*Por Sirlei Antoninha Kroth Gaspareto

Pensar sobre o feminismo camponês, no Movimento de Mulheres Camponesas – MMC, implica em primeiro lugar reconhecer que existe um processo histórico de luta pela igualdade, travada por mulheres camponesas, presentes em diferentes contextos e espaços sociais. De imediato, isso remete-nos à perspectiva de que mulheres camponesas (indígenas, boias-frias, quilombolas, pescadoras artesanais, agricultoras, meeiras, posseiras, sem-terra, entre outras) de alguma maneira, sempre resistiram, sempre lutaram e sempre travaram grandes enfrentamentos para salvar vidas e defender seus territórios.

Não podemos ignorar a resistência de mulheres indígenas, mulheres negras que não aceitaram a escravidão. Os nomes são muitos, apenas para citar, lembramos: Dandara dos Palmares, Tereza de Benguela, Luísa Mahin, Tia Simoa, Aqualtune e Carolina Maria de Jesus, entre tantas mais.

Muitas delas viveram no interior das propriedades, submetidas à dominação dos grandes senhores de engenho, do café, dependentes do latifúndio, excluídas dos direitos como: saúde, educação, moradia, comunicação, transporte. Mas muitas delas ali resistiram enfrentando oligarquias agrárias. Na guerra do Contestado, quando os caboclos lutaram em defesa da terra e da produção, mulheres estavam lá. Maria Rosa, Chica Pelega, entre outras.

As mulheres sempre estiveram presentes em espaços de organizações, igrejas e movimentos mistos, sejam eles, sindicais, agrários ou outros. Mesmo que tenham sido por muito tempo invisibilizadas e desvalorizadas, nunca desistiram.

Merece destaque o processo construído por organizações e Movimento Populares que se articulam na Coordenação Latino-americana de Organizações Rurais – CLOC e na Via Campesina. Espaços esses cuja articulação se dá em diferentes países do mundo e que, não sem conflitos, disputas e desafios têm se destacado na luta política e na defesa da vida das mulheres – cuja identidade evidencia um feminismo camponês popular que nasce da relação profunda das mulheres camponesas com a terra e a Soberania Alimentar.

Esses processos de luta possibilitaram-nos o amadurecimento da concepção relacionada ao termo popular como sinônimo de classe, caracterizado pela compreensão da luta de classes. Visto que se trata de um processo feminista camponês e popular fortemente ligada às lutas de resistência das mulheres trabalhadoras camponesas, cujo contexto é de resistência e de enfrentamento ao capitalismo colonial e extrativista que há séculos vem invadindo nossas terras, tomando nossos territórios e espoliando nossos bens naturais.

Ignorar que durante anos, a sociedade patriarcal e machista propagou uma contínua demonização do movimento feminista seria um equívoco, pois se analisarmos os processos históricos de luta pela terra vamos nos deparar com um campesinato que não reconheceu como feminista a luta pela terra, a soberania alimentar ou a agroecologia. Da mesma maneira, oportuno será pensar que a luta pelos direitos das mulheres à terra, a produção de alimentos, a defesa e recuperação de sementes, dos territórios e as lutas contra a violência, entre outras, por muito tempo não foram identificadas como lutas feministas.

Entretanto, a resistência das mulheres camponesas tem se mantido vivas por meio de suas lutas concretas, pela capacidade de instaurar processos e percursos formativos, pela incisiva e insistente participação política da mulher na sociedade, nos movimentos populares, fazendo frente às perversidades do sistema capitalista, patriarcal e racista, que insiste em jogar as mulheres na invisibilidade, sem considerar o papel fundamental que desempenham na alimentação, na luta contra a fome e no auto-sustento de suas vidas e solidariedade com os povos do mundo.

Entendemos que a luta pela emancipação das mulheres caminha colada com a luta pela transformação da sociedade e vice-versa. Assim, se faz necessário o direito à terra e aos territórios – resultado que somente será possível quando conquistarmos uma Reforma Agrária Popular, que faça enfrentamento direto contra o agronegócio, contra as transnacionais, contra os transgênicos, contra os agrotóxicos e contra todas as formas de exploração, dominação subordinação e opressão do ser humano e da natureza.

