O modo de viver da sociedade do consumo há tempos cambaleava com seus deuses, o mundo estava girando mais rápido que a rotação do planeta. O insustentável mundo vivia agonizando entre gritos e lamentos de ajuda dos órfãos da terra Brasil, que nos chamamos de Pindorama: indígenas, negros e pobres. A pandemia chegou ao Brasil e nos nossos territórios indígenas a luta é para sobreviver. Não é a primeira vez que enfrentamos os vírus dos estrangeiros, que nos mata em um genocídio costumeiro. Penso sobre o falar da professora e codeputada Chirley Pankára (PSOL-SP) em relação aos “maus lençóis”, quando era dado aos indígenas roupas infectadas de vírus, como tuberculose, tifo, entre outros males para nos matar. O uso das armas biológicas no Brasil para extermínio dos povos indígenas tem de ser lembrada, pois é algo que nos tirou povos e muitas nações. E pouco se fala na atualidade.

Fomos reduzidos e, hoje, na atualidade, não chegamos a um milhão, segundo o Censo IBGE 2010. Os mais de 305 povos indígenas somam 896.917 pessoas. Destes, 324.834 vivem em cidades e 572.083 em áreas rurais, o que corresponde aproximadamente a 0,47% da população total do país. O antropólogo Darcy Ribeiro[2] nos estudos sobre os povos indígenas afirma que desapareceram mais de 80 povos indígenas na primeira metade do século 20:

“O extermínio de muitos povos indígenas no Brasil por conflitos armados, as epidemias, a desorganização social e cultural são processos de população que não podem ser tratados sem uma análise das características internas e da história de cada uma dessas sociedades. 1

 

A colonização existe. Temos de pensar não linearmente, mas a partir dos cosmos indígenas, pois o processo de genocídio e ecocídio atinge todos nós. O que muda é a carne que abastece o esqueleto da colonialidade. A estrutura busca refinamentos conforme o tempo linear existente. Mas o monstro ainda se alimenta de todos os povos excluídos em uma sociedade binária, cristã, ocidental e estrangeira aos povos originários.

“A humanidade precisa querer ser salva”, pois nós povos indígenas estamos há séculos tentando e resistindo aos ataques e violências, para viver, e são os nossos biomas, onde vivemos. E daí a necessidade de defesa dos territórios sagrados e espirituais que vivemos.

E necessário compreender a mensagem da Terra, ela está dizendo basta, e se ela morrer todas nós morreremos. A sociedade precisa entender a capacidade de mudar a sua lógica. A essência da vida está em nossas mãos, no entanto, estamos à beira do extermínio. O atual governo com seu plano genocida, não prejudica somente os que lutam para sobreviver no seu habitat, mas ameaça toda a humanidade.

Os ruídos da escuridão na grande chuva não nos assustam, pois estamos com o coração preenchido com a espiritualidade e amor pela nossa mãe, na esperança de um viver, não espero um mundo melhor, e sim outro cosmo. A utopia pode deixar de ser e virar outra palavra: ação. Somos tão frágeis, como uma luz de fogueira, e forte como o fogo que queima. O sol é o fogo e nós somos parte desta luminosidade na terra.

Não sei qual será o espanto. Cospem ódio pelas bocas nas redes sociais, mas a atitude mesmo não passa de um mundo virtual. A esquerda enfraquecida não revisa os seus erros, de ter feito política de acordos, há uma direita fascista e sangrenta e no meio de tudo isto:

Povos Indígenas e Negros que vivem uma realidade que não está nas redes sociais.

Não sei qual o espanto? Porque estão se espantando com a sua imagem refletida nas águas dos rios. Realmente alguém pensou ou vislumbrou quem seria diferente? Não será. Estamos à beira da finalização do golpe, e não me fale em discurso de paz e amor. Quando que os povos Indígenas tiveram paz e o amor neste país?

Não sei qual o espanto do espantalho que criaram, imagem dos seus criadores, penso que ele nada mais é que o fruto de sociedade adoecida e de consumo. Caiu a máscara persona deste teatro que o brasileiro é cordial, amigo. Nunca foram para nós povos Indígenas. E com todo o respeito que tenho pelos não Indígenas que estão nos ajudando e apoiando, os que chamam de raros, a sociedade brasileira é: racista, meritocrática, homofóbica, lesbofóbica, indiofóbica e excludente dos pobres.

O resultado do ovo da serpente que veio da Europa e teve seu lugar para nascer novamente no mundo.

Não sei qual o espanto, estamos à beira de uma ditadura. Estamos contidos por uma ditadura sanitária e uma necropolitica em curso que nos tira os pedaços, feito urubus quando comem a carniça dos nossos  sonhos que chamaram de Liberdade e Democracia.

Sinceramente, isto tudo era previsto. Então carxs, não se espante, a teoria e a prática construindo a história, resta saber o que irão fazer?

Povo Apurinã em sua Festa Xingané, no Amazonas/Foto: reprodução

Nós, Povos Indígenas sempre lutamos para sobreviver, e iremos sobreviver. E como disse uma Pankararu em uma palestra na USP em 2019: “Este governo está matando mais”. Sempre fomos alvos desta política de extermínio e grilagem dos nossos territórios. Somos os inimigos primeiro dos que querem nos matar. E quando falo em morte, não é apenas a física, mas de todos os modos que a fatídica colonização nos impõe dia a dia.

E sim, ainda vivemos na colonização, pois o esqueleto é o mesmo, o que muda é a carne deste monstro que se retroalimenta.

A noite recém começou e desta vez será uma noite de chuva. Onde a nossa jiboia da floresta luta contra a serpente do fogo do capitalismo no firmamento. Os povos indígenas clamam os seus espíritos e ancestralidade para uma vitória, embora saibamos que o grande mal esteja depois da pandemia. Se há algo que somos, mulheres, homens, crianças e os não humanos, é resistentes.

Enfim, acostumem-se ao fim do mundo, este tempo está morrendo, como os milhares de corpos que descem boiando no grande rio da morte. Quando a humanidade ocidental plantou suas sementes de destruição, ela libertou os males da terra, somos nós guardiãs e guardiões do visível e invisível da natureza. Nossa mãe está em dores de parto e sangra a cada filha e filho que morre, pois sabe que é menos um, na grande guerra que virá.

As mineradoras e os garimpos estão na Amazônia, os especuladores imobiliários na Mata Atlântica, o pouco que nos resta, o Cerrado, queima para as pastagens e soja. Não estamos querendo apenas salvar a nossa mãe terra, mas a todxs nós. Resta saber se a humanidade deseja continuar a viver na Terra, pois a morte é apenas uma passagem. Nasceremos de novo nestes corpos ou outros, nossa existência é eterna, como a nossa mãe.

 

[1] Título em alusão ao pensamento de Kretã Kaingang-  um dos fundadores da Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL), da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e do Acampamento Terra Livre (ATL).

[2] Darcy Ribeiro: “Culturas e Línguas Indígenas do Brasil”, in Educação e Ciências Sociais, 1957.

*Kuawá Apurinã – Pietra Dolamita é arte educadora e antropóloga.

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