Por Letícia Carolina Nascimento*
Faz um tempo que tenho evitado escrever sobre BBB, não por considerar o programa como algo culturalmente inferior, sou versada em estudos antropológicos, não serei etnocêntrica ao rotular algo que não me agrada como inferior, apenas é um programa que diverge de meus interesses.
Apesar de não assistir, eu acompanho tudo pelas redes sociais, é quase impossível não acompanhar.
Tem me incomodado bastante a ideia de que precisamos de treta e confusão para termos entretenimento.
Um paradoxo que as mesmas redes sociais que se insuflam contra falas de defesa do nazismo se alimentem da violência como diversão. É trocar seis por meia dúzia.
O palco foi montando e mais uma vez a protagonista das violências foi uma mulher cisgênera e negra, impossível não se colocar no lugar dela, não chocar, não se sensibilizar.
Alguns nas redes comentam: mas foi exagero!
Eu respondo: vocês pediram por isso.
A Globo serve o prato que é pedido, as semanas se arrastam e o que o público clama? Violência! Que não era servida como prato principal, as dinâmicas da segunda então começaram a juntar ingredientes para uma receita amarga e indigesta.
Quem poderia imaginar que uma mulher negra seria tão atacada…?
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E agora os/as defensores/as da “paz mundial” pedem a expulsão da Maria, pois seus clamores por violência saíram dos limites? Assemelham-se, de certo modo, aqueles/as que exigiram ordem ao nazismo, ao fascismo e ao bolsonarismo, e agora choram arrependidos.
Expulsão da Maria não basta, precisamos discutir o tipo de entretenimento que queremos assistir na televisão, especialmente quando falamos em canais com concessão pública.
Precisamos exigir que os patrocinadores não compactuem com rotinas de estimulem a violência. Afinal o patrocínio é um investimento na medida em que o público assiste e comenta, se o público endossa violências as empresas se isentam de responsabilidade social.
Eu lembro que na Fazenda, Jojo Todynho disse uma vez: “Hoje eu não tô a fim de discutir”, ao que apresentador retrucou “Essa é a dinâmica do jogo”.
Programas como a Fazenda e o BBB estimulam a violência como entretenimento sim, e fazem isso com o aval do público. Precisamos repensar nossos lugares como expectadores/as!
As rotinas se repetem, eles armam o palco para que nossas vulnerabilidades virem atração, empatia não é exigida, assim como nos zoológicos humanos a carne mais barata é servida, a carne mais barata gera lucro de milhões para aqueles que ainda exercem o poder frente a um público completamente alienado de seu papel social.
Nós pessoas negras, LGBTQIAP+, pobres, passamos a vida brigando, tem dias que a gente só quer paz, mas ir para esses programas é como tudo fazemos na vida, significa assumir um risco de mais uma vez, outra vez, de novo, ser alvo de violências, como se não fosse essa a nossa trajetória.
*Letícia Nascimento é mulher travesti, negra e gorda. Filha de Xangô e Oyá no Candomblé Ketu. Ativista do Acolhe Trans e do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans). Pesquisadora e docente da Universidade Federal do Piauí (UFPI), dialoga sobre o transfeminismo e as possibilidades de imaginar outros mundos.