Basta acessar os meios de comunicação tradicionais, e até mesmo mídias alternativas, para constatar que a maior parte das análises políticas é elaborada a partir do pensamento de homens: brancos. É deles também o espaço em livrarias de grande porte. Segundo dados de um estudo da Universidade de Brasília (UNB), divulgado em 2017, mais de 70% dos livros publicados por grandes editoras brasileiras entre 1965 e 2014 foram escritos por homens. Esse cenário é revelador do déficit democrático que o país vive. “Ao invés de reproduzirmos falácias como ‘mulheres não se interessam por política’, deveríamos direcionar nosso pensamento crítico para as estruturas e condições sociais que atravancam o acesso e a dedicação de mulheres à política”, afirmou Joanna Burigo em entrevista ao Catarinas.

Umas das organizadoras do livro “Tem Saída? Ensaios críticos sobre o Brasil”, Joanna estará em Florianópolis para o lançamento da obra que traz o olhar de 25 intelectuais, ativistas e parlamentares mulheres – do Rio Grande do Sul ao Pará – para as múltiplas crises que o país enfrenta. O evento acontece às 14h30, no Auditório do Tribunal de Contas do Estado (TCE), como parte da comemoração especial do Dia Internacional da Mulher organizada pela ONG Anitas Libertas.

Trata-se do primeiro compêndio sobre política escrito exclusivamente por mulheres no Brasil. Winnie Bueno, Rosana Pinheiro Machado e Esther Solano também assinam a organização. Entre as autoras estão Flávia Biroli, Juliana Borges, Luciana Genro, Manuela D’Ávila, Marcia Tiburi e Marielle Franco. Publicado pela Editora Zouk em parceria com a Casa da Mãe Joanna, a obra ganha forma a partir do entendimento de que as crises são antigas, enraizadas na sociedade brasileira, e remetem ao aprofundamento do projeto democrático desde a base. A publicação revela que não existe uma, mas múltiplas saídas.

Tem saída?, que já foi lançado em São Paulo e Porto Alegre, está dividido em cinco partes. Na primeira, autoras apresentam panoramas em meio a um cenário neoliberal. Na segunda parte, fornecem tanto uma radiografia do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff quanto compartilham as formas como pensam sobre resistências emergentes do cenário de crise. A terceira e quarta partes explicitam os motivos pelos quais não se pode falar em crise como excepcionalidade, já que anormalidades democráticas profundas sempre existiram para os setores mais vulneráveis da população. E na última parte abrem-se pontes entre passado, presente e futuro, e entre projetos e perspectivas sobre o Brasil.

Joanna é fundadora da Casa da Mãe Joanna, experimento feminista de educação e comunicação sobre gênero. Co-fundadora do Guerreiras Project e Gender Hub e coordenadora da EmancipaMulher, dedica-se a empreendimentos feministas e mantém coluna na revista Carta Capital.

Confira e entrevista. 

Foto: Rita Mayer

Catarinas: O que se constituiu como pressuposto para a construção das narrativas da obra?
Joanna:
Não penso que todas as autoras partiram dos mesmos pressupostos para a construção de suas narrativas, embora a leitura do livro indique que há, sim, alguns pressupostos comuns a partir dos quais surgem e se desenvolvem muitas das análises críticas feitas por elas.

O livro próprio surgiu de uma conversa informal, para ser bastante franca. São conversas que se desenvolvem a partir da realização de que narrativas sobre política – como a maioria das narrativas sobre outras áreas de atuação e do conhecimento humanos – ainda são dominadas por homens brancos. Isso é incontestável: basta olhar para ver que é desproporcional a participação de homens brancos na constituição de discursos públicos, seja na mídia, na indústria, na política. E foi a recorrência de conversas como essa o que germinou a ideia do Tem Saída? e engatilhou sua produção.

Sempre houve mulheres em todos estes processos, ainda que com baixa representatividade institucional. Mas nunca não estivemos presentes nos acontecimentos da história, e nossas existências são indelevelmente políticas. Assim, não deveria ser rara a nossa participação neste âmbito, seja como representantes oficiais, ativistas ou produtoras e propagadoras de conhecimentos.

O livro é uma forma de registrar e disseminar o pensamento de mulheres atualmente atuantes nesta seara, seja na academia, no ativismo ou na política institucional. Ele surge como necessidade, partindo do pressuposto de que somos seres políticos, logo participamos da constituição do pensamento político.

Catarinas: Que inquietações e provocações foram suscitadas a partir do encontro dessas escritoras? Como elas (vocês) pensam as resistências emergentes neste cenário (de incertezas?)?
Joanna: 
Como organizadoras era muito importante para nós que as resistências emergentes fossem registradas na obra a partir das narrativas das autoras. O cenário é de incertezas, mas alguns aspectos da constituição das esferas de poder vêm sendo analisados de formas certeiras por aquelas relegadas às suas margens.

O livro não se desgasta em críticas cansadas, tampouco propõe uma saída específica – tanto é que seu próprio título é uma indagação. Mas ele traz para o coração do debate político alguns olhares e vozes pulsantes e provocativos, e autoras apresentam perspectivas fundamentadas e radicadas nas suas experiências, como mulheres que pensam e agem politicamente de forma resoluta.

