Junho de 2013 é visto como um marcador destes tempos de ambivalência, quando a potência do descontentamento social acabou aspirada por uma força conservadora que, como o conceito já diz, não quer transformação. No livro “Sintomas Mórbidos: a Encruzilhada da Esquerda Brasileira”, publicado pela Editora Autonomia Literária, Sabrina Fernandes, socióloga e idealizadora do canal Tese Onze, reflete sobre o que chama de “janela de oportunidade”, não aproveitada pelas esquerdas, de construir poder popular em direção a uma ruptura. 

“O velho está morrendo e o novo não pode nascer; nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. A frase do filósofo italiano Antonio Gramsci inspira o nome do livro, referindo-se à crise de autoridade do velho sistema social, político e econômico. “O livro mostra porque a esquerda não conseguiu aproveitar junho de 2013. Não é porque junho era essencialmente reacionário, é porque a gente não conseguiu dar os significados. Os sintomas mórbidos que eu exploro no livro são sintomas deste vazio que a esquerda deixou ali”, explica a autora.

O Brasil estagnou na redução da distância entre ricos e pobres. Segundo a Oxfam, entre 2016 e 2017, os 40% mais pobres tiveram variação de renda pior do que a média nacional, período em que mulheres e a população negra tiveram pior desempenho de renda do que homens e a população branca, respectivamente.

Um projeto de futuro, o projeto radical, tem que ser um projeto de maioria, a gente está falando de mulheres, de indígenas, de LGBTI, população negra, de classe trabalhadora. A minoria real que é a elite capitalista não tem o interesse comum, tem interesse de maior exploração. Precisamos trazer esse antagonismo que organiza nossa sociedade, organiza quem entra e quem sai dos espaços de poder”.

A entrevistada é conhecida pelo seu canal lançado em 2017 que conta com mais de 170 mil inscritos, cujo nome é uma referência à tese onze do livro “As Teses sobre Feuerbach”, escrito pelo teórico alemão Karl Marx, em 1845, que diz: “os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.” 

Conversamos com Sabrina Fernandes na Praça XV, em Florianópolis, durante a turnê de lançamento do seu livro. Neste local que materializa a ideia de público, do comum, frente à privatização dos espaços, Fernandes explicou as ideias centrais da publicação, enfatizando a necessidade de transformação de uma sociedade violentamente desigual. Porque como a tese onze também defende: “não é possível imaginar uma prática transformadora que resolva estes problemas sem uma outra compreensão do mundo”.

Catarinas: Você se posiciona como ecossocialista?
Sabrina Fernandes: Enxergo a relação ecológica da mulher com a ecologia através do materialismo histórico, através das questões de produção e reprodução da vida. O que me leva a me conectar com a natureza não é a noção de que a natureza é uma figura materna e é a mulher, porque isso vai gerar essencialismo, por exemplo. O que me conecta é o entendimento de que a vida depende da natureza e dessa mesma forma a emancipação e liberdade das mulheres não podem existir se estivermos numa terra devastada. 

Como você avalia os desdobramentos de junho de 2013 em relação à crise política e crise das esquerdas?
Junho iniciou um novo período de conjuntura. Estamos lidando com significados e anseios diferentes, então precisamos contextualizar tudo que a gente fala nesse sentido. A primeira coisa que junho escancara é a crise de representação da política, só que ela aparece primeiro com uma crise de representação institucional, como crítica aos partidos políticos como legendas, aos representantes políticos eleitos, à politicagem, à corrupção. Mas é algo muito mais profundo, a representação institucional é muito mais um resultado das configurações diretas que a gente vê. 

É importante que as pessoas entendam que as decisões políticas estão no cotidiano da vida?
Tem a ver com isso a questão das pessoas entenderem a sua práxis. O Gramsci, que é o meu referencial teórico, trata de consciências contraditórias que você pode ter.

A realidade é um espaço de contradição, a contradição do capitalismo, por exemplo, é que a gente tem uma minoria crescendo às custas de uma maioria, isso é contraditório se a base sustenta a sociedade. Por que a sociedade não está sustentando essa base?

