A sinhá entra no clube social da cidade e deixa a mucama à sua espera, na porta. Num outro salão de baile, uma corda divide a pista de dança para delimitar o espaço das pessoas brancas e  negras. As práticas de segregação racial que parecem retratar a África do Sul dos anos 1950, durante o apartheid, teriam acontecido em Santa Catarina no começo do século passado. Os relatos foram colhidos pela professora Jeruse Romão em sua pesquisa sobre os Clubes Negros, sociedades recreativas e culturais para a convivência social da população negra. A pesquisadora e militante do Movimento Negro de Santa Catarina lançou financiamento coletivo para contar a história destas associações e do seu papel histórico na preservação da cultura no Estado onde, segundo o IBGE, apenas 15% da população se declara “preta” ou “parda”. A pesquisa está em financiamento coletivo e recebe doações por meio deste link.

Foi a partir dos anos 1900 que começaram a surgir, em Santa Catarina, espaços onde a população de origem africana encontrasse liberdade para vivenciar dinâmicas culturais e relações de pertencimento coletivo, conforme a pesquisadora. “A cultura da não presença em espaços brancos manteve-se no período pós-abolição, pelo menos com bastante vigor em Santa Catarina”, conta a professora Jeruse. O clube Cruz e Sousa, de Lages, fundado em 1901, é um dos mais antigos em atividade. Há outras associações ativas em Tubarão, Florianópolis, Criciúma, Laguna, Tijucas, Joinville e Itajaí.

A pesquisadora popular começou a resgatar a história dos clubes para um artigo que publicou na revista Africanidades Catarinenses em 2009. A partir da ampliação da pesquisa bibliográfica e reunião de relatos e acervo fotográfico, ela espera constituir uma publicação capaz de registrar o legado dos clubes. “A intenção é preservar a memória histórica dessas instituições e resgatar as contribuições desses clubes como espaço social, educativo, organizativo e cultural para várias gerações de negros e negras no Estado de Santa Catarina”, conta.

Convívio e formação

Como em qualquer clube social da época, as associações ofereciam principalmente programações de lazer. Reunidas nos clubes negros, as mulheres participavam de cursos de corte e costura, formação para o mercado e preparação para o casamento. Nos anos 80, clubes de todo o Estado promoviam o concurso de beleza “A mais bela negra de Santa Catarina”, que resiste até hoje.  “Ao mesmo tempo em que tinham características muito próprias da comunidade, os clubes negros também reproduziam ações dos clubes de brancos”, conta a professora.

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Em algumas destas sociedades recreativas, o corpo de associados também encontrava oportunidades de formação. O Clube Cruz e Sousa, de Lages, que tinha ligação com o movimento negro de São Paulo e contornos mais politizados, chegou a oferecer aulas de alfabetização de adultos, de acordo com Jeruse Romão. Foi a partir da formação das primeiras professoras negras que os clubes ampliariam o espectro de atuação.  “As professoras negras passaram a influenciar a criação de núcleos de articulação política”, relata a pesquisadora.

Redutos de preservação da cultura

Com a pesquisa, Jeruse também procura reverter a invisibilidade histórica que acomete os clubes de uma forma geral, resultado da mudança nos hábitos sociais. “Como fazem parte de uma cultura muito antiga, a nova geração de brasileiros/as não vê necessidade de pagar para se associar aos clubes. O modelo de associação está em decadência no Brasil e os clubes estão agonizando”, observa a professora.

No caso dos clubes de brancos, o declínio ocorre por falta de identificação das gerações atuais com a proposta, na opinião da professora. “A juventude não mantém os clubes de brancos porque eles foram projetos das velhas elites. As novas elites brancas não têm interesse em manter território fixo, até porque elas têm uma dimensão muito ampla. A cidade é delas em outros lugares”, afirma.

Muitos dos clubes negros também sucumbiram diante das crises financeiras, mas os que restam, apesar das dificuldades, têm as portas abertas também para não-negros. Alguns, como o Novo Horizonte em Florianópolis, é muito procurado devido à localizado na Avenida Beiramar, área nobre da capital.”No passado os negros não podiam procurar os clubes de brancos para fazer uma festa de casamento, por exemplo. Mas hoje, os clubes das elites brancas decaíram, e o Novo Horizonte está ali, sobrevivendo e recebendo quem tiver interesse”.

Preservar a memória dos Clubes Negros, segundo a professora, é resistir. “Os clubes não existem apenas para o entretenimento, mas para preservação de identidade de uma comunidade e de uma etnia, como neste caso. Os clubes negros cumpriram um papel fundamental de visibilizar a nossa cultura no Estado que tem a menor população negra do Brasil. A população negra, sempre na luta por território, sabe que estes clubes são o seu espaço”, afirma.

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  • Ana Claudia Araujo

    Jornalista (UPF/RS), especialista em Políticas Públicas (Udesc/SC), mãe de ninja.

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