“Jornalistas e feministas: a construção da perspectiva de gênero no jornalismo” é o título do livro que traz um estudo de caso sobre o Portal Catarinas. Resultado da dissertação de mestrado da estudante Jessica Gustafson no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC, a publicação será lançada nesta quinta-feira (14), às 19h, na Fundação Cultural Badesc, em Florianópolis. 

Em entrevista ao Catarinas, a doutoranda em jornalismo pela UFSC fala sobre as principais descobertas dessa pesquisa e das contribuições ao campo científico e profissional. Durante a investigação, Gustafson ouviu cinco jornalistas do Portal, buscando compreender suas rotinas de trabalho, visões de mundo e práticas jornalísticas.

A pesquisadora estudou particularmente o fundamento da objetividade jornalística que está ligado ao conceito de verdade, no sentido de ser um método para aproximar-se dela. Assim como na ciência, a objetividade jornalística pressupõe o distanciamento do sujeito que olha. “Acredito que o mais interessante seja pensar nas rupturas importantes que os feminismos podem trazer aos pressupostos do jornalismo”, explica a pesquisadora. 

Ela encontrou em Donna Haraway, bióloga e professora emérita estadunidense do Departamento de História da consciência, na Universidade da Califórnia em Santa Cruz, as bases teóricas para entender uma nova maneira de pensar a objetividade, a partir de uma visão crítica da ideia de verdade no jornalismo. 

Refletindo a partir do conceito de objetividade corporificada de Donna Haraway, pude perceber que o jornalismo feminista subverte esse distanciamento, se aproximando e dialogando mais abertamente com as pessoas envolvidas na construção das matérias jornalísticas e não se eximindo de sua responsabilidade enquanto sujeitos que enxergam o mundo a partir de uma localização social específica”, explica Jessica. 

Ainda segundo a autora do livro, ao assumir que a perspectiva apresentada será sempre parcial, abre-se possibilidades para outros saberes, “em um movimento de abertura e não de fechamento em busca de verdade única, que será sempre excludente”.

“De forma geral, me parece importante buscar nos feminismos, enquanto práticas políticas de ativismo e também contribuições teóricas densas, novas formas de se pensar a prática de um outro tipo de jornalismo, que possa melhor se relacionar com a complexidade social que vivemos hoje”, afirma.

Acompanhe a entrevista completa: 

Catarinas: Quais as principais descobertas da pesquisa que resultou no livro? Que contribuições o livro traz ao campo de estudos?
Jessica:
Acredito que o mais interessante seja pensar nas rupturas importantes que os feminismos podem trazer aos pressupostos do jornalismo. Eu estudei particularmente o fundamento da objetividade jornalística, pilar esse bastante central para a prática profissional, seja como meta ou ideal. Embora seja um fundamento que apresente várias definições, em sua forma corrente está ligado ao conceito de verdade, no sentido de ser um método, talvez mais um ritual que nos coloque em direção à verdade. E para isso se pressupõe um distanciamento do sujeito que olha. Refletindo a partir do conceito de objetividade corporificada de Donna Haraway, pude perceber que o jornalismo feminista subverte esse distanciamento, se aproximando e dialogando mais abertamente com as pessoas envolvidas na construção das matérias jornalísticas e não se eximindo de sua responsabilidade enquanto sujeitos que enxergam o mundo a partir de uma localização social específica. Ao assumir que a perspectiva apresentada será sempre parcial, elas abrem possibilidade de conexão com outros saberes parciais, em um movimento de abertura e não de fechamento em busca de verdade única, que será sempre excludente. De forma geral, me parece importante buscar nos feminismos, enquanto práticas políticas de ativismo e também contribuições teóricas densas, novas formas de se pensar a prática de um outro tipo de jornalismo, que possa melhor se relacionar com a complexidade social que vivemos hoje. 

A pesquisadora Jessica Gustafson fala sobre as rupturas no jornalismo moderno/Foto: Marcelo De Franceschi

Catarinas: O que a motivou a investigar a prática do Portal Catarinas?
Jessica: Foram alguns fatores juntos que me instigaram assim que conheci o Catarinas em 2016. Um deles foi a especificidade de ser um portal de notícias. Existem outros portais feministas que se dedicam ao jornalismo e são também de grande qualidade, mas as formas de atuar me parecem distintas. Alguns têm atuado mais na produção de reportagens, dossiês, crítica de mídia, artigos de opinião, entre outros gêneros jornalísticos. Me chamou atenção a definição do Catarinas como portal de notícias e a relação disso com a factualidade, com uma prática cotidiana mais voltada para o imediato e como uma perspectiva feminista atuaria nessa relação entre a ação comumente pouco refletida do jornalismo em sua pressão com o tempo. E foi bastante interessante perceber que existia um movimento de privilegiar a reflexão do que estava sendo produzido, mesmo que isso trouxesse consequências nesta lógica, de publicar rápido, antes dos outros veículos. A outra questão foi trazer a perspectiva de gênero como uma qualificação do jornalismo que estava sendo construído.