Você pode estar numa situação em que você entende a exploração do seu dia a dia, mas você está alinhada ideologicamente através do senso comum com aqueles que te exploram. Então sua consciência teórica está desalinhada da sua consciência prática. Um dos nossos papéis é realinhar isso, entender como aquela realidade material, aquela exploração, faz parte de todos os outros fatores da sua vida, ela vai moldar a sua visão de mundo. Se você permitir romper com a ideologia, com o que te contam que é melhor para você. Vemos muito isso nessa ideia de que você é explorado, mas pelo menos você pode comprar um tênis caro. Eles contam esses mitos, são mitos ideológicos. A práxis é a gente reunificar isso, e pra isso precisa de organização política também. Não se trata de uma conscientização aleatória, mas de mudar a realidade. “Agora eu estou mais esclarecido, entendi como as coisas funcionam”. Mas e aí o que você vai fazer com isso? Você vai mudar para você e para as outras pessoas que têm menos poder político na sociedade? Você vai se engajar com elas, vai ajudar a transferir poder político para elas, construir poder popular? Então essa é essa noção de você está voltando para aquilo que o (Vladimir) Lenin falava: “não existe movimento revolucionário sem teoria revolucionária”. 

Que outras frentes políticas devem se organizar neste momento em que as formas de mobilização social mais clássicas têm se enfraquecido?
No meu livro eu trato um pouco da ideia de esquerda mosaico, uma esquerda que tem os seus fortes, como por exemplo, o movimento feminista que tem a sua peculiaridade, que é a característica de lidar com a situação das mulheres. O movimento que está lidando com o desencarceramento também aborda a questão racial e de gênero. A gente pode pegar isso e articular para não ficar isolado. Por que a nossa realidade é sistêmica, não tem como separar uma coisa da outra. 

Como lidar com as novas dinâmicas de trabalho em casa, o home office, que contribuem para mobilidade e diminuição da poluição, e ao mesmo tempo podem ser consideradas terceirização, precarização do trabalho?
É o resultado do nosso projeto de produção, a gente acaba vendo porque que é melhor você trabalhar em casa do que se deslocar até o trabalho porque aquele período de deslocamento é não remunerado. Mas você só está fazendo ele porque vai trabalhar, então faz parte da reprodução social do seu trabalho. Se você não se deslocar não trabalha naquele local, mas é o momento que você está absorvendo o custo. No máximo se tiver um emprego melhorzinho, terá vale transporte, mas o seu tempo deslocamento não está sendo remunerado. Então, se o emprego me dá opção de fazer um home office, se eu estiver na minha casa, vai ser melhor. Rita von Hunty, do Canal Tempero drag, fala da romantização do home office. Você está no conforto na sua casa, mas aí o seu horário de trabalho nunca acaba, chegou um e-mail você tem que responder e quando você está em casa está trabalhando das 8 horas até meia-noite porque a coisa vai ficar em fluxo, o seu tempo fica totalmente ao redor do trabalho. Surgiu uma demanda você tem que atender. Para mim faria muito mais sentido eu trabalhar de uma hora a tal. Agora é o meu tempo, agora é meu lazer.  A nossa sociedade do trabalho alienado não permite isso, a gente vive em função do trabalho e não trabalha em função de poder viver. 

Há muitos trabalhos formais em que as pessoas também não “desligam” em casa, como no caso da profissão de professor/a, em que essa dualidade não está tão colocada…
Não tá tão colocada, mas mostra como o capitalismo está avançando sobre esse espaço que era para ser o espaço separado, era para ser o espaço privado doméstico. A conexão das redes tira muito disso. Eu lembro quando tava dando aula na Universidade de Brasília e um aluno mandou um e-mail no sábado. Chequei o e-mail no sábado, e pensei “olha como a relação estava totalmente deturpada”. A ansiedade toma conta desse espaço, você tem que fazer tudo no imediato, no tempo. A organização do trabalho é a organização do tempo, a gente sempre acaba pensando o tempo em relação ao que a gente produz, e não o que a gente tira a parte disso. A gente pode ter esse deslocamento do espaço do local de trabalho. Em casa não consegue romper, se sente culpado. 

