Arte: Hadna Abreu

Nem mesmo a pandemia permitiu que houvesse trégua das polícias brasileiras nas periferias do país. Pelo contrário, conforme apontamos nessa reportagem, as mortes em confronto com a polícia tiveram um aumento de 85% em Santa Catarina, de 16 de março a 29 de junho, em comparação ao mesmo período de 2019, segundo análise dos dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP-SC).

Nacionalmente, o número de mortes em confronto com a polícia foi 26% superior nos meses de março e abril deste ano, em relação ao mesmo período do ano anterior, de acordo com levantamento do Globo. Para entender o contexto de aumento das mortes praticadas por policiais, justamente, quando há uma luta global pela vida, entrevistamos Mariana Possas, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e uma das coordenadoras do LASSOS, Laboratório de estudos sobre crime e sociedade, da UFBA.

“Os chefes das polícias são o governador e o secretário de segurança pública, eles têm o dever de acompanhar os casos de mortes praticadas pelas polícias. O comandante geral da PM, o delegado geral, os promotores, os juízes são todos responsáveis por esse tipo de violência que é o que tipicamente a gente pode chamar de violência de Estado. É uma violência praticada por agentes de Estado em nome do interesse público, oficializada, reconhecida e assinada pelo Estado, com todos os carimbos”, afirma a pesquisadora.

A professora está na reta final de duas pesquisas relacionadas ao tema e financiadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Um dos estudos apura os homicídios em São Paulo e em Salvador, em parceria com a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Mariana também integra a equipe de uma pesquisa nacional em cinco estados sobre a atuação do Ministério Público (MP) diante de casos de homicídios envolvendo policiais, coordenada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP.

Acompanhe a entrevista.

Em Santa Catarina, neste período de pandemia, tivemos um aumento das “mortes em confronto com a polícia”, como são chamadas oficialmente as mortes praticadas por policiais. Essas mortes são informadas semanalmente no site da SSP-SC. Como você analisa essa alta?
A maneira de retratar esse fenômeno varia muito de Estado para Estado, pode aparecer como intervenção policial, resistência ou como ação policial – todos esses ainda aparecem. Essa tendência para aumentar não é só em Santa Catarina. No Rio de Janeiro também aumentou. As questões que ficam são: O que está acontecendo para aumentar? Como é possível os números estarem tão altos? Importante destacar que o aumento é sempre a partir de patamares já altos de letalidade (…) Na pesquisa nacional que estamos fazendo sobre inquéritos envolvendo mortes cometidas por policiais, isto é, analisando como essas mortes são processadas oficialmente, o que vemos é algo que já suspeitávamos: as mortes praticadas por policiais, em que declaram oficialmente nos processos que foram causadas em operação rotineira, são classificadas como confronto ou trocas de tiros. Essa é uma palavra do vocabulário policial para afirmar que não há um crime, uma conduta ilegal, que faria parte da ação policial. Nesses casos, o que vemos é que não existe uma atitude de investigação. Os processos estão lá carimbados, você vê mais ou menos o devido processo legal acontecendo, mas não se tem uma pergunta de fundo sobre se aquela ação foi errada ou ilegal. E isso não é de hoje. Esse tipo de postura institucional, com o Ministério Público, Judiciário e Polícia, de certo ponto autoriza essas mortes. A gente está com uma autorização oficial dessas mortes, sejam confrontos ou não. Se autoriza com o discurso de que a sociedade está mais violenta, então, não tem outro jeito para a polícia que não matar para sobreviver. Se a realidade social pode ser é essa, o que aconteceu não é necessariamente isso, ou seja, a insegurança está colocada, mas não necessariamente os policiais foram recebidos a tiros. Aliás, temos muitas indicações de que não são confrontos, são execuções. Pelo menos, vocês podem ficar felizes que têm uma Secretaria que mostra os dados para que possam ser comparados. Isso já é um avanço.

A pesquisa, na qual você está envolvida, irá identificar o processamento desses casos de mortes praticadas por policiais, se os policiais se tornaram réus em ações penais ou os casos foram arquivados?
Já posso te dizer que desses casos da Bahia foram todos arquivados. A não ser uma situação muito específica, como, por exemplo, peguei um caso que a execução foi a luz do dia, com alguém filmando. Esse tal que foi filmada a gente vê denúncia, uma certa investigação. Senão são arquivados e isso dá para ver claramente.

