Na última semana, o mundo observou a conquista de Cabul e a retomada do poder, por parte do Talibã, no Afeganistão. Esse evento causou um verdadeiro caos no país, e movimentou o mundo, motivadas por perspectivas extremamente negativas diante dessa transição de poder forçada, que também culminou na expulsão das tropas estadunidenses que ocupavam o país há duas décadas. O desespero e o medo tomaram conta de muitos afegãos que, relembrando o regime de outrora, temiam que as consequências fossem realmente devastadoras.

Esses últimos acontecimentos no Afeganistão, além de abrirem diversos debates e discussões, também foram responsáveis por uma forte onda de compartilhamento de fotos descontextualizadas, bem como imagens de outras épocas e outros lugares, de opiniões descontextualizadas e de um direcionamento reducionista para questões femininas na região, além de uma islamofobia generalizada.

É inegável que em qualquer situação de crise, os direitos das mulheres e de outras minorias são os primeiros a serem questionados e até mesmo revogados. Contudo, resumir as problemáticas existentes no Oriente Médio, especificamente no Afeganistão, à apenas uma questão de gênero é ignorar o contexto histórico, político e econômico da região.

Para compreender melhor o que significa essa retomada de poder pelo Talibã, é necessário compreender o processo histórico que culminou na ascensão deste regime há algumas décadas. Primeiramente, é preciso retroceder à Guerra Fria para entender as disputas existentes entre os EUA e a URSS. A parceria e/ou o controle de certos países no Oriente Médio se mostrava como algo estratégico nesse significativo conflito.

Após perder a aliança com o Irã, era fundamental que os EUA obtivessem outros apoios estratégicos, na região, para combater os soviéticos e evitar que eles se expandissem pelo Oriente Médio, portanto controlar o Afeganistão se apresentava como uma escolha acertada naquele momento. Como a URSS já havia ocupado o país, os Estados Unidos optaram por treinar, armar e financiar determinados grupos extremistas, como o Talibã, por exemplo, obtendo assim, êxito na sua empreitada, uma vez que o Talibã consegue se impor paulatinamente, entre o Afeganistão e o Paquistão, até que no início da década de 1990 o grupo ascende ao poder, controlando a maior parte das regiões desses países.

Essa aliança, e o forte investimento militar, com o Talibã, fez com que os EUA participassem diretamente da perpetuação de um regime autoritário, assim como a participação indireta na criação da Al- Qaeda, a partir de investimentos e treinamento dos seus membros pela CIA, incluindo o saudita Osama Bin Laden, que mais tarde orquestraria um ataque brutal aos EUA, através do atentado às torres gêmeas, que tirou a vida de milhares de estadunidenses e turistas.

Os EUA ficaram diante do monstro que ajudaram a criar e empreenderam uma perseguição incisiva aquele que fora responsável pela tragédia do 11 de setembro de 2001. Ao saber que o Afeganistão acolhia Osama Bin Laden, os EUA viram a oportunidade de iniciar uma ocupação e controlar as riquezas naturais do Afeganistão.

Voltando ao atual momento, é importante pontuar algumas coisas, a fim de estabelecer uma análise mais precisa e contextualizada dos fatos e das suas consequências para a sociedade afegã, principalmente para as mulheres. O principal ponto é que a questão vai além de uma dicotomia entre os EUA e o Talibã e o que seria melhor para o país, pois o primeiro contribuiu para a ascensão do segundo e foi um dos responsáveis, mesmo que indiretamente, na construção de um Afeganistão desmantelado e caótico.

A necessidade das tropas estadunidenses, para a “boa” manutenção social da região, foi construída, também, para servir aos interesses imperialistas dos EUA, não para assistir a população e muito menos para reconstruir o país. Ainda, é importante entender que criticar o Talibã não é defender a ocupação estadunidense e que apontar a atitude imperialista da intervenção dos Estados Unidos não é compactuar com o Talibã. São dois problemas distintos, mas que se entrelaçam e partem de um mesmo ponto comum.

Outra questão importante a ser debatida é sobre o impacto disso para as mulheres afegãs. Mas antes de qualquer discussão, é indispensável abrir mão de certas narrativas, como a suposta passividade das mulheres afegãs, como a ideia de que elas precisam ser salvas e/ou de como a sua liberdade e autonomia são perpassadas por uma questão de vestimenta. A situação é mais complexa do que essas concepções reducionistas.

Durante todas essas décadas de horrores, as mulheres, de maneira geral, não se mantiveram imóveis e submissas. Existiu e ainda existem diversas articulações de movimentos femininos a fim de exigir garantias de direitos, bem como se impondo para reivindicar uma vida justa e digna, apesar da realidade caótica e angustiante.

Dentre esses movimentos, a Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão (RAWA), fundada em 1977, combateu diferentes opositores e se manteve em seu propósito de lutar por uma sociedade igualitária e pelo respeito aos Direitos Humanos. Assim como a Rawa, a história de instabilidade no Afeganistão e Paquistão também é marcada pela luta feminina em busca de respeito e de direitos igualitários.

Por fim, é de extrema importância rechaçar todo e qualquer discurso islamofóbico que emerja nessas discussões, uma vez que são os muçulmanos as principais vítimas dessa instabilidade e desmantelamento provocados no Oriente.

O histórico de violência e destruição nesses países não é cultural, como se acredita no Ocidente. Essa instabilidade e violência exacerbadas são recentes, cidades inteiras destruídas são novas paisagens históricas-geográficas, o massacre e morte dos povos no Oriente são reais e cruéis. Não faz sentido culpabilizá-los pelo mal vindo de uma postura imperialista Ocidental.

Tem-se muçulmanos vivendo em lugares destroçados, sendo perseguidos, massacrados e até mesmo executados. E o curioso é ver a vítima ser transformada em algoz, em ver o ódio descomunal ser direcionado às vítimas. A quem interessa essa inversão? A quem interessa a naturalização de tanta violência contra um povo? E coincidentemente, é um povo que vive sobre inúmeras riquezas naturais, mas que não possuem a autonomia de explorá-las.

Esse discurso islamofóbico, além de ajudar a naturalizar o roubo, massacre e execução desses povos, fomenta o ódio contra milhões de muçulmanos que não vivem nessas regiões de instabilidades, provoca diversos tipos de ataques, sejam físicos, verbais e até mesmo contra a dignidade e o acesso a direitos básicos, como trabalhar, pois mulheres muçulmanas que usam véus não são admitidas no mercado de trabalho.

O mundo precisa parar para repensar e refletir diversas opiniões e preconceitos. Precisa buscar conhecimento, informações fidedignas e saber realizar pesquisas adequadas. A sociedade, de maneira geral, não é totalmente impotente, adquirir conhecimento, não reproduzir violências e não aceitar a coisificação de um povo já é um bom caminho para a resolução de certos problemas.

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  • Clarice Lima

    Clarice Lima é professora e pesquisadora. Mestra em Estudos da Linguagem, licenciada em Letras e Bacharela em Comunicaçã...

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