Catarinas: A partir da sua investigação, como podemos definir o jornalismo feminista ou o jornalismo com perspectiva de gênero?
Jessica: 
O jornalismo feminista não é uma proposta nova, desde o século XIX é possível encontrar jornais com objetivos políticos abertamente feministas, como demonstrou a pesquisa de Constância Lima Duarte sobre a imprensa feminista e feminina no Brasil. Embora a forma como esse jornalismo foi praticado ao longo do tempo tenha mudado bastante e isso reflete tanto uma maneira de fazer jornalismo quanto as mudanças dentro do campo do feminismo, ele sempre figurou como uma ferramenta de luta, disputando as narrativas que circulavam na sociedade em cada momento histórico. Já o jornalismo com perspectiva de gênero,  começa a surgir mais recentemente, principalmente com a circulação nas últimas décadas do conceito de gênero. E é importante destacar que gênero não toca somente questões relacionadas às mulheres, não sendo uma simples substituição de palavras, tiro mulheres e coloco gênero em seu lugar. Esse é um conceito que diz mais sobre relações de poder, tendo um caráter relacional. Além disso, a luta feminista também têm ampliado nas últimas décadas as pautas, sendo a vida das mulheres um foco importante, mas se abrindo para outros temas que estão relacionados com as relações de poder, como por exemplo, o encarceramento e questões ambientais, que também abarcam questões de gênero, mas muitas vezes extrapolam ou interseccionam outras relações violentas e desiguais. E o uso da palavra gênero já é um movimento político importante pela abertura proporcionada pelo termo. 

Em minha análise considero que a perspectiva de gênero está relacionada a um fazer que ultrapassa a escolha das fontes, por exemplo, no sentido de que escolher fontes mulheres é um movimento importante para subverter também uma lógica do jornalismo hegemônico, mas não é suficiente. Ultrapassa a pauta, pois embora a cobertura de atos e atividades do movimento feminista seja crucial, atua de forma muito mais ampla. E principalmente, supera a ideia de que a perspectiva de gênero é uma especialidade entre as outras. Caminha em direção a  uma perspectiva transversal, e essa ideia é bastante compartilhada por jornalistas feministas que têm pensado sobre o jornalismo com essa perspectiva, como uma forma de olhar o mundo que percebe e denuncia as hierarquias de poder existentes nas múltiplas instâncias da vida e que atingem as mulheres de múltiplas formas, levando em consideração outros marcadores, como raça, etnia, classe e sexualidade. Sendo assim, todos os assuntos podem ter experimentada uma perspectiva de gênero.

Catarinas: Ativismo e jornalismo. Há um encontro possível no exercício dessas duas atuações? Como essa relação se constituiu no Portal Catarinas?
Jessica: 
Pensando em um modelo de jornalismo, o chamado jornalismo informativo que surge após a imprensa de opinião e é herdeiro de uma concepção positivista e iluminista, não existe esse encontro. Isso em uma concepção normativa. Na prática, aproximações sempre existiram, e seguem existindo pela impossibilidade óbvia de existência de um sujeito sem paixões, preferências e valores. A questão que me intrigava eram os motivos do jornalismo tradicional, ao tomar para si esse discurso de imparcialidade, neutralidade e objetividade, conseguir se legitimar socialmente por esse suposto distanciamento e os preconceitos e estereótipos contidos nas notícias serem tomados como “fatos”, “normalidades”, em que o jornalista viu, relatou e publicou, sem interferir no sentido produzido. Já qualquer atuação mais posicionada contra uma lógica machista era vista como uma atitude tendenciosa, não condizente com a prática jornalística. Mudando o foco, o  jornalismo contra-hegemônico apresenta uma perspectiva muito mais aberta, muito mais sincera sobre a ideia de que observa os fenômenos sociais a partir de uma lente específica. E no Catarinas isso ocorre, existe uma transparência maior sobre as suas posições e propostas políticas de transformação social. Mas nesse sentido pude perceber dois movimentos interessantes. O primeiro é uma aproximação com o ativismo, sendo as próprias jornalistas ativistas, feministas, inseridas ou próximas ao movimento social. Isso facilita o trabalho, o contato com as fontes, proporcionando um diálogo mais aberto com as pessoas que se relacionam com o Portal. Por outro lado, temos movimentos de afastamento, de marcação de uma autonomia jornalística, de busca de um enquadramento próprio, que pode ser até mesmo diferente do enquadramento proposto pelo movimento social. Entendo que são negociações constantes e nem sempre fáceis na prática de um jornalismo feminista. 