Vale destacar a importância do movimento camponês a nível internacional em reforçar a grandeza do processo de construção do Feminismo Camponês Popular caracterizado por ação e lutas concretas contra os inimigos comuns, conforme mencionado anteriormente. Bem como pela insistente luta em defesa da vida, dos bens naturais, das sementes camponesas; pela igualdade de direitos à terra, saúde, educação, moradia, contra a exploração, a violência; e por um projeto popular de sociedade e agricultura.  Da mesma forma, esta reflexão coletiva deu unidade e solidariedade com outros setores e tornou visíveis as lutas das mulheres camponesas como sujeitos de transformação social.

No caso do MMC, a partir da década de 1980, algumas mulheres em diferentes estados do Brasil, motivadas em processos de formação a partir dos princípios da Teologia da Libertação, da Educação Popular vão despertando e passam a criar organizações autônoma, de gênero, de classe e de luta que, não demorou muito tempo para se firmar enquanto Movimento Social Popular.

Nossa concepção de feminismo tem concordância com um amplo coletivo que entende as mulheres camponesas, a partir de sua inserção numa sociedade de classes responsável e fonte que dá origem à exploração, dominação e opressão. Lembrando que essa sociedade é sustentada pelo capitalismo cujas raízes estão entrelaçadas ao colonialismo, ao patriarcado e ao racismo. Enfrentar esses processos é central para o feminismo que defendemos.

Trata-se de um processo que estamos construindo enquanto MMC e que esteve presente desde o início da consolidação enquanto Movimento, mesmo que, naquele contexto não aparecia os termos conceituais como temos hoje.  O diálogo, as trocas, as lutas conjuntas, tem se afirmado na relação com os processos políticos e organizacionais da Classe Trabalhadora e das mulheres trabalhadoras que em diferentes espaços lutam pela sua própria emancipação e transformação social, conforme mencionamos anteriormente. Por isso mesmo, não nos é estranho compreender e afirmar que as mulheres camponesas desde sempre resistiram, lutaram, se organizaram.

Neste sentido, o feminismo para o MMC é a luta em todas as dimensões que visa libertação das mulheres, das relações sociais e do meio em que vivem. Trata-se de um processo que está em construção e que indica um olhar para o feminismo, que é camponês, agroecológico, de classe e por isso caracterizado como popular.

Luta do Movimento de Mulheres Camponesas é tema de livro feminista

Entre as principais características do MMC, estão:

1) A compreensão de relações patriarcais de gênero, classe e etnia/raças como um desafio permanente a ser enfrentado. Está colocada a dimensão do respeito que promove a dignidade na qual a mulher camponesa luta também contra a ideia de que sempre a mulher precisa provar que é capaz. Isso porque, na luta e na medida em que constroem seu movimento vão descobrindo-se a si próprias, conscientizando-se e despertando para suas potencialidades e poderes;

2) A perspectiva da educação popular voltada à igualdade e realidade camponesa muito contribuiu para a mulher ler o mundo e ler-se no mundo. A continuidade da vida, as questões ambientais, a defesa do território e da terra, o cuidado com a água, com as ervas medicinais, com os animais, com o alimento saudável é indispensável. Para nós do MMC, a valorização das sementes como patrimônio da humanidade adquire primazia enquanto perspectiva e defesa da soberania alimentar. Por isso o cuidado vai desde o plantar, colher e armazenar, relacionando essas práticas com os conhecimentos herdados dos antepassados, atribuindo aos mesmos, novos sentidos e novos significados;

3) É um feminismo que tem na agroecologia, como ciência e modo de vida, sua centralidade. Pois somente com a biodiversidade e com a produção de alimentos saudáveis é possível assegurar o compromisso com a vida. É um feminismo camponês popular agroecológico, que incide no território e promove condições humanas, sociais e ambientais geradoras de uma convivência justa e sustentável;

4) Caracteriza-se com um feminismo que integra a vida das mulheres no dia a dia, sem deixar de pensar no todo, sem deixar de lado a coragem de se libertar das “garras do capitalismo”. Indica outro modo de vida;

5) É um feminismo camponês popular que se apresenta como possibilidade de construção de um projeto de sociedade que quer transformar as relações entre os seres humanos, sua relação com a natureza e que se expressa no comprometimento de uma práxis camponesa, popular e feminista. Por isso afirmamos, está em construção e se expressa em suas particularidades a partir dos contextos em que vivemos e militamos.

Da luta não fujo, na luta continuaremos!

* Sirlei Antoninha Kroth Gaspareto é militante do Movimento de Mulheres Camponesa de Santa Catarina (MMC/SC), desde 1986. Educadora popular, doutora em Desenvolvimento Regional.

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