Esta reportagem contou com a colaboração de Bruna Neto.

O caso das mães de Blumenau, onze mães que tiveram seus filhos encaminhados para adoção, foi debatido nesta terça-feira, 7 de fevereiro, em uma reunião com o ouvidor geral do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH), Bruno Renato Teixeira. No encontro, que contou com a presença de integrantes da Secretaria Nacional da Infância e Juventude e da Defensoria Pública de Santa Catarina, foram deliberadas algumas ações sobre os processos que envolvem a destituição familiar. 

De acordo com a advogada Rosane Magaly Martins, integrante da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que participou da reunião, ficou acordado que o MDH irá recomendar que seja realizada com urgência uma nova avaliação psicossocial das famílias com finalidade de retomada da guarda nos processos. O órgão também vai expedir um ofício ao município para inclusão imediata e prioritária das mães nos programas de proteção assistencial, criar um grupo de trabalho para formular medidas em relação ao caso e se reunir com as mães que ainda não tiveram seus casos solucionados.   

Este encontro aconteceu após a entrega de uma petição com detalhes dos processos nas mãos do novo ministro da pasta, Silvio Almeida, ainda em janeiro, por meio da ouvidora da Defensoria Pública de Santa Catarina, Maria Aparecida Caovilla. O documento, redigido por Martins, relatava algumas histórias que repercutiram amplamente na imprensa no ano passado, após as mães acamparem em frente ao Fórum de Blumenau (SC), em protesto contra a perda do poder familiar dos seus quinze filhos.

Além do histórico de destituição familiar, os processos têm em comum a vulnerabilidade social das mães, a idade das crianças –  que tinham menos de 9 anos quando foram afastadas do convívio familiar; e as decisões baseadas na justificativa de “negligência”. Segundo advogados e mães, os processos apresentam irregularidades e graves violações de direitos das mulheres/mães e das próprias crianças. “Eu entendo que isso é resultado de quatro anos de bolsonarismo, quatro anos de precarização, de violência contra as mulheres, de criminalização da pobreza”, afirma a advogada, que atua como articuladora das denúncias e ações em nome do grupo. 

“O que me chama a atenção em todas as reuniões que eu vou é a criminalização da pobreza. As mães têm vaga de meio período em creche pública, no outro meio período elas têm que pagar cuidadoras. Se uma mãe ganha mil reais, metade vai para essa cuidadora. Como sobra dinheiro para pagar aluguel e comida? Elas perdem o poder familiar por estarem nessa situação. É inadmissível. As mães estão sendo violadas pelo Estado todos os dias”, complementa. 

Na reunião com a ouvidoria geral, também ficou acordado que será pautada uma resolução para barrar “negligência” e outros conceitos generalistas como fundamentos para destituição familiar no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA). A ouvidoria também pretende realizar reuniões com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para discutir suas atuações e rever questões de perda do poder familiar. Está prevista uma audiência pública no Congresso Nacional para discutir esse e outros casos de mães que tiveram direitos violados.

Martins, autora da petição entregue ao MDH, também fez uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em janeiro. “Das instâncias internacionais, queremos a intervenção no estado brasileiro e o direito dessas mães de produzirem provas, mostrar que amam os filhos e que elas possuem condições de criá-los. E, se não tiverem, o Estado deveria dar condições para elas manterem alguma atividade. Na hora de proteger uma família, uma mãe solo, uma mãe pobre, eles preferem levar para adoção”. 

Em dezembro, a advogada acionou o Conselho Estadual da Criança e Adolescente de Santa Catarina, que se comprometeu a constituir um grupo de trabalho para analisar e aprofundar a apuração administrativa sobre o caso. Em novembro, ela já havia feito um pedido de providência ao CNJ.

Entenda o caso das mães de Blumenau 

Desde junho de 2022, onze mães se reúnem em protestos em frente ao Fórum da Comarca de Blumenau, em Santa Catarina, reivindicando a guarda dos seus quinze filhos, afastados sob a justificativa de “negligência”. As mães se conheceram no local, em um dia de audiências, e perceberam semelhanças nos processos judiciais de retirada do poder familiar das crianças. “Estamos pedindo para que nossos casos sejam revistos, queremos ser ouvidas”, explicou ao Catarinas, na época, uma das mães envolvidas. Meses depois, essa segue sendo a principal reivindicação do grupo. 

Além da alegação de negligência, justificada a partir de diferentes motivos nos processos, como conflitos familiares, instabilidade de emprego e moradia, dependência química etc., os casos têm em comum as/os profissionais envolvidas/os: juíza, promotoria responsável, equipe de assistência social do município e o Ministério Público. Mães e advogados questionam a forma como as ações foram conduzidas. “Se existem provas de que as famílias de origem têm vontade, se organizaram para encontrar redes de apoio extensas para as crianças, quais razões para não respeitar o processo indicado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente?”, pergunta Rosane Martins. 