Há novas dinâmicas de trabalho para romper modelos comerciais, empresariais, como no caso da mídia independente…
Às vezes você se flexibiliza para ter alguma liberdade, para manter a sua linha editorial que não está refém dos grandes interesses empresariais, mas isso tem um ônus para o trabalhador. O sistema vai nos encurralando de uma forma tão grande que quando uma pessoa tem a opção de escolha talvez ela seja levada a escolher a precarização, a flexibilização justamente porque ela tem algum projeto que não se enquadra naquela linha. Pode até ser uma questão política, a gente vê muito isso na imprensa, a mídia independente hoje em dia que depende de financiamento coletivo, vive de edital. Trabalhadoras dessa área estão se perguntando “será que vou ter um ter emprego no ano que vem, será que a gente vai conseguir navegar esse momento?”. Não dá para depender de propaganda das grandes corporações, não dá para depender desse ciclo. A Globo não se sustenta com propaganda, mas sim com investimentos do mercado financeiro. Aí você vai sendo empurrado, vai entrando para essa área do empreendedorismo social, mas isso também é o reflexo de que mesmo tendo algumas escolhas, ainda são muito limitadas, porque o nosso parâmetro político é fechado.

Essa auto-precarização é algo também para a gente pensar, muita gente fala “eu escolhi trabalhar assim porque pelo menos agora eu tenho meus horários”. Mas quais foram as escolhas que realmente foram te dadas? Será que essa flexibilização não surgiu como algo menos pior? 

A necessidade de que o PT faça uma autocrítica é apontada com recorrência, mas diante de um governo autoritário não seria importante que a autocrítica partisse também das instituições, da mídia e da própria direita?

Que encruzilhada é essa que a esquerda está colocada neste momento?
A encruzilhada é primeiro de conseguir configurar os seus projetos políticos, que algo que a esquerda está há muito tempo apagando fogo. O PT precisa de autocrítica, mas e você que está aí na oposição de esquerda, qual que é o seu projeto alternativo? Isso precisa ser determinado também. Eu trago no livro uma crítica à esquerda radical também: “onde você estava fazendo certas coisas, o seu projeto alternativo estava ressoando com as pessoas?” Precisamos pensar quais são os projetos políticos e delinear a partir disso: escolher qual é o rumo a ser dado, a encruzilhada é o momento em que existe existem rumos diferentes. Primeiro a gente tem que se entender para fazer uma escolha deste rumo, e depois tem que trilhar esse rumo, que não vai ser fácil porque é um projeto de ruptura.

Há um consenso anticapitalista nas esquerdas?
De forma alguma. Existe uma esquerda que é uma esquerda liberal que está mais ao centro, acredita que é necessário fazer certo nível de negociação. Ela tem um projeto de direitos humanos, e isso é muito importante, defende garantias básicas para a população,  mas ela não pensa rupturas com o capitalismo, pensa em humanizar, trazer certos direitos. Mas pensa que não é possível construir uma sociedade radicalmente diferente então ela normaliza, essa é a esquerda liberal. A esquerda moderada vem de uma base que é da classe trabalhadora, ela tem noção de classe, ela sabe que há uma exploração, e que só diminuir um pouquinho essa exploração não vai ser suficiente. Ela sabe que a gente tem que mudar as condições concretas da classe trabalhadora, mas está muito palpável a negociar, acha que ainda é muito necessária essa palatabilidade, que não há correlação de forças. Então, ela acaba ficando num ponto de contradição, e o papel da esquerda radical é tensionar o anticapitalismo de vez, mostrando que não há alternativa dentro do capitalismo.

