Este artigo integra o Relatório Final da Comissão Memória e Verdade da UFSC, apresentado em novembro de 2018. Foi escrito pelas mestre Lídia Schneider Bristot e mestranda Mariane da Silva, sob a orientação da professora de História da UFSC, Cristina Scheibe Wolf. Editado por Catarinas para contribuir com a memória do que foi o período e valorizar o protagonismo das mulheres na luta para enfrentar o regime ditatorial. 

As mulheres participaram das mais diferentes maneiras das lutas de resistência à ditadura brasileira. Estiveram atuantes em grupos de esquerda clandestinos, em grupos guerrilheiros, em partidos, em sindicatos, no movimento estudantil entre diversas outras atuações, onde lutaram por espaço, por reconhecimento e ao mesmo tempo em que enfrentaram a repressão enfrentaram o machismo cotidiano que vê as mulheres como não participantes da política.

Um dos espaços de atuação onde elas se inseriram fortemente na década de 1960 e 1970 foi o movimento estudantil. Isso se deu pelo crescimento das universidades no período, e pelo crescimento das mulheres matriculadas nesses espaços. Os dados do IBGE sobre a presença feminina no ensino superior brasileiro mostram o aumento das mulheres nesse espaço. Em 1956 elas eram 26%, em 1971 chegam a 40%.[1]

Na UFSC, entre 1967 e 1968, quando o movimento estudantil se reestruturava após o golpe e as medidas repressivas de 1964, algumas mulheres foram importantes figuras políticas. Em Florianópolis, o movimento estudantil se reorganizou principalmente em torno de dois grupos políticos, Ação Popular e o Partido Comunista.

Derlei Catarina de Luca foi uma militante do movimento estudantil entrando para a Ação Popular nesse período. Em suas memórias relembra como entrou em contato com o movimento estudantil.

“Eu entrei na Universidade em 66 e quando nós chegamos na Universidade, minha turma, não tinha Diretório Acadêmico, não tinha DCE, porque estava tudo fechado. No início assim, a gente não tinha, não sabia muito coisa sabe, porque a gente estava começando. No primeiro ano foi o ano de ficar tateando (…). No início de abril, não, não foi no início de abril, no dia 31 de março de 66 tinha um cartazinho no Restaurante Universitário que era ali na Escola Técnica, que dizia assim: aniversário do golpe, vamos abrir o DCE, a UCE. E eu fui lá sozinha. E tinha dois estudantes só, dois estudantes de Direito que eram o Nelson Wedekin e o Markian Kalinoski e eu, e eu não conhecia eles e eles também não me conheciam. Eram dois estudantes de Direito de Joaçaba que também tinham feito vestibular naquele ano. Bom, conversamos ali do golpe militar. Nós já falamos de golpe militar, lá na minha casa, lá em Içara, Criciúma, nós falávamos golpe militar. Mas todo ano de 66 foi assim, tateando, conhecendo as pessoas.”[2]

Derlei era estudante de Pedagogia da UFSC, onde entrou como caloura em 1966 vinda de Içara, no interior do estado. Seu relato é interessante para perceber os caminhos da tentativa de rearticulação do movimento estudantil. Esse foi um momento de grande efervescência, em que os estudantes aprendiam como se reorganizarem no processo de realizar cada pequena atividade. Derlei comenta sobre a organização de uma assembleia em 1967, quando os órgãos estudantis estavam fechados:

“Então fizemos um panfleto e marcamos uma Assembleia para discutir a questão de um professor de matemática. E encheu, chegou na hora não sabíamos nem o que fazer de tanta gente: lotado, lotado, lotado, lotado! E tremíamos tudo porque não tinha ninguém do Diretório Acadêmico [3], não existia nada, e tremíamos porque não sabíamos nem o que falar na Assembleia. Mas tínhamos mais ou menos preparado, a Aline, uma companheira que estudava comigo, a Sônia e eu. E éramos nós três, a Célia, éramos três ou quatro. A gente tinha conversado para tirar esse professor, a proposta era fazer um abaixo-assinado, todo mundo assinava, para tirar esse professor de matemática. A Assembleia evoluiu, porque apareceu muita gente, começou a fazer discurso, chegou um policial e acusou nós de subversivas, de tudo que você possa imaginar. E a gente não sabia nada. Sabe o que é nada? Nada! Porque nós assim não tínhamos grandes conhecimentos, eu vinha lá do interior, todo mundo vinha do interior, o que a gente não tinha era muito medo. (…) E falamos que não queríamos o professor, que queríamos uma associação de estudantes e tudo… um monte de gente foi falando e foi muito interessante, porque não tínhamos uma prática de Assembleia, não tínhamos prática de controlar estudantes, de ordem, de fazer isso, como a gente aprendeu depois. Mas deu tão certo, que se tivéssemos preparado bem, não teria dado tão certo. Saímos dali com um grupo que ia pedir uma reunião do diretor, saímos dali com o abaixo- assinado, saímos dali com uma proposta de fazer um diretório acadêmico.”