Estamos falando de uma realidade da Bahia, onde você realiza a sua pesquisa, ou da realidade do país?
Estamos falando da realidade da Bahia, onde isso é muito claro, e também da realidade do Brasil, onde isso acontece muito, de maneira geral, com variações de Estado para Estado. Essa coisa de não investigar de fato acontece muito no Brasil inteiro, é um fenômeno geral. (…) O senso comum incorporou de uma certa maneira que matar faz parte de uma política de segurança que faz sentido, que é racional – principalmente, num governo que estimula a ação explicitamente e institucionalmente através do discurso. Até então, desde a Constituição de 1988, a gente vinha com um discurso de controlar o uso da força policial (uma discussão que está nos Estados Unidos agora). Nossos questionamentos deveriam ser: como é que se controla o uso da força? Como se controla a morte? Como se processa os casos de policiais violentos? Esse processo deve ser dentro da Justiça Militar ou Justiça comum? Existe uma lei de um deputado de São Paulo, que ficou apelidada de “Lei Hélio Bicudo”, para que esses casos de violência, de mortes causados por policiais, não fossem para Justiça Militar, fossem para a Justiça Comum, achando que desse modo teríamos um controle maior sobre esses casos.

O que acontece é que raramente os casos chegam a júri, são arquivados antes. Quando chegam a júri, mesmo com a testemunha presencial dizendo que o policial executou, o imaginário das pessoas que estão no júri é ‘executou porque era bandido, mereceu’. Então, não se consegue se ter uma análise justa, justa no sentido de considerar o direito tal como ele é.

Então, temos um contexto político de aceitação dessas mortes que é anterior e, que poderíamos dizer, se renovou com o discurso da justiça com as próprias mãos…
Se estávamos tendo uma tendência de alta (antes da pandemia de Covid-19), essas mortes iriam aumentar mesmo. Só que a expectativa com os homicídios de maneira geral também é que, com menos interações (em decorrência do isolamento), teríamos menos eventos fatais, menos violência dessa que se passa na rua e isso não aconteceu. Algumas modalidades de violência diminuíram como roubos e furtos, mas não tenho números precisos. Em relação às mortes pela polícia, se por um lado me surpreende um pouco ter aumentado com menos interação, de outro lado, não temos por que acreditar que as incursões nas favelas ou bairros periféricos (ou nas áreas que eles dizem dominadas pelo tráfico), que fazem parte das práticas cotidianas da polícia, iriam diminuir. (…) A verdade é que existe esse estímulo discursivo cada vez mais explícito, essas ações de segurança violentas, apresentados como algo válido pela sociedade (…) Além disso, numa situação em que os meios de comunicação estão muito focados em determinados assuntos, isso pode ser um estímulo para bom ‘vamos fazer o nosso trabalho sem interferência”. De certo modo essas são explicações gerais, mas o discurso do Governo Federal e de certos governadores é muito nesse sentido. Claro que sempre é bom considerar também os aspectos locais para compreender o fenômeno. É possível que esteja acontecendo alguma situação concreta em Florianópolis, por exemplo, que ajude a explicar junto com esses aspectos gerais que mencionei.

Ato “Vidas Negras Importam” levou ma manifestantes às ruas de Florianópolis, em junho, contra as mortes praticadas pela polícia/Foto: Alice Sima

Quando você fala sobre a postura institucional que autoriza essas mortes … quem é responsável por cobrar a investigação, o próprio Ministério Público (MP)?
Há muitos responsáveis. É uma hierarquia de responsabilidades que não funciona. Começa na Corregedoria da Polícia que não faz o controle da atividade da polícia. O MP do ponto de vista jurídico teria obrigação de cobrar, mas o problema é que alguns promotores até tentam cobrar e outros não acham que é caso de cobrar. É um problema de mentalidade, de não ver um crime relevante, eles mesmos são os primeiros a pedirem arquivamento. Os juízes aceitam, eles veem que não tem muita investigação, mas tudo bem, eles homologam o arquivamento mesmo assim. Além disso, o chefe da polícia é o governador e o secretário de segurança pública, ou seja, há também um dever governamental de acompanhar esse tipo de caso. Se o governador não toma a rédea e não bota todo mundo para trabalhar numa mesma orientação, esse problema é muito difícil de ser atacado, porque são várias responsabilidades de várias ordens e uma instância acaba por deixar para outra. O comandante geral da polícia também é responsável. São todos responsáveis pela violência de Estado. É uma violência praticada por agentes de Estado em nome do interesse público, oficializada, reconhecida e assinada pelo Estado, com todos os carimbos. Portanto, é também função do governador, não só um assunto da Justiça.