Por que abolir a propriedade privada é tão importante?
A propriedade privada não é o livro, não é o celular, não é a mesa da sua casa, isso são bens pessoais, inclusive Marx e Engels fazem essa diferenciação no Manifesto Comunista. Não é que a gente está inventando isso para permitir o celular, estamos tratando da raiz, da teoria socialista marxista. A propriedade privada dos meios de produção é o que garante que alguns vão ter essa propriedade privada e a maioria vai produzir através dela, só que não vão tirar os mesmos ganhos, porque a garantia da produção está com a propriedade privada. Você precisa daqueles meios de produção, então isso coloca o nível de dominação muito forte. E como a lógica da propriedade privada para se auto-reproduzir é manter o lucro, é a reprodução do capital, isso passa por uma precificação da vida, o que a gente vai preservar é só o que pode gerar lucro. O que vai ter valor na sociedade é só só aquilo que a gente vai poder extrair o lucro daquela pessoa. E aí a gente vai tirando as ideias de humanização de qualidade de vida e vai colocando nessas caixinhas. 

A frase do italiano Antônio Gramsci que inspira o título do seu livro também traz uma pouco dessa ambivalência que vivemos no Brasil com a eleição do Bolsonaro, frente a um despertar de consciência das mulheres, população negra, LGBTI e indígena?

As suas análises neste livro partem também de uma perspectiva feminista? Você identifica a condição de exploração diferenciada da mulher no sistema capitalista?
Não tem como separar, porque o materialismo histórico para mim é profundamente feminista. Usar o termo feminista há séculos atrás não era algo que fazia parte do vocábulo, seria anacrônico exigir isso. Quando eu falo do ecossocialismo a ecologia surge com força a partir da década de 70. Então exigir que Marx falasse nesses termos seria anacrônico. O materialismo histórico é profundamente feminista e ecológico, porque está lidando com mulheres, as mulheres também trabalham, as mulheres também garantem a vida, as mulheres reproduzem, as mulheres fazem parte da organização social. Se a esquerda quiser realmente romper com esse modo social, hoje, precisa incluir as mulheres. Eu trato brevemente a potência que foi o #EleNão e que também não foi bem aproveitada. Aí algumas pessoas da esquerda falaram “tá vendo, quem mandou se meter com questões identitárias, isso jogou mais água no moinho do Bolsonaro, porque a sociedade é conservadora”. Bom, se a sociedade está conservadora isso é uma falha nossa.

A gente tem que estar com as mulheres da classe trabalhadora, entender que o nosso feminismo não é o feminismo da burguesia ou de empoderamento financeiro, mas sim um feminismo de qualidade de vida, de integração social, de garantia da não violência, de direito aos nossos corpos.

Quando na primeira eleição da Dilma, ela começa a se posicionar em relação à descriminalização e legalização do aborto, depois ela volta atrás, isso é um retrocesso muito grande, porque é jogar para o conservadorismo. Em vez de dizer ‘não vamos aceitar’, vamos enfrentar isso com coragem. 

Como a questão do projeto Escola sem Homofobia que foi distorcido e reduzido a um “Kit Gay”…
Esse recuo acabou mobilizando a sociedade a favor do Bolsonaro. Imagine se tivéssemos anos de implementação do Escola sem homofobia, que não é essa deturpação do kit gay que se falava por aí. Talvez a gente tivesse avançado hoje em em relação ao combate à homofobia. 

