Videoclipe “Lamento da força travesti”, traz à tona o desejo de envelhecer no país onde a expectativa de vida da população LGBTQIA+ não passa dos 35 anos de idade. Mas também evoca a celebração da vida dessas pessoas.

Nascida em Florianópolis e radicada em Pernambuco, a transartivista RENNA aborda a dor e a força travesti no videoclipe “Lamento de Força Travesti”. Repleto de simbologias de morte e vida, o projeto retrata a realidade brasileira da comunidade LGBTQIA+ e o desejo de viver além dos 35 anos, idade correspondente à expectativa de vida dessa população no país. 

Com uma fotografia impecável, as cenas de rituais de passagens, com túmulos, velas e velórios remetem ao trágico destino de LGBTs ao mesmo tempo que refletem sobre o direito ao envelhecimento dessas mesmas pessoas. De acordo com o “Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil”, com coautoria da Associação Acontece Arte e Política LGBTI+ de Florianópolis, foram registradas 237 mortes violentas de LGBQIA+ em 2020. Com recorte transgênero, houve um aumento de 70% nas mortes de trans e travestis em relação a 2019.

“Uma parte da letra diz ‘saber que eu tô no lucro se passar dos 35’, isso porque eu não tenho 35, eu tenho 29, então não sei se vou estar viva até lá”, diz RENNA.

A canção escrita pela travesti joinvillense, Helen Maria, traz dados verídicos sobre a violência sofrida pela comunidade LGBTQIA+ e destaca a urgência em debater o assunto. “A gente não sente essa vontade de falar sobre céu azul e nuvens coloridas porque muitas de nós morrem todos os dias e não podemos deixar de falar sobre isso, sobre nossas mortes”, enfatiza RENNA. Na última semana uma mulher trans foi queimada viva em Recife e precisou ter o braço amputado por conta dos ferimentos. 

A transartivista Renna no videoclipe ‘Lamento da Força Travesti’. Foto: Anderson Dinho

A transartivista dividiu a filmagem com outras artistas trans do sertão e agreste pernambucano, são elas: Gabi Benedita, Irla Carrie, Samantha Fox e Vinn Amara. “Quando o protagonismo é travesti tem que trazer outras travestis para a cena. É importante essa representatividade dentro das artes, principalmente pela questão da empregabilidade, as trans não precisam somente de visibilidade, a gente precisa é de emprego”, ressalta RENNA.

O projeto teve incentivo da Lei Aldir Blanc, uma das poucas iniciativas voltadas ao setor artístico e cultural, duramente atravessado pela pandemia. “Um dos motivos de ter saído de Santa Catarina é a falta de incentivo aos artistas locais. Aqui em Pernambuco o cenário é melhor, existem mais iniciativas na área. Com a nossa seleção pela Lei Aldir Blanc, nós pudemos contratar uma equipe que é toda formada por pessoas negras e LGBTS, pudemos pagar as artistas”, comemora. 

Confira a entrevista com a transartivista RENNA:

Conte um pouco sobre sua trajetória pessoal e artística.
Nasci em Florianópolis, no bairro Carianos, depois fui pro Sul da Ilha morar mais próxima da natureza e do mar. Formei em Teatro pela Udesc em 2017. Minha trajetória é em especial com o teatro de rua, o teatro popular que é um lugar de ritual e de brincadeira. Minha formação política me afastou do teatro institucional, aquele de palco e plateia. 

Quando me apresentava na rua, percebi que a música me conectava mais com as pessoas. Mas não me vejo só como cantora, eu sou atriz e performer, a música me atravessa como uma ferramenta de conexão direta com o público. A partir da sonoridade eu trago um tom político, um discurso político.

Como se deu a criação do projeto ‘Lamento da Força Travesti’?
Era um projeto que já estava mirabolando com a beatmaker paraibana Luana Flores, em novembro saiu o resultado da Lei Aldir Blanc, em janeiro estávamos gravando o clipe e em fevereiro, lançamos. Foi um mês de correria, mas valeu muito a pena. É meu primeiro videoclipe e saiu como mais uma estratégia de sobrevivência, sempre quis ser artista e de diferenciar as linguagens, entendendo a arte como um todo. 

O feedback foi estrondoso, embora tenha me dedicado bastante, não achava que ia reverberar tanto como reverberou e reverbera até hoje. O processo que eu fiz como artista tem caráter híbrido que pode ser lido como clipe, videoarte, curta-metragem, o inscrevi em festivais e mostras de cinemas, passamos por mais de 15 eventos online, isso deu força e visibilidade. A repercussão do boca a boca foi super importante também. Por um olhar de identificação da comunidade LGBTQIA, querendo ou não, é algo inédito, esse contexto é algo que não tinha sido produzido ainda, ganhando um ar de ineditismo. 

