Pensar não é o mesmo que buscar evidências dos nossos vieses de confirmação, e isso fica bastante evidente em discussões sobre gênero e Covid-19
Há várias maneiras de pensar, e é em áreas amplas e que existem para além do meu domínio – como as neurociências cognitivas e a psicopedagogia – que vocês devem buscar confirmação ou contestação para o que vou sugerir aqui. Este texto resulta de observações feitas no trato das frustrações que se repetem em conversas sobre questões de gênero e racismo. Não sou conhecedora das formas como a aquisição de informações é ou não informada por processos bio, fisio, psico ou sociológicos.
Mas uma coisa é característica de conversas difíceis sobre estes temas: pessoas selecionando evidências que correspondem a seus vieses de confirmação ao mesmo tempo em que refutam as que desestabilizam seus entendimentos de mundo.
Minha impressão é que existem ao menos duas lógicas básicas com que o pensamento é operacionalizado quando recebe e processa tais informações, e vou me autorizar a chamar um de lógica da crença e a outra de lógica do método. Nesse texto, uso o termo lógica como metonímia para sua definição: aquilo que trata das formas do pensamento e de operações intelectuais para determinar o que é ou não verdadeiro. Assim, ao falar em lógica da crença, falo da reação à aquisição de conhecimento que deriva da ação de acreditar, de crer. Quando falo lógica do método me refiro à reação à, e à própria aquisição de conhecimento pelo uso de ferramentas para a investigação de fenômenos naturais e sociais abertos a atualizações.
A lógica da crença tende a ser empregada em defensivas quando novas informações desestabilizam um dogma; a lógica do método espera que novas informações desestabilizem dogmas.
A lógica da crença tende a dificultar a aquisição de informações contraditórias, visto que pode e frequentemente é empregada para refutar rachaduras num entendimento específico de mundo; a lógica do método possibilita e celebra mudança de ideia, visto que amplia entendimentos de mundo, ainda que cause rachaduras no ego. A lógica da crença produz o irrevogável e permite escolher ouvir e enxergar apenas o que confirma uma visão; a lógica do método reconhece que verdades evidenciadas valem mais do que opiniões, narrativas ou desejos.
Não é preciso acreditar na ciência; mais vale confiar no que, pelo seu método, é verificável. Já na metafísica é preciso acreditar.
E as duas coisas coexistem, no jurista que acredita em tarô ao engenheiro que acredita no Bolsonaro, do astrólogo que toma vacinas à freira que estuda teoria das cordas. No entanto a lógica da crença impõe limitações no entendimento da realidade se não for balizada pela lógica do método, e vou oferecer exemplos do emprego destas lógicas para ilustrar o ponto que estou tentando fazer, em dois contextos: estudos de gênero, e vacinação em proteção contra o Covid-19.
Gênero
Estima-se que 1,7% da população mundial seja composta por pessoas intersexo*. Estas pessoas, genética e/ou fisiologicamente, não são exatamente machos nem fêmeas da espécie humana. O reconhecimento dessas pessoas aparece na mitologia grega, de onde vem Hermafroditus, ser em cujo corpo convivem um homem/o masculino e uma mulher/o feminino; foi o militarismo masculinista Romano que suprimiu suas manifestações e representações, e uma exposição relativamente recente na Universidade de Oxford resgatou pinturas, estátuas e artefatos greco-romanos que contêm referências a mitos e sujeitos que não correspondem ao binário de gênero macho/homem – fêmea/mulher**.
Algumas culturas nativas das Américas do Norte também validam existências não-binárias e em suas cosmogonias e vocabulários existem pessoas “dois espíritos”. No Paquistão não há festa de casamento sem a presença das hijra, mulheres trans fetichizadas como amuletos de boa sorte para casamentos cis-hétero. E estas não são as três únicas culturas a celebrar ou oprimir existências fora do binário de gênero. A cultura patriarcal e supremacista masculinista branca e cis-hétero-centrada é responsável pelo apagamento e outras violências frente a sujeitos trans e intersexo. E apesar de ser cruel e exploratório para com mulheres cis, e embora tenha reservado para nós espaços restritos e indiscutivelmente mais indesejáveis do que não, ao menos o patriarcado nunca não nos reconheceu.