A historiadora italiana Silvia Federici em seu livro “Calibã e as bruxas” faz uma crítica ao pensamento de Marx, de que ele não teria avançado no sentido de entender as mulheres como a classe mais explorada do sistema capitalista. Como você percebe essa análise?
A Silvia Federici é uma feminista marxista, inclusive da linha autonomista italiana, uma feminista marxista. O debate dela é de reprodução social da vida. Marx não é o profeta, ele não tinha que falar de tudo. Augusto Bebel (pensador alemão) que vai falar depois do Marx, trata da questão da mulher dentro do debate socialista com Lenin e Alexandra Kollontai. Não precisa ser mulher para entender a necessidade de tratar da questão da mulher. É a mulher que vai entender da sua experiência, isso é diferente. A epistemologia, a vivência é algo da condição de ser mulher, mas compreender isso nem deve ser algo exclusivo da mulher, porque a gente não vai acabar com o machismo se não tivermos os homens como aliados entrando nesta luta. Marx entendia que quanto mais o capitalismo avançava trazia mais mulheres e mais crianças. O capitalismo tratava as mulheres, crianças e população negra no mundo através da colonização, como mão-de-obra mais barata. Para poder explorar um pouco mais. Eu não entro nessa linha de exigir que Marx tivesse todas as respostas para isso, mas o módulo de análise dele do materialismo histórico já trazia esse elemento. E é justamente esse módulo que vai permitir que Federici volte lá atrás, antes do modo de produção capitalista, e enxergue como o cercamento, a caça às bruxas e a criação da propriedade privada já estava relacionada em colocar as mulheres de volta ao âmbito doméstico, numa condição de subserviência e submissão. Naquele momento em que elas estavam começando a trabalhar mais fora, sendo criativas e pensando a questão das enfermidades. A leitura marxista materialista-histórica tem uma incipiência, mas a obra de Marx é ferramenta hoje, então a ocupação das mulheres sempre ocorreu, é uma questão da gente desenvolver as análises. A gente trabalha conjuntamente através das nossas condições, até mesmo o papel das mulheres finalmente poderem ser consideradas intelectuais, estarem nas universidades, poderem ter mais voz e acabar acumulando mais. 

O livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado, escrito por Friedrich Engels, aborda a origem da propriedade privada, casamento e do confinamento das mulheres em suas casas.
A questão da família monogâmica tradicional tem um papel econômico também. O confinamento da mulher não está desatrelado dessas questões econômicas. Engels tem uma definição de materialismo histórico que é a que eu uso: o materialismo histórico não é uma análise do capitalismo, é uma análise do modo de produção e de reprodução da vida. O capitalismo é o modo vigente hoje, então a gente tem que superá-lo.

Que entendimentos são importantes para essa nova compreensão do mundo trazida no conceito tese onze e no livro?

O estado criminaliza o aborto, mas ele que tira o direito da mulher à maternidade quando nega direitos básicos…
Sim, porque a maternidade acaba operando como um trabalho totalmente invisibilizado em que a mulher é culpabilizada constantemente. No Dia das Mães geralmente a esquerda acaba expondo todas as maneiras em que as mães são exploradas como trabalhadoras pela sua condição de gênero. É uma necessidade que a gente tem de trazer tantas coisas, mas tem gente que fala aí “é coisa demais, como a gente vai dar conta de tudo isso?” A realidade é assim, é coisa demais e se a gente ficar jogando para baixo do tapete nunca vai resolver. 

Você aborda dois conceitos no livro: ultrapolítica e  pós-política. Pode-se dizer que o governo atual contempla os dois?
É a mesma moeda de troca política na sociedade. Você pode acionar a pós-política falando assim: “esse esquerdismo tem que acabar”. Então a gente vai substituir com Brasil acima de tudo, deus acima de todos. Essa é a pós-política, o rompimento com a ideologia. Ao mesmo tempo ele é a ultrapolítica, que é essa ideia da polarização  do inimigo. “Então nosso inimigo é o petismo, nosso inimigo é o comunismo”. Isso faz com que a população tenha o entendimento despolitizado. Há uma responsabilidade da esquerda também. No momento que não temia em dizer seu nome, as pessoas entendiam mais o que era esquerda, como na década de 80. Quando ela passa a dizer seu nome porque tem que fazer conciliação de classe,  isso se esvazia. Aí chega o Bolsonaro lá e coloca ‘mamadeira de piroca: isso é esquerda’. 

