentam trancar o sujeito falante fora do discurso universal e dentro de enclaves étnicos particulares”. E essa observação é feita a partir de uma reflexão da própria Boyce que declara que sempre precisa nomear quem ela é.
Em outro questionamento à Atena, Matos indaga: “Qual é a pauta das minorias que tu queres trazer para discussão?”. Este questionamento reforça o discurso da camisa de força, pois, para o jornalista, Atena, assim como Natasha, só poderiam focar suas pautas na questão das minorias, pois este seria seu “lugar de fala”.
Na sequência de Atena, foi a vez de Natasha responder se concordava, ou não, com o que sua colega pessolista comentara. E quando Natasha começou a se manifestar foi subitamente interrompida por Marco Matos, que acrescentou: “Mas não tem algo que pra ti seja relevante trazer para discussão, algo que esteja à sombra?”.
Matos encerra a entrevista exaltando o fato de que os três são “representantes legítimos, eleitos”.
O fato é que, a partir de uma singela entrevista jornalística, é possível se verificar, desde que atentamente, a existência dos pressupostos apregoados por Puwar no que concerne à invasão de espaço, à camisa de força e à norma somática.
Também é fato que, cada vez mais, pessoas transgêneras têm sido eleitas para cargos nas três esferas do Legislativo. E este é o aspecto que gera o maior incômodo, pois, o espaço do poder foi pensado não para pessoas abjetas, como as pessoas transgêneras, mas para aqueles que representam a norma somática – homem, branco, cis, hétero, classe média ou alta…
As presenças de Atena e Natasha na Câmara Municipal de Porto Alegre, não são apenas uma vitória delas, mas de todas aquelas pessoas que as apoiam e/ou votaram nelas.
Mais do que nunca, a existência não de uma, mas duas vereadoras trans incomoda todos aqueles que costumam combater as pessoas trans. Atena e Natasha são um lembrete real e concreto de que pessoas trans existem e que estão começando a ocupar espaços de poder.
É certo, por isso mesmo, que elas deverão ser alvo de muita transfobia e perseguição política em Porto Alegre. Contudo, o que realmente importa é que as pessoas trans decidiram começar a ocupar espaços políticos para lutar, elas mesmas, por seus direitos.
Viva Atena! Viva Natasha!