Catarinas: A objetividade é um dos fundamentos do jornalismo moderno. De que forma esses e outros fundamentos do jornalismo caracterizado como “profissional” estão colocados ou são confrontados na prática do Portal Catarinas?
Jessica: 
Talvez essa tenha sido uma das principais conclusões, existindo sim rupturas assim como a manutenção de práticas cristalizadas no campo, mas que estão em constante processo de ressignificação. A objetividade continua pairando sobre todas as decisões, mas não habita um lugar confortável, estando sob constante tensão. Ou seja, existem tanto rupturas quanto continuidades. E essas continuidades me parece estar relacionadas a algo simples, que é a proposta do Catarinas de fazer o que faz, que é jornalismo. Essa atividade não está relacionada apenas às práticas internas ou aos cânones que as sustentam, mas igualmente a uma legitimidade social, garantida pela forma como a sociedade entende o jornalismo e que reflete diretamente na sua credibilidade. Sendo assim, me parece que não é possível se distanciar dessas bases e operar totalmente fora da lógica do que se configurou como sendo o jornalismo, pois são elas que inevitavelmente garantem a inteligibilidade social do que é o campo. E se manter dentro da inteligibilidade do campo é importante também como proposta política, pois se atuamos em uma disputa discursiva e queremos que a nossa perspectiva feminista circule, a credibilidade do jornalismo também é importante para os nossos projetos.

Catarinas: Que valores o jornalismo feminista ou com perspectiva de gênero traz de contribuição ou crítica ao jornalismo considerado tradicional? Que críticas ao jornalismo moderno, constituído a partir de valores iluministas, são apontadas no seu trabalho?
Jessica: 
Acho que aqui vou apontar as rupturas que considerei importantes no trabalho construído pelo Catarinas. Ao trabalhar teoricamente com o jornalismo, parti de alguns pressupostos abordados por outras pesquisadoras e pesquisadores, tendo sido fundamental o caminho aberto por Marcia Veiga da Silva no campo do jornalismo, que também refletiu a partir de uma perspectiva feminista, ao afirmar que o jornalismo tem gênero e ele é masculino. Para a autora, essa generificação se dá a partir da valorização de características atribuídas historicamente ao masculino, como a disputa e a competitividade construídas na imagem do jornalista “furador”, por exemplo. No jornalismo com perspectiva de gênero, existe uma subversão dessas características, com uma desvalorização do furo, privilegiando a reflexão no lugar da ação imediata. A construção coletiva das pautas e a proposta colaborativa indicaram uma disponibilidade de ampliação do acesso ao portal, assim como tendência de horizontalizar o trabalho e descentralizar as práticas. Foi possível notar também que o enfoque de gênero construído pelo portal impacta no tratamento das pautas a partir da valorização de vozes que comumente são invisibilizadas na mídia tradicional, e ao enfoque não estereotipado das mulheres, buscando a multiplicidade das fontes. 

Catarinas: Dar espaço à voz contraditória é uma das premissas do jornalismo. De que forma as jornalistas do Portal Catarinas entendem essa premissa?
Jessica: 
Essa premissa está diretamente relacionada ao fundamento da objetividade jornalística e se transformou na máxima de “ouvir os dois lados”. Primeiramente, os fenômenos sociais não apresentam apenas “dois lados”, essa seria uma forma simplista de pensar os acontecimentos, como se existisse sempre uma polarização definida sobre os assuntos e não diversas nuances. E normalmente esse recurso é utilizado só para constar, sendo que um dos lados apresenta uma voz mais privilegiada, dando o tom da matéria. Essa é uma maneira também do jornalista se eximir da sua responsabilidade pelo enquadramento da matéria e dizer “sou neutro e imparcial porque fiz uma cobertura equilibrada”, mas precisamos questionar o que é exatamente essa noção de equilíbrio. É lógico que o jornalismo precisa ser espaço para vozes dissonantes, mas é preciso uma reflexão sobre a maneira como isso é feito e em quais contextos isso acontece.