Interessante perceber que não só Derlei, como as outras pessoas referidas no texto são também estudantes mulheres. Assim como demandas pontuais, como o afastamento de um professor, podem gerar demandas políticas amplas como a proposta de organizar o diretório acadêmico. Essa reorganização do movimento estudantil entre os anos de 1967 e 1968 segue o contexto nacional de mobilizações no país e também é pautada por eventos nacionais, como a morte de Edson Luiz e o Congresso de Ibiúna.

O movimento estudantil da UFSC se articulou para ir ao Congresso da UNE em Ibiúna. Foram para lá os delegados estudantis de Santa Catarina, no total de 15 estudantes, entre os quais estavam as jovens Derlei Catarina de Luca, Gilda Laus e Rosemery Cardoso. Derlei e Rosemery eram estudantes da UFSC e Gilda era estudante da Sociedade Itajaiense de Ensino Superior (SIES)[4]. Apesar do número pequeno de mulheres em relação aos homens, é notável a sua presença na comitiva, pois foram à Ibiúna as principais lideranças do movimento estudantil.

Após as prisões em Ibiúna e a promulgação do AI-5 em 13 de dezembro de 1968 o movimento estudantil da UFSC entrou em certo refluxo durante alguns anos devido a repressão. Na noite em que o AI-5 foi decretado Derlei Catarina de Luca entrou para clandestinidade e saiu da cidade. No entanto, isso não significou que, da maneira que era possível, estudantes continuaram se mobilizando, principalmente sobre questões internas do meio universitário.

Em meados da década de 1970 o movimento estudantil se rearticulava novamente, e novamente as mulheres estavam presentes. Na Universidade Federal de Santa Catarina a rearticulação do movimento estudantil se deu principalmente em torno da reconstrução de seus espaços institucionais, como Centros Acadêmicos e Diretório Central dos Estudantes e a questões relativas à Reforma Universitária.

A década de 1970 foi de muito crescimento para a Universidade Federal de Santa Catarina, com a criação de diversos cursos e um grande aumento de estudantes[5]. Esse crescimento da Universidade fez com que cada vez um número maior de estudantes convivesse na rotina acadêmica, entre eles diversas mulheres. Muitas dessas estudantes narram a entrada à Universidade como um momento de iniciação política. Rosângela Koerich Souza entrou na UFSC em 1975, primeiro cursando Letras e no ano seguinte mudando para o Direito. Ela rememora essa entrada para a Universidade como um período de descoberta do mundo em que vivia: “tinha preocupação em saber a origem da miséria. Porque tinha tanta gente pobre, porque tinha gente rica. Mas eu não tinha compreensão que vivíamos numa ditadura militar, nem que havia tortura nesse país, que havia prisioneiros.”[6]

Em pé, a estudante de Direito Rosângela Koerich de Souza/Foto: Acervo Agecom

O ano de 1975 foi especialmente marcante para a Universidade e para Santa Catarina. Neste ano foi deflagrada a Operação Barriga Verde, encabeçada pelo DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) do Exército. A execução desta operação contou com o apoio da Polícia Federal, Marinha, Aeronáutica e órgãos de segurança estaduais. O objetivo era, principalmente, a cassação, apreensão e extração de informações – mediante tortura se fosse preciso, como já era de costume – dos articuladores do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que atuavam em Santa Catarina[7].

O historiador Mateus Torres, em sua dissertação defendida em 2008 intitulada A Justiça nem ao Diabo se há de negar: a repressão aos membros do Partido Comunista Brasileiro na Operação Barriga Verde (1975), aponta que o processo de investigação durou cinco meses e tratou de fotografar, seguir e perseguir os supostos articuladores do Partido Comunista em Santa Catarina. Em um sentido mais amplo os DOI-CODI’s espionavam, também, a vida dos familiares dos suspeitos de serem ligados ao PCB, buscando intimidar e demonstrar força.