É comum operações que envolvem violações de direitos fundamentais e até mortes terem o mesmo desfecho na Justiça Militar: são consideradas adequadas e os processos são arquivados. Exemplo é o caso do Jovem Vitor, morto enquanto brincava com uma arma de pressão no quintal de casa. Entre as alegações dessas práticas está o uso progressivo da força. De que forma você avalia esse método?
Essa história de uso progressivo da força no caso de violência letal pode funcionar como armadilha, porque de fato esses casos não são questão de uso progressivo. Mesmo no caso do George Floyd, não faz sentido. É como se o policial fosse usando a força, uma gradação que a partir de um determinado momento ele usou demais. A questão é que os policiais chegam nas situações com a disposição de matar, então, não se trata de que eles não controlam os limites, O grande argumento usado nessas situações é ele usou a força que precisava usar naquele momento, porque avaliou a situação como perigosa’. Mas a verdade é que nem sempre existe esse tipo de avaliação.

Essa discussão sobre uso progressivo tem que existir, mas o que estamos fazendo agora é o uso da morte, não do excesso de força. Como a ação de matar é algo que faz parte da prática, é como se não tivesse que explicar muito qual foi a situação de fato, os policiais relatam como se tivesse havido um “confronto” e pronto.

Usam muito o argumento do confronto como legítima defesa, mas isso não ocorreu, necessariamente. Porque a legítima defesa é realmente quando você diz: aqui não teve crime porque ele matou para não morrer. Não estou dizendo que isso não pode acontecer nunca, isso perfeitamente pode acontecer, mas não é a regra.

Everton, um jovem negro foi assassinado em 10 de abril, no Morro do Mocotó, em Florianópolis. A mãe, uma trabalhadora doméstica, conta que ele levou um tiro na cabeça enquanto estava de costas. Conforme a mãe, ele não estava armado, tampouco com drogas. Ela se sente injustiçada porque além de morto, o filho foi chamado de traficante. Como você percebe esse tipo de relato?
O discurso oficial desse tipo de caso é que estava com drogas e teve confronto. O flagrante plantado é algo que acontece muito na polícia brasileira. O problema é provar. A maneira como funciona a justiça brasileira é perguntar: tinha droga ou não tinha droga? E a resposta é “tinha”. Mas a pergunta que deveria ser também feita é: tem indícios de que o policial plantou? Essa investigação não é feita. Isso não aparece no processo, diferente do confronto que está lá oficializado. O policial se vale dessa estrutura de monitoramento, de vigilância, que é falha. O policial goza de boa fé como qualquer funcionário público, então, essa “fé pública”, como se diz, não vai ser colocada em jogo. Só que a gente vive no Brasil um fenômeno em que por mais desestabilizante que possa soar, a gente tem que colocar a boa fé e a fé pública desse funcionário em questão, porque senão nunca vamos conseguir pegar casos como esse do Everton. Porque não vai ter ninguém para apurar.

O desespero de uma mãe nessa hora é porque vai ser muito difícil provar. Claro, em outras situações se encontra droga de fato. Então, existe uma espécie de desvalorização desses casos, como se eles pudessem invalidar o bom trabalho.

A morte em confronto, em geral, é explicada pela apreensão de droga e pelo local onde ocorreu, geralmente uma área periférica. Há de certa forma, nesses elementos, um salvo-conduto para aquela morte?
Nessas investigações, o contexto maior vale muito pouco, o que é importa é ter a droga ou não. O fato da droga é determinante para esse salvo-conduto da morte. O salvo-conduto não é só pela droga, existem outras estratégias. Mas se você falar que tem droga ou está em “local de tráfico de drogas” é como se autorizasse dentro dessa burocracia, é como se fosse uma senha para falar ‘nestes casos pode violência, nestes casos está autorizado’. Isso é super complicado e tem a ver com o perfil da vítima, porque esses locais são 100% de periferia em que as pessoas vão ser abordadas, normalmente os jovens negros, envolvidos ou não com atividade do tráfico de drogas. A fala da droga serve para justificar, mas como não se apura o contexto, de fato o jovem pode ser ou não vinculado. É uma armadilha super complexa e enraizada, que está produzindo muitas mortes, violência de Estado, aumentando e reduzindo a possibilidade de controle, que vinha aumentando a partir dos anos 80, e agora está retrocedendo. Não é à toa que aumentam o número de mortes.

