Uma notícia chamou a atenção na semana passada. Uma juíza e diretora de um fórum de uma cidade de Iguaba Grande, interior do Estado do Rio de Janeiro, na Região dos Lagos, determinou o uso de réguas para medir as saias das advogadas antes do acesso ao fórum da cidade. Segundo a magistrada, a roupa das profissionais não pode estar mais de cinco centímetros acima do joelho, já que, quando uma mulher usa um vestido curto, ela “tira o foco” dos homens em possíveis audiências.

Para garantir o cumprimento do comprimento, a juíza mandou afixar na entrada do fórum uma imagem de “referência”. E autorizou os seguranças a fazerem a “checagem”, ou seja, literalmente medir com réguas as roupas das profissionais, sendo esse um critério para o acesso a um local que, em tese, guarda a justiça, garante o exercício do direito a todas/os, sem qualquer forma de preconceito ou precondição.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) estabelece alguns princípios e critérios para o exercício da profissão de advogado. É necessária a capacidade civil, o diploma ou a graduação em direito, título de eleitor, quitação do serviço militar, se brasileiro, aprovação em Exame de Ordem, não exercer atividade incompatível com a advocacia, idoneidade moral e que seja assumido um compromisso perante o conselho (assim como ocorre em muitas outras carreiras). Nenhuma palavra sobre vestimentas, ou o tamanho delas, certo? E é por isso mesmo que a “medida” da referida juíza não tem qualquer respaldo legal.

Sobre essa situação, portanto, serão tomadas as devidas providências. A OAB já enviou sua Diretoria de Mulheres até o município, e fez uma blitz da sua Diretoria de Mulheres no local. Por meio de nota, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) abriu um procedimento para apurar as denúncias. Porém, essa situação, claramente aberrante, está longe de ser única. E, se olhada com mais cuidado, pode talvez nos dizer algo muito importante sobre o momento que vivemos.

Até pouco tempo, o espaço ocupado pelas mulheres era restrito. Restrito ao universo do lar, das atividades domésticas, do cuidado do marido e dos filhos, no máximo, à gestão da casa e da vida da casa. A ocupação da esfera pública, o exercício da política e do direito pelas mulheres é ainda muito recente em nossa história.

A primeira mulher a exercer a advocacia no Brasil o fez anos depois de se graduar em Direito, não sem escandalizar sua família e toda a sociedade. Primeira a entrar em um Tribunal do Júri, Myrthes Gomes de Campos enfrentou uma platéia lotada. O fato, totalmente inusitado para a época, foi amplamente noticiado nos jornais. Todos queriam assistir a atuação da primeira advogada brasileira. Ela não decepcionou: surpreendeu o juiz, os jurados e até o réu com o seu profundo conhecimento do Código Penal e, sobretudo, pelo seu poder de argumentação. Venceu o promotor até então considerado imbatível, e conseguiu a absolvição do réu. Isso tudo no longínquo ano de 1899.

Corta para 2019. A presença da deputada estadual Ana Paula da Silva, conhecida como Paulinha (PDT), durante a cerimônia de posse no dia 1º de fevereiro na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) provocou grande repercussão nas redes sociais. Uma foto tirada no dia da posse e postada no mesmo dia numa página de rede social teve imediatamente milhares compartilhamentos e comentários. Boa parte deles, ofensivos e direcionados à sua vestimenta, um macacão vermelho e decotado.

No Rio de Janeiro, o deputado Alexandre Knoploch (PSL) discursou no plenário da Assembleia Legislativa do Estado para anunciar que algumas parlamentares não se vestem de forma “adequada” para seu trabalho legislativo. Aparentemente, para o deputado, a segurança pública e outros projetos são menos relevantes que a roupa que as mulheres usam no plenário. Seriam poucos os problemas enfrentados pelo Estado e sua população? Ao fim da sessão, o clima esquentou, houve muito bate-boca entre os parlamentares. A deputada estadual Renata Souza (PSOL), afirmou que seria feita uma nota de repúdio pela comissão de Direito da Mulher da Casa e que entraria contra o deputado no Conselho de Ética. No fim, perdemos todos.

Ainda mais recentemente, a crise no PSL, envolvendo apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, de um lado, e o presidente do partido, o deputado federal Luciano Bivar, de outro, resultou em uma situação de violência política de gênero. O alvo foi a deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP), que criticou o partido e sofreu ataques relacionados à sua aparência de políticos da própria legenda.

Mas talvez a situação mais emblemática seja aquela enfrentada pela advogada Valéria dos Santos. Ela foi algemada e presa dentro de uma sala de audiência em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, detida por policiais militares após se negar a sair do local, com o argumento de que que o caso se enquadrava como resistência. Entretanto, o estatuto da advocacia, regulado por lei federal, determina que, “no exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações”. Ou seja, ela advogada não poderia ser algemada durante o desempenho de sua função. É o direito que exige nas cenas registradas por vídeos que todos puderam ver na internet. No fim, a advogada venceu a causa, uma cobrança indevida feita contra sua cliente.

Ao contrário do que muitos podem pensar, orientações sobre como mulheres advogadas devem se vestir estão em quase todos os espaços relacionados ao exercício do direito, seja nas salas da audiência ao Superior Tribunal de Justiça. Regras frouxas que, não raro, podem dar vazão a inúmeros abusos.

Se já está provado que temos que estudar mais, nos preparar muito mais, que, não raro, ganhamos menos para exercer a mesma função, não basta às advogadas conhecer as leis. Elas também têm que, com seus corpos e vestimentas, continuar sustentando o signo da pureza, do recato, do atraso. Que chegue o tempo em que a única régua usada para medir nossos esforços e resultados profissionais seja a da competência, e que nossos corpos deixem, finalmente, de ser considerados perigosos. Por essa luta, não estamos dispostas a ceder nem um centímetro.

*Renata Rodrigues é jornalista e ativista. Tatiana Moreira Naumann é advogada especializada em Direito de Família e atende principalmente mulheres.

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