Catarinas: Vivemos um momento de crise diferente de outros da república brasileira?
Joanna: 
O livro toma forma a partir do entendimento das limitações de pensar nesta como uma crise nova. Podemos dizer que esta crise apresenta elementos inéditos, mas eles não surgem no vácuo, e se somam a crises mais antigas e enraizadas na sociedade brasileira, a ponto de mal serem percebidas como tal.

O recrudescimento da crise democrática, por exemplo, tem aspectos, efeitos e significados diferentes dependendo de contextos econômicos, de raça ou de gênero. Hoje o que se apresenta como repressão inédita para alguns é o cotidiano de sempre para outras.

O livro, assim, nos dá a chance de sermos apresentadas a múltiplas perspectivas políticas, informadas por contextos diversos, descrevendo as crises e oferecendo sugestões de como contorna-las, conforme elas impactam e aprimoram situações diferentes.

Catarinas: Você tem defendido frequentemente a prática do discernimento para vencer discursos apressados nas redes. De que forma esse livro pode ser lido como um convite para que as pessoas reflitam mais diante de um cenário de complexidade?
Joanna: 
Penso que seja ilusória qualquer certeza de que existe apenas uma forma de interpretar fenômenos. E o que o Tem Saída? oferece é justamente uma miríade de perspectivas políticas sobre um mesmo momento histórico, abraçando as dificuldades, contradições e complexidade de se pensar no aprofundamento da democracia desde a base.

Foto: Ana Rita Mayer

Catarinas: O que as redes sociais representam nesse momento de disseminação de notícias falsas e/ou pós-verdades? Há espaços para resistência ou predomina a perpetuação da lógica das pessoas como meras consumidoras?
Joanna:
Estas são perguntas ainda em aberto, ao menos para mim. Respondo uma a uma, a partir de impressões, e aprecio correções caso estejam muito equivocadas.

O que as redes sociais representam nesse momento de disseminação de notícias falsas e/ou pós-verdades?
A disseminação de informações enganosas acontece de formas diferentes hoje, e penso que seja inegável o papel das redes sociais no seu aumento exponencial. As redes aumentaram exponencialmente a disseminação de informações de todas as qualidades. E fake news e pós-verdade podem ser termos novos, mas não é de hoje que mentiras e manipulação tenham laços íntimos com os aparatos institucionais da comunicação social.

Há espaços para resistência ou predomina a perpetuação da lógica das pessoas como meras consumidoras?
Penso que a atribuição de consumidor para nós, usuários de redes sociais, caiba perfeitamente e não deveria causar tanto espanto. Sabemos, afinal, que as redes sociais em que operamos são empresas privadas que visam lucro. Somos, consumidores e também produtos nas redes sociais. Se existe resistência – e existe – é justamente aquela que subverte estes espaços e conceitos para outros usos e fins.

Catarinas: Além de ser escrito somente por mulheres, que outras contribuições a obra apresenta à luta feminista?
Joanna:
Fiquei muito emocionada, nos lançamentos que fizemos em São Paulo e Porto Alegre, porque muitas das autoras estavam presentes, e elas expressaram ter achado o processo de produção do livro um processo feminista. Desde nossas reuniões de organização, até as versões de textos, passando pela formatação dos eventos e promoções de lançamento, pensamos e agimos conforme articulações que podem ser traçadas aos feminismos: a ferramenta interseccional, o diálogo, a exposição da perspectiva política de mulheres feministas.

Catarinas: Há uma onda reacionária no Brasil, temos o Congresso mais conservador da história da redemocratização. O que esperar das eleições de 2018 e depois dela? Há chances de mudanças pelo caminho do voto?
Joanna: 

Confesso estar assombrada com alguns dos cenários que se desenham. O quadro eleitoral é confuso e incerto, notícias do poder vigente parecem surreais, e conceitos como a própria democracia e seu instrumento mais característico, o voto, estão em xeque. Não me sinto apta a fazer previsões.

Parto, no entanto, da perspectiva de que melhor do que pensar em “ondas conservadoras” é pensar em momentos em que a repressão passa a atingir públicos acostumados com maiores graus de liberdade, e em que somos avassaladoramente destituídos até dos parcos avanços conquistados por pura resistência popular.

Catarinas: A baixa representatividade de mulheres na política, a desigualdade salarial entre os gêneros, a injusta divisão sexual do trabalho doméstico e dos cuidados com os filhos, o uso da força para domesticar mulheres, e a apropriação do corpo pelo Estado em leis que, por exemplo, criminalizam o aborto. Em que medida o rompimento desse ciclo vicioso é condição para diminuição (ou superação) do grave déficit democrático?
Joanna: 
O rompimento com a aceitação destas práticas (e de outras, mas esta tua síntese foi ótima) como ordem natural das coisas me parece ser uma das tarefas mais comuns a todos os feminismos.

A abundância de evidências que temos a respeito das formas como a realidade afeta de formas desiguais corpos marcados por coisas como gênero e raça deveria ser propulsor suficiente deste rompimento. É preciso questionar, desarticular e combater narrativas fantasiosas sobre nossas experiências reais. Ao invés de reproduzirmos falácias como “mulheres não se interessam por política”, deveríamos direcionar nosso pensamento crítico para as estruturas e condições sociais que atravancam o acesso e a dedicação de mulheres à política.

É uma mudança de perspectiva. Uma outra forma de interpretar o mundo, que nos convida a contestar práticas violentas, letais e de exclusão sejam tomadas como normais, naturais, inevitáveis.

Atualizada às 10h16 de 28 de fevereiro.

 

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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