Há essa construção da verdade entre mocinho e bandido, no caso o policial é sempre o mocinho e o que morreu é o bandido, ou seja, culpado pela própria morte; aquele que morreu é algoz de si. O júri fica numa situação difícil…
Quando chega ao júri, se o policial chega dizendo: “droga”, “tráfico”, “confronto”, o júri absolve. Nessa pesquisa que estou fazendo agora, com os inquéritos, vemos isso, que na maioria dos casos o júri absolve. Há alguns trabalhos como, por exemplo, o de Rafael Godoi e Carolina Grilo do Rio de Janeiro. Eles investigaram uns 300 autos de resistência. É uma fala comum dos operadores do direito, é algo sabido internamente na Justiça: júri de policial militar em serviço absolve, mesmo com prova presencial, testemunhal, a não ser em caso muito excepcional.

O júri se deixa convencer por esse discurso vendável, mais fácil de bem e mal, bem separadinho, sem grandes perguntas sobre quem é o tal do bandido, sem colocar em questão a fé pública. O júri tem uma certa acomodação em relação a isso. A maneira como é apresentada, promotor constrói uma imagem de mocinho e bandido. O que a gente tem é uma verdade jurídica que vai se fazendo no processo que não tem ancoragem empírica, não se faz uma espécie de checagem dos fatos. Então, é uma verdade jurídica distante do fato, é um movimento complexo. Se tem de um lado uma autorização de uma morte, uma legalização pelos tribunais, de outro lado você tem uma aceitação de verdades mal contadas a partir de “expressões-senha”, sobre as quais não se é exigido o detalhamento, testemunha. O policial é autor e testemunha, as outras testemunhas são colegas, que também são coautores. É uma grande mistura de autor e testemunha, a gente não sabe bem quem é. Nesses processos de resistência os quais estou analisando, é muito interessante como a categoria autor e vítima fica misturando o tempo todo, porque a vítima da morte é autor da resistência e o autor da morte é vítima da resistência. Assim como tem uma descrição muito ampla e vaga dos fatos.

No direito existe uma coisa que se chama “o princípio da verdade real”, quer dizer você tem que ter uma disposição, uma atitude de ir em busca de uma verdade real, talvez você não consiga, mas precisa ir atrás dela. Isso a gente vê bem distante, nesses casos. É como se a narrativa ficção valesse e isso dá muita instabilidade.

Arte: Hadna Abreu

Após uma noite de operação, que resultou em morte, o ex-comandante geral da PM, coronel Araújo Gomes, publicou o texto “baita noite” em suas redes sociais. A frase soou como comemoração da morte. O militar negou que teria esse sentido nessa entrevista. Como você analisa esse tipo de manifestação?
Comemora ou não comemora a morte? Isso é algo que a gente viu em falas de vários governadores. A gente viu no Witzel (governador do Rio de Janeiro), ele comemora a operação que matou o sequestrador. A morte (do criminoso, do suspeito, ou de alguém que não estava envolvido em crime) não é um sinal de problema e sim de operação bem-feita. A morte qualifica a operação como mais rigorosa, mais efetiva. Isso mostra um pouco a mudança explícita em relação à morte. A morte faz parte da prática policial. A gente ainda se horroriza com ela, mas para os policiais isso não é só esperado, no sentido de que pode acontecer, há uma expectativa em alguma medida de que deve acontecer. É um sinal de uma boa ação e aí isso tem tudo a ver com essa discussão de caricaturização das cenas, como se fosse mocinho e bandido mesmo. Tem a ver com a falta de profissionalização da polícia. Temos que ter muito cuidado para não parecer que a gente quer jogar a conta toda na polícia. A gente está afirmando que ela é violenta, que os casos de violência não são processados devidamente, se processa, que não se investiga. Mas ao mesmo tempo, temos que reconhecer que a polícia presta serviço super complexo e é extremamente mal treinada, mal assessorada. Apesar dos esforços realizados em muitos estados, tanto na formação do policial quanto no treinamento, ainda podemos dizer que no dia a dia, é um serviço muito precário, no limite do amador.

Tem um certo heroísmo dos policiais (em geral) porque essa grande estrutura militar, que serve para organizar certas coisas, mas o fato é que na rua, na prática, o policial da ponta, fica muito à mercê, sem apoio adequado, sem estrutura, sem estímulo. Nesse sentido, eu me solidarizo demais com esses profissionais e com as grandes dificuldades que eles enfrentam cotidianamente.