Rosane Magaly Martins e algumas mães conversam durante protesto. Imagem: Bruna Neto

Adoção ultrapassa reintegração familiar em programa Família Acolhedora em Blumenau  

No ECA, está previsto que, no caso das mães perderem a guarda, o processo correto seria o de encaminhar a criança para a família extensa; caso não se consiga encontrar a família, encaminha-se para a Família Acolhedora – um programa que tem o objetivo primário de apoiar a família de origem da criança, para que ela possa ser reinserida no contexto familiar. As pessoas cadastradas no programa não podem estar na fila da adoção. Por último, caso não se encontre  outras formas de reinserir a criança, a adoção é o último recurso. “Em respeito ao que diz o ECA, a criança/adolescente só poderia ser retirada da família no caso de negligências intencionais, reiteradas, violações graves de direitos, por exemplo, sustento, guarda e educação”, explica o defensor público titular da Infância e Juventude, Albert Silva Lima. 

Uma das críticas dele é de que o programa Família Acolhedora não estava cumprindo o seu papel de reinserir crianças ao seio familiar de origem, em Blumenau. Os números do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento apontam uma alta vertiginosa de casos de crianças retiradas da família a partir do início da pandemia: de 13 crianças ou adolescentes em 2019, para quase quatro vezes mais em 2020. Ainda em 2019, mais da metade foram reintegrados para as famílias de origem, enquanto em 2020, apenas 15 dos 45 retirados das famílias foram reintegrados. Em 2021, um novo recorde: dos 71 retirados da família, apenas 23 foram reintegrados, enquanto 46 crianças ou adolescentes foram para a adoção.

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Comparando com os números de outras cidades de Santa Catarina, como Joinville, considerada uma das mais populosas do estado, com média de 604 mil pessoas, de acordo com o observatório da Fiesc, a disparidade fica evidente. Joinville retirou 29 crianças das famílias em 2020 e reintegrou mais da metade delas: 15. Em Florianópolis, com cerca de 516 mil habitantes, foram 68 crianças ou adolescentes retirados da família em 2020, com 45 reintegrações familiares. “Em tese, depois da implantação do Família Acolhedora (desde a lei 12010/2009), o número de casos de integração familiar teria que aumentar e não diminuir, como é o que está sendo observado”, explica o defensor. 

Tivemos acesso a um documento da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (Semudes) de Blumenau com dados do serviço do programa Família Acolhedora do segundo semestre de 2020 até o primeiro semestre de 2022. Eles revelam que a integração familiar era a exceção, quando deveria ser a regra. No segundo semestre de 2020, dez crianças foram adotadas, enquanto uma foi reintegrada com a família extensa e outra com a família natural. Já em 2021, foram oito adoções e três reintegrações com a família extensa. Enquanto no primeiro semestre de 2022, oito crianças foram encaminhadas para adoção e apenas uma voltou a ser inserida no convívio com a família natural.     

Além do cenário ir contra as orientações do ECA, o defensor também aponta três questões que acredita estarem sendo desrespeitadas, quanto ao que orienta o programa Família Acolhedora. “O primeiro é a busca e apreensão de recém-nascido, ainda no hospital, logo após o parto, com ordem de acolhimento institucional, que configura violência obstétrica. Outro ponto seria o uso, contra a mãe, de um exercício regular de um direito que ela tem de manifestar o desejo de entregar o filho para adoção, e de se arrepender em até dez dias. Por último, a interpretação equivocada do art. 25, parágrafo único do ECA, que consiste em desprezar a família extensa quando se trata de recém-nascido, ao argumento (óbvio) de que a criança não tem vínculos com os familiares”, afirma. 

Casos com decisões favoráveis às mães 

Desde que começaram a mobilização e as histórias ganharam repercussão, as mães conseguiram três vitórias. “Agora estamos com quatro crianças que voltaram e duas mães que estão com a situação parcialmente resolvida. Uma não diretamente, porque conseguimos a guarda dos filhos para a bisavó, mas a mãe tem livre acesso às crianças”, explica a advogada Rosane Martins. 

Em novembro, um casal de venezuelanos conseguiu recuperar a guarda de dois filhos, depois de quase um ano afastados, após decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC). Na decisão, o desembargador Flávio André Paz de Brum destacou que “a adoção de medidas mais protetivas à própria família, com orientações profissionais, inclusão em programas sociais e instrução efetiva da melhor maneira como deveria proceder, poderia ter poupado não só o afastamento do seio familiar mas os traumas envolvidos”. O afastamento dos filhos da mãe Yurelys Karina Sam Marquez começou após ela ter sido denunciada por dar banho no seu bebê em um tanque com água em temperatura ambiente.  