Gravado no Vale do Catimbau, o videoclipe reúne cinco travestis em cena. (Foto: Anderson Dinho)

Você fez questão de convidar outras artistas trans para participar do clipe?
Não tem como eu pensar no meu trabalho e me pensar sozinha, embora eu seja sozinha, a Renna não anda sozinha. Eu trouxe a Gabi Benedita, a Irla Carrie, a Samantha Fox e a Vinn Amara. Todas são travestis fora da capital que habitam o agreste e sertão pernambucano, e a equipe é formada por LGBTS e pessoas negras. Aqui apesar de ter mais políticas públicas, ainda é muito pautada na Grande Recife. E a importância do protagonismo travesti de trazer outras manas pra cena, isso é representatividade dentro das artes, principalmente na questão da empregabilidade. A gente não precisa de espaço não, a gente precisa de um emprego, as meninas foram contratadas, fomos selecionadas pela Lei Aldir Blanc, foi muito importante para o projeto nascer. 

Um dos trechos da música diz “Saber que estou no lucro se passar dos 35”. A canção tem um formato de denúncia. Quem a escreveu?
A letra é de uma outra travesti, a Helen Maria, de Joinville. Helen traz na letra dados verídicos, uma letra muito crua no sentido da violência, fala da grande emergência de uma arte produzida por pessoas trans. A gente não sente essa vontade de falar sobre céu azul e nuvens coloridas porque muitas de nós morre todos os dias e não podemos deixar de falar sobre isso, sobre nossas mortes. Esses episódios de violência como o que aconteceu, em Recife, na semana passada, com Roberta Silva, uma travesti que foi queimada viva e, na semana anterior, com uma outra mana, Kalyndra morta asfixiada pelo próprio “marido”.

O trecho “saber que eu tô no lucro se passar dos 35” é isso, porque eu não tenho 35, eu tenho 29, então não sei se vou estar viva até lá.

O videoclipe é cheio de simbologias. Além da questão da morte, tem uma espécie de celebração da vida, né?
O que eu quis trazer é a celebração de nossas vidas. Porque ainda hoje a única coisa que a gente faz é acordar e se manter viva até o fim do dia. Principalmente, manas que vivem em situação de vulnerabilidade, que trabalham com prostituição, então levantamos essas questões, desse corpo que sobrevive.

Mais do que falar sobre a morte, esse trabalho busca falar sobre a celebração de nossas vidas e coloca a morte como um ritual, não existe morte sem vida, queremos o direito da morte natural e do corpo transgênero que passa por essa transição também em vida, passa por esse processo de morte e renascimento. 

Renna e Gabi enterram a si mesmas na última sequência do videoclipe. (Foto: Anderson Dinho)

Como foi o seu processo de morte e renascimento na mudança de gênero?
A minha morte e renascimento não foram dolorosos, foi um processo libertador e isso se deve graças à própria base de apoio que eu tenho, eu tenho uma família estruturada que me apoia e além disso, eu tenho uma base de amigos e amigas que sempre me apoiaram e me respeitaram. Surgiu de uma forma muito natural, eu não precisava ficar me reafirmando o tempo todo porque eu já era acolhida, eu vejo como um lugar de privilégio de uma não realidade da maioria, eu tenho essa consciência e isso fez com que fosse mais leve. 

Então eu levei essa energia pra arte, comecei a compor, escrever poesia, performar… a arte funciona pra mim como essa válvula de jogar os meus anseios e meus afetos e passar por esse processo em uma sociedade racista, lgbtfóbica, não é nada fácil. Antes eu já era xingada na rua por ser gay, agora como mulher eu tenho medo de ser assediada.

Agora, eu também sofro as questões machistas que permeiam a vida das mulheres e nessa luta a gente se junta ao feminismo e eu me identifico bastante com o feminismo negro pela questão da solidão, da exclusão, são lutas que conseguem dialogar com a minha vivência.

Quais motivos a levaram a sair de Santa Catarina?
Durante a minha mudança geográfica foi quando aconteceu minha transição de gênero, eu precisei sair da minha família, do ciclo de origem para passar por essa transição pra não sofrer preconceito. E também em relação a políticas públicas direcionadas às artes porque em Santa Catarina é um descaso. Na minha vivência, eu participei do Ocupa Udesc e outras ocupações ligadas ao movimento das políticas públicas por conta da falta de incentivo no setor cultural. E fui entendendo que Pernambuco é muito potente em relação a isso. São vários festivais que acontecem no estado inteiro e tem mais incentivos.

Eu saí de uma ilha e vim parar no sertão. Tem também uma busca muito forte espiritual, busca da ancestralidade e autocuidado. Foi uma boa escolha, embora eu ame Desterro como eu chamo, mas essa coisa dessa cidade à venda, da elitização da própria cidade me afastou.

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