Por Soraia Mendes.

No último domingo (30) a artista plástica e ex-namorada da atriz Camila Pitanga, Beatriz Coelho, foi detida com uma amiga depois de fazer topless em uma praia. Nos stories do Instagram, ela registrou o ocorrido e mostrou que chegou a ter seus pés algemados. E, em uma das fotos, perguntou: “O que pode acontecer com uma mulher que faz topless no Brasil?”.

Sou advogada signatária de uma petição de amicus curiae em um Recurso Extraordinário com repercussão geral (STF) em que sustento a inconstitucionalidade do crime de ato obsceno a partir da perspectiva de gênero. Então, quero dar dois pitacos sobre esse caso.

Primeiro pitaco.

O crime de ato obsceno (art. 233, CP), consiste em, como diz a lei: “praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público”. A pena é de detenção, de três meses a um ano, ou multa. Contudo, em minha perspectiva não há nada, absolutamente nada, que possa dar guarida à esta tipificação em relação a uma mulher que livremente expõe seu corpo, seja em ambiente de lazer, seja como forma de protesto.

Digo isso porque, caso semelhante em que atuo, também sob o crivo do Supremo Tribunal Federal (STF), envolveu a condenação de uma militante feminista pela prática deste crime pela Justiça paulista porque ela retirou a camiseta e expôs os seios em via pública durante a Marcha das Vadias – 2013, na cidade de Guarulhos (SP).

A denúncia foi oferecida pelo Ministério Público em agosto de 2015 e, segundo o magistrado na sentença, o ato obsceno supostamente praticado suscita “repugnância”; sendo, para ele, a conduta da militante ofensiva ao “decoro público ou sentimento coletivo a respeito da honestidade e decência dos atos, que se fundam na moral e nos bons costumes”.

Para o julgador, repetindo carcomida e androcentrada doutrina e jurisprudência, “o ato obsceno pode ser concebido como aquilo que ofende o pudor ou a vergonha, causando um sentimento de repulsa e humilhação criado por um comportamento indecoroso”. Disse ele também que a sociedade “tem o direito de ser respeitada no sentimento do pudor e da sua dignidade”.

Foi uma condenação carregada de simbolismo. Exemplificativa do apagamento deliberado do fato de que a atitude de uma mulher que desnuda seus seios sinal de protesto rompe o silêncio que atordoa milhares de outras mulheres vítimas de violência em nosso país.

Seja no caso da militante, seja no de Beatriz, o que se tem, ao fim e ao cabo, é a reiteração do controle sobre os corpos femininos e feminizados por meio da criminalização. Uma forma perversa de reificar a pedagogia do “recato” historicamente dirigida à mulher para reprimi-la ou definitivamente retirá-la da cena pública.

Segundo pitaco.

De tudo o que foi divulgado na mídia, muito especialmente da foto em que Beatriz aparece com os pés algemados, é possível perquirir sobre possível abuso de autoridade.

A prática de ato obsceno é um delito considerado de menor potencial ofensivo para o qual, embora prevista, sequer haverá aplicação de pena privativa de liberdade. Configuração jurídica essa que já seria um bom motivo para acender o sinal amarelo para o uso de um mecanismo tão violento como as algemas.

Essa questão é tão importante que, em 2008, o STF editou a Súmula Vinculante nº 11 segundo a qual somente é legal “o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.

Além disso, também desde 2008, está inscrito no Código de Processo Penal (art. 284) que “não será permitido o uso de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”. E, por fim, a partir da Lei 13.869/2019 (art. 13, II), constranger uma pessoa presa, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência a submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei, é crime de abuso de autoridade.

O uso de algemas, mesmo em situações legítimas, é sempre uma medida constrangedora física e psicologicamente, estando a pessoa presa ou detida. Por isso, usa-las deve ser excepcionalíssimo. O objetivo é evitar o abuso, impedindo que sejam empregadas de forma humilhante, espalhafatosa ou teatral, como parece ser, pelo divulgado, o caso de Beatriz.

Enfim, mais que mera hipocrisia, em um país que historicamente vale-se da “venda” dos corpos femininos em seu maior evento que é o Carnaval, casos como o de Beatriz, na verdade, demonstram como o direito penal reflete condutas de gênero ditadas pela cultura patriarcal, por suposto violenta, em relação ao controle dos corpos femininos e feminizados.

Aprofundar a discussão sobre os limites da lei penal a partir de exemplos como esse é um bom começo para mudanças urgentes e necessárias. Estamos no Supremo com esse tema. Aguardemos o resultado!

*Soraia Mendes é advogada, pós-doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Autora, dentre outras, das obras “Criminologia Feminista: novos paradigmas” e “Processo Penal Feminista”.

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