No momento da posse, o presidente eleito afirmou que o maior problema do país é a ideologia de gênero, enquanto sabemos que a desigualdade social é o que nos assola.
É uma forma de esvaziar, esconder a disputa de classe. A situação do Brasil é tão desigual que no 1% mais rico tem até servidor público com aqueles supersalários. O 1% não é só a burguesia, mostra como é desigual a questão de renda no Brasil, por isso a gente tem que tratar da questão da propriedade. Esse servidor público é uma pessoa com muito poder de consumo. A vida dele está maravilhosa, mas se burguesia resolver desestruturar totalmente o Estado, ele também vai ficar desempregado. Então, o poder de classe está no 0,5%: esse é o nível de estratificação social que a gente tem no Brasil. Não tem como a gente fazer qualquer mudança social achando que a gente vai poder negociar com essa galera, os interesses são totalmente opostos. Quando a coisa vai bem eles podem jogar umas migalhas, e a gente consegue ter alguns benefícios sociais, mas um estado de bem-estar social nunca vai ser permitido. Os interesses deles estão atrelados ao centro do capitalismo, aos Estados Unidos, precisam garantir que os interesses do mercado financeiro estejam acima de tudo. Então, o desmonte faz parte da regra. Apoiam um cara totalmente absurdo no poder para manipularem de acordo com os interesses. Não é à toa que é Bolsonaro e Paulo Guedes. 

Vivemos o neomacartismo com perseguição e criminalização dos movimentos sociais, chamados de comunista de forma a estigmatizá-los.
A criminalização tem etapas e facetas, muita gente achou que o Bolsonaro ia criminalizar os movimentos sociais. Não quer dizer que ele vai colocar todo mundo na cadeia de imediato. Inclusive a gente tem que lembrar que essa é a contradição da Dilma com a lei antiterrorismo, pessoas da base do governo na época foram presas. Ocorre quando a sociedade tem um olhar criminalizador, quando ela fala que isso é coisa de vagabundo, que é balbúrdia. Essa é uma etapa da criminalização, a outra é quando as pessoas passam a sentir medo. Criminalização efetiva é aquela que você nem precisa colocar o exército na rua.

Você tem sofrido ataques devido ao seu engajamento em explicar e se posicionar sobre socialismo e comunismo?
O ódio na internet é comum, existe desde o começo, inclusive muito ódio também por pessoas da esquerda. Pessoas que não querem permitir uma crítica à esquerda de uma posição de esquerda, difamam, caluniam, contam mentiras. A misoginia é um elemento muito forte. Homens de esquerda dizendo “só poderia vir de uma loira,  é coisa de mulher”. É uma visão muito machista dentro da esquerda que você usar uma roupa assim ou assado é uma marca de classe. Ser classe trabalhadora é a sua posição na estrutura de produção, não é você passar um batom. A misoginia está presente inclusive nisso, o que eu entendo como feminismo é a mulher se vestir da forma que ela quiser, é a gente ter essa liberdade dos nossos corpos. Se para poder fugir desse tipo de ataque vazio eu tivesse que tirar o prazer que eu tenho de passar maquiagem, eu estaria me rendendo. Eu já fui ameaçada de estupro corretivo, de morte, disseram que dariam um tiro na minha cara, que sabem onde moro e trabalho, já tive que ir para delegacia fazer BO. Enquanto eu der conta vou estar aí. A partir do momento que não conseguir mais, espero ter inspirado e multiplicado para que mais pessoas segurem a barra juntas. Esse tipo de violência contra o comunismo sempre esteve presente no sentido da coerção, você não poderia falar. Mas o debate está muito mais violento e as redes sociais acumulam muito nesse sentido. Tem muita gente que fala da boca para fora, mas não deixa de ser uma violência verbal. E se não for da boca para fora, aí realmente é algo para a gente ficar muito preocupada. 

Como lidar com esse ódio?
A forma de romper com esse ódio absurdo é instalar um ódio politizado, porque esse atual é despolitizado. O ódio politizado é contra a burguesia, é aquele que o empregado sente do patrão todo dia. A gente precisa mobilizar esse ódio, construir a partir disso. O ódio politizado é o antagonismo. Não há mudança social se não tiver por exemplo o ódio politizado das mulheres em relação à violência que elas sofrem, isso não significa matar o homem. O ódio politizado: é o que eu faço com esse ódio? O ódio politizado é que tem que acabar com o patriarcado. A gente tem que falar sobre a cultura do estupro sim, que está em todos os lugares, e esse ódio tem que alimentar a coragem, não o medo. 

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  • Paula Guimarães

    Jornalista e co-fundadora do Portal Catarinas. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, pós-graduada...

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