Margarida Alves um dia disse que “preferia morrer na luta a morrer de fome”. Morreu aos 50 anos, vítima da violência contra as mulheres, vítima da intolerância do sistema contra a organização da classe trabalhadora. Margarida é um símbolo da luta do povo brasileiro. Camponesa e sindicalista, uma mulher que disputou ideias na esfera pública, marcada pelo poder do capital e do patriarcado. Não negociou princípios. O cenário era a ditadura, as causa eram a fome, a injustiça e a violência. Margarida foi assassinada em agosto de 1983, por defender trabalhadores rurais, sintetizando na sua história o valor da organização coletiva. Morreu na frente do filho, por contestar papéis impostos ao gênero e a sua classe social.

Em 8 de março deste ano, um conjunto de movimentos e ativistas convocam às mulheres para uma GREVE INTERNACIONAL que tem no centro de suas reivindicações o fim da violência de gênero. Fruto de uma série de protesto de caráter feminista no mundo, o movimento grevista repete a frase de ordem “se não nos querem vivas, que produzam sem nós”, em ataque frontal à violência a que nos submetem o patriarcado e o capitalismo. De acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU), sete em cada dez mulheres foram ou serão violentadas em algum momento de suas vidas. São elas as maiores vítimas da guerra, vulneráveis à exploração, às violências geradas pelos processos migratórios, à xenofobia e ao racismo. O estupro ainda é uma tática de guerra oficial em pelo menos 20 países.

Estimulada pelas mobilizações de mulheres no mundo – em especial as organizadas pelas polonesas contra a mudança na sua legislação referente ao aborto e pelas norte-americanas que foram às ruas protestar contra as posições reacionárias de Donald Trump -, a GREVE tem boa parte de sua narrativa inspirada nas latino-americanas. Os protestos gerados após o estupro e assassinato de Lúcia Perez, na Argentina, tomaram o continente em outubro de 2016. Na mesma semana, o Encontro Nacional de Mulheres na Argentina havia sido violentamente reprimido. Os dois fatos desencadearam a primeira greve de mulheres do país e da América Latina. O movimento #NiUnaAMenos gerou atos contra a cultura do estupro e o feminicídio em diversos países, entre eles Brasil, México, Chile e Peru. Não é a toa que as latino-americanas se insurgem e protagonizam a greve de 8 de março. Dos 25 países com maior taxa de feminicídio no mundo, 14 estão na América Latina.

Outros movimentos de resistência feminina tomaram corpo nos últimos anos na América Latina, como foi o caso das mexicanas que se mobilizaram contra os alarmantes índices de violência no país com a campanha #MiPrimerAcoso. De acordo com Instituto Nacional de Estadística y Geografía (INEGI) do México, 63% das mulheres no país afirmam ter sofrido algum tipo de violência sexual. No Brasil, vale lembrar a luta das Mães de Maio, a Marcha das Mulheres Negras, a Marcha das Margaridas e a Primavera Feminista que mobilizaram mulheres ao longo desses dois anos por direitos, justiça social e contra a violência.

Parte integrante desse movimento mundial, as brasileiras aderiram ao chamado e se organizam para a paralisação de suas atividades neste 8 de março. O Brasil é o quarto país no mundo quando tema é violência de gênero. A cada 11 minutos uma mulher é violentada sexualmente e uma mulher negra pode ganhar até 60% menos que um homem branco. A desigualdade de classe no Brasil tem cara e nome de mulher. Além da pauta central, as brasileiras se mobilizam na resistência ao processo político desencadeado a partir do golpe de 2016. Vale lembrar que o impedimento de Dilma Rousseff foi fruto de uma campanha midiática que difundiu amplamente a misoginia e o machismo, reforçando ideias e estereótipos sobre a participação das mulheres no espaço público. Além disso, a articulação do golpe está diretamente ligada à aplicação de uma série de medidas de recrudescimento contra os mais pobres, como a PEC 55 que limita os gastos em áreas do serviço público ou a reforma do ensino médio que agrava ainda mais o quadro precário da educação básica brasileira.

O desdobramento deste processo demonstra o caráter da investida e, neste primeiro trimestre do ano, tem na agenda a Reforma da Previdência que, tal qual apresentada, ataca frontalmente a vida das brasileiras. A medida que tramita no Congresso Nacional como PEC 287, ignora a tripla jornada de trabalho feminina – o trabalho fora de casa, o trabalho doméstico e a maternidade – como fosse algo culturalmente superado, e propõe igualar a idade de aposentadoria entre homens e mulheres. Também busca aumentar o tempo de contribuição para aposentadoria de 15 para 25 anos e ainda prevê cortes em benefícios assistenciais que, em geral, favorecem as mulheres, responsáveis pelo cuidado com as crianças, com os deficientes e com os mais velhos. A reforma modifica o sistema previdenciário desconsiderando a ideia de equidade, conforme aponta a professora Flavia Biroli, no texto Reforma da previdência é trágica para as mulheres. Biroli enfatiza que “ao equiparar a idade mínima de aposentadoria a dos homens e instituir os 25 anos de contribuição, a proposta rompe não apenas com o compromisso constitucional de que a seguridade compensa as desigualdades, em vez de acentuá-las. Ela rompe também com a realidade das condições de trabalho das mulheres, aplicando regras iguais a pessoas em situações muito diferentes”.

É neste ambiente que Margarida emerge como símbolo vivo da resistência, seja contra o feminicídio, seja pela defesa de direitos, signos que tocaram sensivelmente a sua própria história. A ativista empenhada nas lutas populares dos últimos anos da ditadura militar no Brasil nos inspira ao engajamento político na atualidade, denunciando o machismo e a violência contra as mulheres, assim como a exploração de nossos corpos e da nossa força de trabalho pelo capital.

Se por um lado, a agenda nacional deve unificar a classe trabalhadora brasileira, especialmente as mulheres que são a maior parcela da mão de obra e as mais exploradas, por outro, o combate à opressão de gênero é incondicional para quem busca a superação da opressão de classe. O machismo e a misoginia são ainda mais cruéis com as meninas e mulheres da periferia, com as meninas e mulheres negras, com as trabalhadoras precarizadas do campo e da cidade.

Para as mulheres brasileiras VIVAS em março de 2017 – maioria entre a população pobre e explorada – que Margarida Alves seja um exemplo. Se não nos querem vivas, que produzam e reproduzam sem nós. Paramos contra a violência e pelo direito ao nosso próprio corpo, contra o retrocesso de direitos, contra o abuso e a opressão, pela solidariedade às mães da periferia e em memória as tantas de nós assassinadas pela cultura machista. Paramos pelas campesinas e também pelas trabalhadoras urbanas, expostas à violência das grandes cidades, empurradas cada vez mais para a margem dos grandes centros. Paramos pela juventude negra, pelas mulheres lésbicas e transexuais afetadas pela violência de gênero. Paramos por todas nós, meninas e mulheres.

Um dia, Margarida disse que era melhor morrer na luta a morrer de fome. Não morreremos sem antes nos rebelar. Queremos todas vivas!

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