Em dezembro, foi a vez dos filhos de Carla Cristina de Melo voltarem para o convívio familiar, após uma decisão que cedeu a guarda para a bisavó das crianças, permitindo que a mãe conviva com os filhos. O processo que culminou na perda da tutela das crianças teve como justificativas as violências domésticas das quais Carla foi vítima, a falta de estabilidade financeira, as mudanças constantes de moradia e o suposto consumo de drogas ilícitas. Na segunda instância, o procurador identificou falhas no processo dela, por meio de um novo parecer da Procuradoria da Justiça. Enquanto a decisão da Vara da Infância de Blumenau ainda estava em fase recurso, a avó de Carla entrou com pedido de guarda dos bisnetos, que foi analisado pelo TJSC.

Uma terceira mãe conseguiu retomar as visitas, mas os filhos permanecem acolhidos. O TJSC determinou uma nova avaliação social, psicológica e psiquiátrica da mãe. 

Os representantes da lei e do poder público 

O Catarinas pediu um posicionamento sobre o caso para o TJSC que, em nota, alegou não poder se manifestar sobre recursos judiciais que venham a aportar na segunda instância da Justiça catarinense. Além disso, também lembrou que os recursos estão relacionados a casos que tramitam em segredo de justiça, o que também impediria qualquer tipo de manifestação do órgão. 

Ao Ministério Público de Santa Catarina perguntamos o que a Instituição fez a partir das denúncias, se identificaram alguma irregularidade nos processos ou alteraram algum procedimento para priorizar o reingresso das crianças às famílias. Em nota, o MPSC afirmou não ter recebido, via Corregedoria, nenhuma denúncia das mães. Também afirmou que não há irregularidades nos processos.

“Nunca houve qualquer orientação no sentido de não priorizar o retorno da criança à família natural ou extensa, até porque priorizar a família natural ou extensa é o que diz o ECA, então, a orientação e a prática do MPSC sempre foi cumprir o que diz o ECA e priorizar esse retorno. Naqueles casos concretos a Promotoria de Justiça, dentro da sua independência funcional, analisando as provas do processo, entendeu que não caberia esse retorno”, consta em outro trecho da nota. 

Em complemento, a Instituição acrescentou que o seu posicionamento “é pela garantia de que a adoção seja realizada da forma legal, observando o cadastro único de adoções, gerido pelo CNJ, no qual inúmeras famílias aguardam por um filho e passam pelos procedimentos legais que asseguram o direito e a integridade da criança”. 

Até o fechamento desta reportagem, o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente e o MDH não haviam respondido ao pedido de manifestação encaminhado via e-mail.

Após o fechamento, a Semudes respondeu ao nosso pedido de posicionamento, compartilhamos a seguir as respostas na íntegra.

Catarinas – Quais medidas tomaram a partir das denúncias que vieram à tona?
Semudes – Os procedimentos a serem realizados estão preconizados nas Orientações Técnicas do Serviço de Acolhimento Institucional e ou Familiar do Ministério do Direitos Humanos e da Cidadania (MDH), que são seguidos pela equipe técnica do município de Blumenau. A maioria das situações citadas acima tiveram anos de acompanhamento pela Política de Assistência Social e demais serviços públicos com exceções de famílias que já tiveram a medida de proteção determinada em outro município. Importante frisar que todas as situações de acolhimento são determinadas judicialmente ou excepcionalmente são realizadas pelo Conselho Tutelar.

Catarinas – Mudaram algum procedimento interno a partir das denúncias que foram feitas? Se sim, quais?
Semudes – Conforme citado acima todos os procedimentos adotados pelas equipes técnicas que atuam nas demandas de alta complexidade são baseadas nas Orientações Técnicas do Serviço definida pelo Ministério. O trabalho ocorre de forma articulada com outros atores da rede de serviços para buscar superar as situações enfrentadas pela famílias.

Catarinas – Identificaram alguma irregularidade nos casos denunciados? E em outros?
Semudes – A equipe do serviço trabalha na busca da superação das vulnerabilidades e riscos apresentados pelas famílias visando sempre a permanência da criança no âmbito familiar. E somente nas situações em que não é identificado familiar extenso é que se avalia pelo acolhimento como melhor forma de proteção.

Catarinas – Gostariam de se manifestar sobre mais algum ponto que não tenha sido questionado?
Semudes – Outro ponto que merece ser esclarecido é o papel do Serviço de Acolhimento Familiar. O município de Blumenau implantou o Serviço de Acolhimento Familiar por um pedido da Defensoria Pública, quando ingressou com uma Ação Civil Pública indicando a necessidade de implantação desse serviço.
A inserção da criança e do adolescente nos serviços de acolhimento institucional e/ou familiar ocorre somente por decisão judicial ou excepcionalmente pelo Conselho Tutelar. São inseridos quando são submetidos a situações graves de abandono, vitimização, exploração sexual e outros tipos de violações que possam interromper a sua permanência no ambiente familiar.
O acolhimento familiar é apenas uma modalidade de acolhimento não interferindo na atuação da equipe que acompanha as crianças e adolescentes e as famílias acolhedores inscritas e capacitadas como pré-requisito não podem estar na fila de adoção.

A reportagem foi atualizada no dia 9 de fevereiro às 17h14.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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