Como resultante dessa operação, foram presas no período 41 pessoas, em várias cidades catarinenses, principalmente, em Florianópolis, Criciúma, Itajaí e Joinville. Entre os 41 presos, encontravam-se personalidades como Teodoro Ghercov e Newton Cândido (o primeiro romeno e o segundo paulista, eram representantes do Comitê Central do PCB no estado), Roberto Motta (ex-deputado estadual pelo PMDB), Marcos Cardoso Filho (Engenheiro Eletricista, professor da Universidade Federal de Santa Catarina), Cirineu Martins Cardoso e Alécio Verzola, em Florianópolis, Júlio Serpa, Roberto Cologni e Edgard Schatzmann (Joinville) e Amadeu Hercílio da Luz (Criciúma)[8].

Ao analisar os aspectos políticos da Operação Barriga Verde e pensá-los de forma mais ampla, é perceptível essa construção no imaginário político brasileiro de que o anticomunismo salvaria os valores tradicionais das famílias. O objetivo era destruir esse inimigo comum – pois ele passara a ser mal visto e temido pela população, no sentido geral, também. Para legitimar a cassação e a prisão dos considerados subversivos, por colocarem em risco a segurança nacional e os valores morais tradicionais, “[…] deveriam ser detidos, e impedidos de estabelecer seus tentáculos de polvo sobre o povo de Santa Catarina”[9].

Após as prisões resultante da Operação Barriga Verde, diferentes movimentos se articularam para buscar notícias e pela soltura dos presos políticos do Estado. Entre eles, o Movimento Estudantil da UFSC conjuntamente à mobilização de familiares de presas/os políticos que se articulara em 1977, o Movimento Feminino Pela Anistia seção Santa Catarina[10].

Comunicação da Estudante de Farmácia, Margaret Grando, no 1º ECE, 1979/Foto: Acervo Agecom.

Essa articulação fica evidenciada na entrevista de Margaret Grando em que rememora o seu primeiro ano na UFSC, como estudante do curso de Farmácia e Bioquímica. Em seu relato, Margaret diz que o primeiro contato que teve sobre as prisões que estavam ocorrendo em decorrência da Operação Barriga Verde foi na fila do Restaurante Universitário, por meio de um folheto produzido pelo DCE (Diretório Central dos Estudantes). Naquele momento em diante, segundo ela, se deu conta de toda a efervescência política do campus, se envolveu com as questões políticas e iniciou a sua militância no Movimento Estudantil e, posteriormente, na Juventude do MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Com esse primeiro contato, entre os anos de 1976 e 1977 passou a realizar visitas regulares aos presos políticos que estavam na Cadeia Agrícola de Canasvieiras, local onde fez amizade com o professor Marcos Cardoso Filho[11].

Durante uma dessas visitas, foi o próprio Marcos Cardoso que a orientou sobre a existência de um movimento de mulheres que lutavam pela Anistia aos presos e exilados políticos e por melhores condições para os encarcerados. Na entrevista ao rememorar este pedido, Margaret se emocionou ao falar das dificuldades enfrentadas pelas/os presas/os e seus familiares. Esse pedido de Marcos Cardoso também evidencia a importância de trazer esse movimento para Florianópolis, pois seria incorporada à pauta do movimento nacional a denúncia das arbitrariedades cometidas na deflagração da Operação Barriga Verde, bem como as péssimas condições das pessoas presas em Santa Catarina e de seus familiares. A prisão do professor Marcos Cardoso Filho propiciou o envolvimento dos familiares de presos políticos às diversas mobilizações e ações que estavam ocorrendo na UFSC, como fica evidenciado na rememoração da professora do Colégio e Aplicação da UFSC, Marise Maravalhas, que na época era esposa do professor Marcos Cardoso.

Ao ser questionada acerca da articulação do Movimento Feminino Pela Anistia em Santa Catarina, a professora Marise, apesar da distância temporal, aponta que:

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“Já faz tantos anos. Foi em 1975. Na época em que a anistia estava em voga, os comunistas sendo pegos em todo o país. São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis, em vários pontos do país ocorriam as prisões por ideais. E nessa época eu fazia Ciências Sociais na Universidade e eu tinha meu ex-marido que foi um dos que foram presos também, se chamava Marcos Cardoso Filho. Então todo o pessoal que foi preso em 75 era conhecido. Daí a gente foi a São Paulo, quem era presidente geral do Movimento Feminino pela Anistia era a Theresinha Zerbine. A gente começou a receber material. E como aqui se não me engano foram 35 prisões, 35 presos, quase todos professores da Universidade, estudantes, trabalhadores. Em Criciúma tinha um pessoal que trabalhava no carvão. Era uma coisa tudo muito escondida, camuflada. Nós criamos aqui em Santa Catarina o núcleo do Movimento Feminino pela Anistia, mas vinculado a São Paulo. Nós éramos mais ou menos 10 mulheres. Mas quase todas tinham um vínculo, ou tinham um parente preso, ou o marido, ou algum conhecido. E o pessoal batalhava bastante naquela época. Tinha até uma sede do movimento. Íamos pra São Paulo, nas reuniões e conseguimos uma porção de coisas na época. Depois eu saí. E acabou acho em 76 ou 77. Depois foram soltos. A anistia foi dada e o grupo se extinguiu.”[12]

Com a distância dos acontecimentos ao momento da rememoração, pode-se perceber algumas inconsistências em datas e números, porém, não anula a riqueza dos elementos presentes em sua narrativa. Toda a articulação para formalizar um núcleo catarinense dessa mobilização foi realizada por mulheres, estudantes e esposas de presos políticos. A rede que se forma entre trabalhadores e trabalhadoras, estudantes era de responsabilidade estratégica e políticas dessas mulheres. O vínculo estabelecido com o núcleo de São Paulo, em certa medida, proporcionava o respaldo enquanto mobilização nacional para legitimar, e assegurar, a luta empreendida.

A organização do MFPA em Santa Catarina representava também uma esperança na projeção das denúncias acerca das ilegalidades cometidas pelo regime ditatorial em todo o Brasil para, assim, angariar apoio da sociedade e de outras entidades civis. O alcance da luta pela Anistia empreendida por estes movimentos pode ser percebido no crescente apoio de outras entidades, conforme as assinaturas em diversos folhetos de eventos, mesas de discussão, teatros, saraus promovidos pelo Diretório Acadêmico da UFSC conjuntamente ao Comitê Brasileiro de Anistia (CBA-SC), Comissão de Justiça e Paz e os próprios Movimento Estudantil e MFPA-SC[13].

Com relação ao Movimento Estudantil e suas lideranças femininas, cabe destacar, também, a estudante Marize Lippel que foi presidente da chapa Unidade para o CABM em 1978. O CABM representava todos os cursos do Centro Bio-Médico, Farmácia, Odontologia, Medicina e Enfermagem; e como Marize comenta em entrevista, havia categorias bastante machistas, como a Medicina e a Odontologia. Para ela, sua vitória foi resultado de um trabalho que já vinha sendo realizado pela Unidade na gestão anterior. No entanto, é importante ressaltar que as eleições para os Centros Acadêmicos já eram diretas, sendo que apenas o DCE possuía eleições indiretas nesse momento, o que demonstra a força de sua chapa e de sua imagem para conseguir conquistar a vitória nas eleições diretas[14].

Para essas mulheres que vivenciaram o movimento estudantil desse período a presença de mulheres era muito grande, assim como o respeito e aceitação de seus companheiros de militância. Com certeza o número de mulheres era maior do que em 1968 em Florianópolis. Entre as memórias de 1968 e do fim da década de 1970 é possível perceber muitas mudanças. Valmir Martins, militante no movimento estudantil e na AP em 1967 e 1968 ao comentar sobre as reuniões clandestinas que faziam na Barra da Lagoa dizia que: “As pessoas nos viam como estranhos, quando viam aquele ajuntamento lá era uma coisa estranha, mulheres… uma mulher, geralmente era a Derlei sozinha no meio de quatro, cinco homens. Era uma coisa chocante para as mulheres, e até para os homens da Barra da Lagoa.”[15]

Na fala das entrevistadas desse período a percepção é de que as mulheres são tantas, ou mais que os homens. A naturalidade da participação das mulheres está posta nas entrevistas, assim como a segmentação dos cursos por gênero. Para Thais Lippel, na época estudante de Medicina e irmã de Marize, também militante da Unidade, também era perceptível a participação das mulheres no movimento estudantil.