Durante a pesquisa pude perceber alguns delineamentos, até mesmo porque a utilização do contraditório demonstrou não ser compreendido da mesma maneira por todas as jornalistas do portal e isso é bastante interessante. Existia uma motivação ética em conceder espaço para que pessoas com vozes divergentes e diretamente implicadas na notícia, principalmente nas de denúncia, pudessem trazer suas visões. Assim, entendi que existia uma defesa dos preceitos básicos do jornalismo, mas não de forma ingênua, pois como elas afirmaram a abordagem será sempre direcionada pelas perspectivas delas e, certamente, não configura em uma igualdade de espaço e muito menos teria o mesmo destaque.  Ao mesmo tempo, dependendo da situação, o contraditório é entendido como um reforço da perspectiva a qual elas defendem, interpretação mais estratégica e alinhada com a proposta também ativista do portal. Por fim, temos a concepção de que certas vozes não devem ser legitimadas enquanto contraditório, como a voz de um padre para falar sobre o aborto, entendendo que existe uma disputa discursiva na sociedade sobre o tema e que é papel delas se posicionarem em um dos lados dessa disputa.

Catarinas: A proximidade ao objeto é uma das definições do conceito de objetividade corporificada. Você também rompeu cânones da ciência, ou seja, aplicou esse conceito no processo de sua pesquisa?
Jessica:
Acho que o conceito de objetividade corporificada extrapola até mesmo essa dicotomia entre sujeito e objeto, caminhando em uma ideia de que o conhecimento se constrói na relação entre pesquisador e quem está sendo pesquisado. De toda forma, sempre existe uma hierarquia nesse processo, e foram muitas as teóricas que discutiram sobre como minimizar essa relação desigual. Um reconhecimento que considero importante é que o meu olhar enquanto pesquisadora, uma pesquisadora cis, branca, lésbica e ocupando um espaço acadêmico, está entranhado nos resultados da pesquisa, na escolha da teoria e na metodologia. E se responsabilizar por esse olhar é um dos pontos trazidos pela Haraway nesse conceito. Desta forma, podemos pensar seguindo a autora que é a aproximação e o compartilhamento de objetivos políticos específicos que nos permite visualizar melhor as práticas e não aquele distanciamento masculinista defendido pela Ciência Moderna. Bom, eu sou também jornalista e feminista e estou analisando o jornalismo feito por jornalistas e feministas e isso influencia diretamente tanto no processo de pesquisa quanto no resultado. Querer me distanciar do Catarinas e dizer que não compartilho desse projeto soaria muito falso da minha parte. E essa relação, esse contato, em que as fronteiras entre ser pesquisadora, jornalista e feminista também são borradas, foram relatados quando descrevi meu percurso metodológico, inclusive as minhas dúvidas e inseguranças sobre os limites dessa aproximação. 

Catarinas: Por que pensar um jornalismo feminista frente à teoria e prática do jornalismo convencional?
Jessica:
Uma das premissas que compartilho com as jornalistas que atuam na produção de um outro jornalismo é que o jornalismo convencional não atende as demandas feministas de transformação social. Ou ainda pior, atua reforçando e construindo relações desiguais. O jornalismo é produto da sociedade em que está inserido e reproduz seus preconceitos, mas podemos refletir outros valores mais condizentes com nossa proposta transformadora e esses valores também circulam na sociedade. Depende do lado que vou olhar e quais alianças vou construir. E denunciar as hierarquias que geram exclusão e violência é um caminho, assim como propor outros sentidos sobre o mundo. Assim, parto do entendimento de que o jornalismo precisa de grandes mudanças para deixar de produzir discursos que reproduzam desigualdades e violências simbólicas no que se refere às mulheres e seus atravessamentos de raça, etnia, sexualidade, classe e geração. Ao mesmo tempo, acredito que o feminismo tem muito a acrescentar ao jornalismo e que o trabalho que vem sendo desenvolvido, fora da mídia hegemônica, por jornalistas feministas, está a trazer um novo olhar sobre a profissão. Seja nas práticas ou nos cânones, o feminismo tensiona os pilares sob os quais o jornalismo foi construído. Ao promover essas rupturas, abre espaço para o novo. Esses contornos ainda não são totalmente definidos e talvez nunca sejam, pois existem diferenças entre as formas de fazer jornalismo feminista e isso é bastante potente. Mas pressupostos têm sido compartilhados, como a ideia de que produzem um jornalismo situado com uma forte oposição à objetividade descorporificada, essa que exime os sujeitos de suas práticas de visualização do mundo, como definiu Haraway. O mais importante é estar fazendo frente a essa instituição masculinista que não serve para os projetos que temos enquanto jornalistas feministas. 

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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