As mensagens trocadas entre o então juiz e atual Ministro da Justiça Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, divulgadas pelo The Intercept Brasil, talvez sejam o maior escândalo envolvendo instituições do sistema de justiça em nossa história democrática.

Como não poderia deixar de ser, há enorme especulação sobre os efeitos dessa divulgação para Moro, Dallagnol, Lula e todos os demais processos da Operação Lava Jato. Tudo dependerá da posição que o Judiciário tiver sobre a licitude ou ilicitude dessa prova, isto é, da forma pela qual essas conversas foram obtidas.

Contudo, o escancaramento dos diálogos entre Moro e Dallagnol nos leva também a um outro ponto: as violações do direito à ampla defesa e ao devido processo legal.

O episódio Moro-Dellagnol pode ser visto como o ponto mais extremo de uma percepção difundida socialmente, e mesmo dentro do próprio sistema de justiça, de que a atuação do advogado é uma barreira para a concretização da justiça. A não condenação de poderosos é falsamente justificada pela interposição de recursos pela defesa, o que levaria à prescrição das ações. Vejam: a prescrição teria origem não na demora judicial, mas na ampla defesa. Esse foi, por exemplo, um dos principais argumentos utilizados pelos ministros do STF para a mudança de entendimento sobre a possibilidade de prisão após julgamento em segunda instância, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.

No julgamento do Habeas Corpus 126.292, em 2016, o ministro relator Teori Zavascki, apesar de assegurar que o modelo de justiça criminal brasileiro era democrático e “de cunho garantista”, garantindo a ampla defesa, o contraditório, “o direito à defesa técnica plena e efetiva”, ressaltou que “os apelos extremos (…) ao invés de constituírem um instrumento de garantia da presunção de não culpabilidade do apenado, acabam representando um mecanismo inibidor da efetividade da jurisdição penal”.

No mesmo sentido votou o ministro Luís Roberto Barroso, que considerou a execução da pena após o trânsito em julgado da condenação “(…) um poderoso incentivo à infindável interposição de recursos protelatórios”, já que as “impugnações movimentam a máquina do Poder Judiciário, com considerável gasto de tempo e de recursos escassos, sem real proveito para a efetivação da justiça ou para o respeito às garantias processuais penais dos réus”. Além disso, disse que essa “procrastinação” só poderia ser bancada por “réus abastados”, o que reforçava a seletividade do sistema penal. Recursos da defesa seriam o problema; já as prisões ilegais, os acórdãos contrariando súmulas de tribunais superiores e recursos da acusação, não.

A atuação do advogado, responsável pela garantia constitucional da ampla defesa, passou a ser vista como uma ameaça à justiça. Além da questão das críticas ao papel da defesa na interposição de recursos, isso tem aparecido de outras maneiras. Casos recentes, que ganharam notoriedade pelo prestígio das pessoas envolvidas, também colocam em xeque o exercício do direito de defesa e atuação de advogados e advogadas responsáveis pelo caso.

Nas mensagens trocadas entre Moro e Dallagnol, a antipatia pela defesa toma outras proporções, a ponto de, aparentemente, unirem forças para enfrentá-la. Seria medo?

O direito à ampla defesa, previsto no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal, garante às pessoas envolvidas em quaisquer processos administrativos e judiciais o direito de contestar, recorrer e valer-se de todos os argumentos possíveis contra as acusações. Tudo isso depende, obviamente, de um juiz capaz de analisar com imparcialidade os argumentos e as provas de cada uma das partes. Se o juiz se alia a um dos lados, a defesa prévia, a contestação, a inquirição de testemunhas, as perícias, as alegações finais, tudo é reduzido a mera encenação. O conluio entre juiz e acusador, ao final das contas, tornou o caso impossível de ser ganho pela defesa.

As conversas divulgadas revelam o intuito de impedir a ampla defesa, colocando a parte acusada em incontornável desvantagem frente àqueles que a acusam, distorcendo toda a lógica constitucional que exige um devido processo para que a liberdade de uma pessoa seja afetada. O devido processo legal foi uma farsa e à defesa foi relegada a missão impossível de convencer um juiz que, em verdade, era acusador.

Teria a acusação sucesso sem o juiz instruindo suas ações? Teria um juiz imparcial chegado à conclusão diversa? Quem quer ser julgado por um juiz que combina passos com a acusação?

*Luíza Pavan Ferraro é advogada e pesquisadora em Direito, e Eloísa Machado é pesquisadora e coordenadora do Supremo em Pauta FGV Direito SP.

Fotos usadas na montagem: Fabio Rodrigues Pozzebom e Fernando Frazão/Agência Brasil

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