“Aliás, acho que a gente era maioria! Tinha bastante e em cargos importantes, a gente tinha uma discussão muito de igual mesmo para com os homens. Mas eu vou te dizer, eu tenho certeza que isso também era pela propriedade dos argumentos, sem dúvida. Porque eu acho que aí é que se igualam os gêneros. E como a gente tinha isso muito claro, os homens tinham que ter bons argumentos pra contrapor!”[16]

Thais traz uma questão importante para se pensar a participação no movimento estudantil, a “propriedade dos argumentos” nas discussões. Para ela não havia diferença porque as mulheres se igualavam na defesa de suas convicções, um ponto que aparece como importante para a não invisibilização das mulheres em vários espaços tidos como masculinos. A política é vista como um assunto masculino, e muitas mulheres, por não se sentirem seguras nessa discussão, não a fazem.

Como a maioria delas inicia sua trajetória política ao entrar na Universidade, esse acúmulo de conhecimento político é recente, e para conseguirem se impor ou mesmo se sentir seguras para contribuírem nas discussões a principal questão apontada por elas é o estudo. Ter suas convicções baseadas em estudo e leitura permitia se empoderarem e discutirem igualmente com os homens, que então “tinham que ter bons argumentos pra contrapor!”. A questão sobre a necessidade de ter bons argumentos deixa entrever a necessidade de se esforçar muito mais que os estudantes homens para  serem ouvidas nas discussões. Isso perpassa tanto por questões intelectuais – ter uma base sólida e sentir-se segura para discussões políticas – como por questões mais corporais ou materiais – a postura e o tom de voz em uma assembleia, as roupas usadas, etc.[17]

Essas mulheres, apesar dessas barreiras, foram uma grande força no movimento estudantil da UFSC, sendo que em 1979, na primeira eleição direta para o Diretório Central dos Estudantes desde o golpe militar, a chapa vencedora, Unidade, era composta por Adolfo Dias como presidente e Ligia Giovanella como vice-presidente. Marize Lippel ao comentar a respeito da chapa de Adolfo Dias ter sido eleita, aponta que: “Ele tinha uma base muito grande de apoio, apoio que eu digo uma equipe de trabalho. A equipe de trabalho dele, quem segurava a estrutura, eram as mulheres.”[18] Foi essa base de mulheres que possibilitou a reorganização do movimento estudantil na UFSC. Movimento que em 1979 organiza uma das principais mobilizações contra a ditadura de Santa Catarina, a Novembrada.

A estudante de Medicina, Lígia Giovanella/Foto:Acervo Agecom

A Novembrada é um exemplo de uma mobilização que foi organizada pelo DCE da UFSC em novembro de 1979 e contou com o apoio de diversas entidades civis e da classe trabalhadora catarinense e até a atualidade é evocada como símbolo de resistência catarinense à ditadura militar. Esse protesto foi organizado pelos Diretórios Acadêmicos da Universidade Federal de Santa Catarina, em 30 de novembro de 1979, em frente ao Palácio Cruz e Sousa, que na época era a sede do governo do Estado e onde seria recebido o então presidente da República, General João Baptista Figueiredo[19].Segundo a historiadora Paola Silveira, as reivindicações do protesto giravam em torno da situação de pobreza da população até os gastos exorbitantes para a recepção do presidente; além da contestação ao regime autoritário que se mantinha[20]. Essa manifestação mobilizou milhares de pessoas incluindo trabalhadoras/es, donas de casa e até crianças[21].

A memória construída a posteriori da Novembrada – baseada tanto na repercussão nacional quanto internacional desse protesto – tende a resumir o cenário de resistência catarinense à ditadura civil-militar. Acreditamos que isso esteja relacionado ao fato de que a Novembrada, após ter sido gestada pelo Movimento Estudantil da UFSC, contou com o apoio popular e, este se tornou decisivo para o caráter de sucesso da manifestação[22]. Na ocasião foram presos sete estudantes, entre as/os quais Lígia Giovanella, Marize Lippel e Rosângela Koerich de Souza.

 

1 BARROSO, Carmen Lúcia de Melo; MELLO, Guiomar Namo. O acesso da mulher ao ensino superior brasileiro. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 15, dez. 1975, p. 52. Disponível aqui. Acesso em: 16 mar. 2014.

2 Derlei Catarina de Luca. Entrevista concedida a Sérgio Luis Schlatter Junior. Criciúma, 22 abr. 2008. Acervo LEGH.

3 Ibdem.

4 Após várias mudanças de nome a SIES se tornou a Universidade do Vale do Itajaí (Univali) em fevereiro de 1989.

5 Ao longo da década de 1970 foram criados mais de 15 cursos de graduação na UFSC, entre eles Arquitetura, Jornalismo, Ciências Sociais e Agronomia. NECKEL, Roselane; KÜCHLER, Alita Diana (orgs.). UFSC 50 anos: trajetórias e desafios. Florianópolis: UFSC, 2010.

