A obra reúne poemas que falam sobre amor, lesbianidade e da relação com a cidade

Ativista, militante. Mulher de Axé, negra, lésbica, mãe. E apaixonada por palavras. Mariana Queiroz, 35 anos, é uma figura conhecida em Florianópolis. Natural de Cuiabá, Mato Grosso, vive em Florianópolis há 16 anos. Em sua bagagem, carrega atuações na luta antimaniconial, nos movimentos feministas, na luta antirracista e na luta por moradia.

Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, atua como psicóloga no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), e como psicanalista em seu consultório particular. A jornada de trabalho também é uma luta constante por uma política de assistência e a garantia de direitos mínimos.

No início de agosto, publicou seu primeiro livro: AVOA. Dividido em três eixos (A palavra, O corpo e Os sete corações), o livro reúne poemas produzidos entre 2013 e 2019. São poemas que falam de amor, de lesbianidade, da relação com a cidade, como comenta o escritor Wuldson Marcelo, na orelha da obra:

“Em um cenário perverso, assumir-se, gritar a própria identidade é o auge das estratégias de resistência. A poesia de Mariana Queiroz diz com todas as letras o que é o amor, o que é uma mulher amar outra mulher: os afetos, o corpo e a natureza, todos os elementos que nos aquecem, protegem-nos e nos fazem sentir vivos”

A escrita e a militância estão presentes na vida de Mariana desde sua infância. Seus pais se conheceram em um contexto político de luta, pelo Movimento Ecológico no Mato Grosso. Para Mariana, crescer nesta cena de política e arte, impactou sua formação enquanto pessoa. “Eu acho que meu grande privilégio é essa matriz política, intelectual, artística. Isso me dá outra relação com o mundo. De me ver como parte viva da construção histórica. De acreditar e apostar nos processos coletivos, comunitários e sociais” 

Já na vida adulta, a relação com a escrita e com a política se manteve. Além de ter três livros ainda não publicados, Mariana sempre esteve presente em diversos saraus – tanto na ilha quanto na capital paulista.

Esse movimento começou em 2013, em São Paulo. No Sarau Casa Amarela, Mariana se emocionou. “Eu vejo materializado uma coisa que eu não conseguia dar forma, mas que eu tinha um sentimento. Essa coisa das pessoas, de todos os lugares, com histórias muito diferentes. Que desmonta esse lugar elitista da literatura e da poesia”.

A experiência a motivou a criar o Sarau Mulheragens de Desterro, em 2015. A proposta busca ocupar o espaço público, produzindo espaços de fala e escuta na cidade, a partir da poesia. Para Mariana, a função do Sarau vai além de ser um evento. É disputar o uso da cidade, democratizando o espaço público.

Das experiências com a escrita e da troca com outras/os autoras/es e produtoras/es, veio a inspiração para o nome do livro.

“Avoa é menos sobre o conteúdo e mais do livro como um ato. Tem um ato de lançar voo. Isso articula ele e o movimento que foi construir e conseguir publicar.”

Um processo coletivo

Publicado pela editora URUTAU, o livro foi produzido através de uma campanha de financiamento coletivo, que conseguiu arrecadar R$ 5.800. Das cinco metas, a primeira (R$ 1.800) foi atingida em apenas um dia – dos quarenta da campanha. O apoio recebido emocionou a autora, que considera o livro uma construção coletiva. 

“O livro aparece com a minha cara de escritora. Mas ele é um processo que envolve muitas outras pessoas. Essa experiência do carinho, de muitas pessoas juntas nesse processo, foi lindo. Eu sinto que não consigo agradecer à altura do quanto foi bonito o apoio da minha rede. Das pessoas daqui, e de fora de Floripa também. Obrigada, todo mundo.”

Apesar de grata pelas doações, Mariana chama atenção para a falta de financiamento público para escritoras/es, o que leva muitas/os delas/es a terem o financiamento coletivo como única opção. Para ela, ao naturalizamos a falta de espaços comuns para a produção de literatura, se reforça uma construção que busca transformar a literatura em um produto elitista.

“Cria-se a ideia de que só tem três escritoras/es na cidade. Que tem pouca gente que faz trabalho massa. Ou de que isso é um talento, um dom cósmico. E isso não é verdade. Tem muita gente boa fazendo coisas incríveis. E pouquíssimos espaços para as pessoas investirem no seu trabalho, se aprofundarem, se dedicarem, e existirem a partir disso.”

A autora reforça sua crítica, ao refletir sobre como esta visão da literatura como ‘coisa de burguês’ não condiz com a construção histórica de nosso país. “As culturas de escrita permeiam toda a nossa sociedade. É uma cultura afro-brasileira, negra, indígena. Dos cordéis, dos cantos, das festas de cultura comunitária, que se dialogam com a experiência do Sarau. Mas em uma sociedade segregada, a literatura fica parecendo como coisa de burguês. E não é verdade. Então, tem gente que faz, e consome, usufrui da literatura. É só criar espaços de acesso.”

Foto: Acervo Pessoal

Lésbica Sapatão

“A minha escrita tem a marca de eu ser uma mulher sapatão. Eu escrevo sobre amor, sobre como é amar uma mulher, pra mim. Dos efeitos dos encontros amorosos. Dos efeitos no corpo e na relação com a cidade.”

Mariana ressalta a importância de mulheres lésbicas contarem suas próprias experiências, combatendo estereótipos machistas e fetichizados. “A gente tem produzido coisas lindíssimas sobre esta experiência. Que no imaginário tende a ser tão estereotipada, e pobre, tosco. Desse lugar do estigma, da heternorma. E a gente vem produzido outros imaginários e simbólicos sobre as nossas vidas.” 

Quando questiono porque as pessoas deveriam ler seu livro, Mariana ri, tímida. “ A escrita que eu invisto é da ordem do encontro. E quando a gente lê, o que se constrói ali é uma coisa de cada pessoa. Então é isso, leiam poesia. A gente tem uma cena de mulheres maravilhosas, fazendo um trabalho muito lindo, produzindo memória. A gente existe há muito tempo, e produz há muito tempo. A gente só não era publicada. Mas isso está mudando”.

Arte: Gabriele Oliveira – Portal Catarinas

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  • Gabriele Oliveira

    Estudante de Jornalismo (UFSC) dedicada à escrita de reportagens, com foco na cobertura de direitos humanos. Estagiária...

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