É mal treinada mesmo ou bem treinada para a guerra, o confronto?
É mal treinada de uma certa perspectiva, no sentido de treinar protocolos de controle da força, protocolos técnicos de redução da violência internacionais que existem. Saber lidar com as armas e lidar com situações de conflito. Quando eles saem do curso de formação, os policiais dizem que vão passar por outro momento de formação, que é o de socialização na prática. Nesse momento dessa desconstrução da teoria e adoção da cultura da rua, aí se vê essa expressa valorização da morte, expressa associação do matar com vigor e masculinidade, com o respeito dos colegas, a solidariedade com o grupo, tem toda uma espécie de rito de passagem. Também tem uma cultura de guerra, isso de fato é presente. Se a guerra é contra a Covid-19, imagine contra o traficante. A atitude de guerra é necessariamente de violência, implica em como vamos lidar com a violência, a função da guerra é essa: como essa violência vai ser mais bem aplicada?

E quando se diz “estamos em guerra”, então, a polícia militar tem que estar em guerra. Quando estamos em situação de guerra passa a valer o raciocínio do inimigo: e o traficante se encaixa perfeitamente nesse papel de inimigo a ser exterminado, não importa o contexto e o sujeito, é importante somente o papel que ele desempenha naquele momento da operação policial.

É uma maneira muito simplificada e vendável, mas é inútil para pensar segurança. Uma das explicações da violência é que ela é uma redução da complexidade do mundo. “Não vamos discutir isso, vamos só chamar bom e mau, mata ou não mata”. Não é para perguntar por que estou matando, é para matar e pronto, é fácil de ser incorporada como discurso de segurança. Se fala desde sempre que não se pode trabalhar segurança com militares, porque militares trabalham com lógica de guerra. E segurança pública não tem nada a ver com guerra, é outra maneira de promover segurança, mas a gente continua repercutindo, enquanto sociedade que quem melhor entende de segurança pública são os militares militar. A polícia militar então, tem que fazer, e vemos alguns avanços em alguns lugares, um trabalho de desconstrução da lógica do “inimigo x aliados”. Mas ainda temos que caminhar nesse sentido.

“Embora nem todo policial seja um tirano, o sistema militar permite a tirania”, afirmou certa vez o tenente da PM cearense Anderson Duarte, um dos fundadores do movimento Policiais Antifascismo. Segundo ele, essa tirania, repassada do mais forte para o mais fraco na hierarquia militar, é reproduzida contra a parte mais vulnerável da sociedade. Qual a sua reflexão sobre essa análise?
Tem aquela frase do Paulo Freire que diz que o oprimido sonha em estar no lugar do opressor. Isso acontece demais, são os micropoderes do dia a dia. Se é oprimido aproveita uma situação de hierarquia para se estabelecer como opressor, de um lado como revanche e de outro porque é assim que o policial sabe funcionar. Foi assim que ele aprendeu a funcionar, a partir da relação opressor – oprimido. Como ele vai exercitar outra lógica, senão a que ele está submetido? Por isso que digo que é uma profissão super difícil porque se está dizendo que ele tem que ser compreensível, aberto, rápido, protetor da população, quando ele mesmo, como profissional, é submetido cotidianamente a opressões das mais diversas. Como se pode exigir que reproduza outra prática? A hierarquia militar tem mais desvantagens do que vantagens, eu acho que seria muito melhor uma polícia que não fosse militar. Como no Brasil temos sempre grandes desafios se você olha para a civil também não é um bom modelo, e é completamente civil. O investimento na polícia deve ser como todo, na profissionalização, valorização do profissional, fora da lógica da guerra. É um sistema que precisa ser repensado como um todo.

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Essa entrevista integra a reportagem colaborativa “Epidemia de execuções: PM catarinense mata 85% a mais no isolamento social”, trabalho de apuração que envolve três mídias independentes de Florianópolis: Portal Catarinas, CatarinaLAB e Folha da Cidade.

Equipe:
Portal Catarinas: Paula Guimarães e Inara Fonseca
Folha da Cidade: Míriam Santini de Abreu e Priscila dos Anjos
CatarinaLAB: Fábio Bispo
Fotos: Alice Sima e Odara Cris
Ilustrações: Hadna Abreu
Infográficos: Fábio Bispo

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  • Paula Guimarães

    Jornalista e co-fundadora do Portal Catarinas. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, pós-graduada...

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