6 SOUZA, Rosângela Koerich. Entrevista concedida a Mírian Elisa da S. A. Wagner. Florianópolis, jan. 2003. Acervo da Autora.

7 TORRES, Mateus. TORRES, Mateus Gamba. A Justiça nem ao Diabo se há de negar: a repressão aos membros do Partido Comunista Brasileiro na Operação Barriga Verde (1975). 2009. 188 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de História, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2009, p. 28.

8 MARTINS, Celso. Os quatro cantos do sol: Operação Barriga Verde. Florianópolis: EDUFSC e Fundação Boiteux, 2006, p.108.

9 TORRES, op. cit., p.30.

10 O MFPA foi iniciado em 1975 por Therezinha Godoy Zerbine na cidade de São Paulo e o núcleo catarinense teve sua oficialização em 27 de novembro de 1977, em Florianópolis. A principal bandeira desse movimento era a luta por uma Anistia Ampla, Geral e Irrestrita a todas/os as/os presas/os e exiladas/os políticas/os pelo o regime civil-militar, instaurado no Brasil entre os anos de 1964 e 1985. SILVA, Mariane da. O Movimento Feminino Pela Anistia: a participação e o engajamento de mulheres catarinenses entre 1975 e 1979. 2015. 95 f. TCC (Graduação) – Curso de História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.

11 GRANDO, Margaret. Movimento Feminino Pela Anistia: participação e engajamento de mulheres catarinenses entre 1975 e 1979. [Depoimento: 20 de abril de 2015]. Entrevista concedida à Mariane da Silva, na residência da entrevistada, p. 1-3. Acervo da Autora. Margaret narra e demonstra em diferentes momentos da entrevista a sua preocupação e proximidade aos presos políticos e seus familiares, principalmente, acerca do professor Marcos Cardoso Filho que era engenheiro eletricista e professor do
Departamento de Engenharia Elétrica da UFSC em 1975. Era também membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e participava da Juventude do MDB e em função disso, foi um dos 42 presos e torturados da Operação Barriga Verde sob acusações de integrar e articular o PCB no Estado.

12 MARAVALHAS, Marise. Formação de grupos feministas em Santa Catarina: década de 1980. [Depoimento: 08 de agosto de 2003]. Entrevista concedida à Janine Petersen. Acervo do LEGH, p. 1-2.

13 Dentre estes documentos, destacamos: “Por Liberdades” – Informativo do DCE – UFSC de 1977; “Todos ao Ato Público pela Anistia” – Informativo do DCE – UFSC de 1977; “Constituindo” – Boletim da Juventude do MDB de 1977; “Por uma Anistia Ampla, Geral e Irrestrita” – MFPA/SC de 1977; “Manifesto por uma Anistia Ampla, Geral e Irrestrita” – MFPA/SC de 1978; “Anistia Para os Brasileiros” de 1979

14 LIPPEL, Marize. Entrevista concedida a Lidia Schneider Bristot. Florianópolis, 11 ago. 2012. Acervo da Autora.

15 MARTINS, Valmir. Entrevista concedida a Joana Maria Pedro e Cristina Scheibe Wolff. Florianópolis, s/data. Acervo LEGH.

16 LIPPEL, Thais Helena. Entrevista concedida a Lidia Schneider Bristot. Florianópolis, 10 out. 2012. Acervo da autora.

17 BRISTOT, Lidia Schneider. Mulheres no movimento estudantil de Florianópolis (1975-1979). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, 2014.

18 LIPPEL, Marize. Entrevista concedida a Lidia Schneider Bristot. Florianópolis, 11 ago. 2012.

19 O general João Baptista Figueiredo esteve na presidência da República no período de 1979 a 1985, o último presidente do regime militar.

20 SILVEIRA, Paola Vieira da. Novembrada, revolta catarinense contra ditadura: das impressões do momento às interpretações posteriores. 2013. 48 f. TCC (Graduação) – Curso de História, Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2013, p. 11.

21 SARMENTO, Anaíra Sousa de Moraes; GREVE, Vitória Gonçalves Pereira. A cobertura jornalística da Novembrada em Florianópolis. Revista Santa Catarina em História, Florianópolis, v. 8, n. 1, p.137-149, 2014.

22 BRISTOT, op. cit., 2014, p. 64-67.

 

 

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