Sugerir que o resgate cultural de existências que desestabilizam o binário de gênero seja um exercício de imposição de uma agenda das pessoas com pênis ou dos estudos de gênero é equivocado, é violento, e é meio burro.
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Mulheres e homens e pessoas intersexo cis e trans existem com ou sem pênis ou útero, e a misoginia não foi inventada pela comunidade queer. O machismo fundamenta muitas mitologias, desde a greco-romana até as orientais e africanas, e práticas sociais, desde as de kinship no coração da Amazônia pré-colombiana*** até o exercício moderno da sedução****. Selecionar casos isolados para sugerir que o ativismo e estudos de gênero têm uma agenda de apagamento de mulheres cis, ou um imaginário inédito, são delírios que surgem justamente da lógica da crença, que ignora a realidade para privilegiar o desejo de estar com razão. Fazer isso é se informar não pelos relatos da existência humana, ao longo de milênios, cada vez mais modulados pelo conhecimento compilado com o rigor do método, mas por aquilo em que se quer crer.
Covid-19
Era uma vez uma doença chamada poliomielite, e ela foi erradicada por conta da vacinação em massa. Há anos idosos resistem a gripes no inverno por conta da vacinação, e quem foi criança nos anos 1980 no Brasil confia no Zé Gotinha. As vacinas contra a Covid-19 foram pesquisadas a partir de pesquisas existentes de vacinas semelhantes já formuladas para vírus existentes semelhantes ao Covid-19. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças, agência do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, demonstrou recentemente que para cada 100 mil habitantes não vacinados há 451 casos de infecção e 6.1 de morte; o mesmo número de habitantes vacinados resulta em 134 casos e 0,5 mortes; e entre 100 mil pessoas que receberam a terceira dose, foram 48 casos de infecção e 0.1 morte.
Ou seja: evidências apontam para a eficácia inequívoca da vacinação.
A ivermectina é um medicamento cientificamente correto… contra vermes. A hidroxicloroquina está indicada na supressão e tratamento dos ataques agudos de malária, causada por um parasita. Não existe comprovação nenhuma de que estes medicamentos serviriam contra um vírus, menos ainda o causador de Covid-19. Mas houve propaganda a favor deles para esta condição. Se alguma coisa, estes medicamentos são detrimentais à saúde de quem não precisa de vermicida ou antiprotozoários. Ainda assim, a mistificação do método científico pela via da imposição de um sistema de crença – no Brasil pelo bolsonarismo, e, no Norte global unificado pela língua inglesa, por apresentadores de mídia carismáticos e sem embasamento, como Jenny McCarthy, Rush Limbaugh e Tucker Carlson – resultou em gente boa acreditando que o fato de as vacinas virem de grandes corporações farmacêuticas deveria nos alertar do suposto perigo que elas representam.
Que big pharma visa lucro é verdade. Mas não pagamos pelas nossas vacinas individualmente; nossos impostos o fizeram (e o nosso governo, especificamente e notoriamente, demorou muito para fazer essa compra, para qual a Pfeizer bem tentou oferecer bom acordo, fato exposto pela compilação rigorosa e metodológica de evidências reveladas durante a CPI da Covid).
Além disso, a produção da indústria de fármacos é não só balizada, mas fundamentada pelo rigor do método científico.
Entendo a desconfiança com conglomerados econômicos e políticas públicas feitas por gente branca. Mas uma coisa é reflexão crítica decolonial, e outra bem diferente é seguir os mandos de líderes na direção do abismo, e, no caso da Covid-19, a escolha por medicamentos divulgados e distribuídos com propaganda em detrimento da vacina produzida e distribuída com rigor foi uma escolha típica da lógica da crença, da seleção de evidências que sustentam sistemas internos de fé e desejo em detrimento da lógica do método, rigorosamente metodologicamente compilada por observações minuciosas e registros numéricos da realidade.
Crença e método
Crenças são uma manifestação humana de grande valia na seara da religiosidade e projetos míticos e sociais. Mas o rigor do método é comprovadamente eficaz na lida com a realidade concreta das coisas.
E não sei exatamente como terminar este texto, mas ficaria grata se neurocientistas e psicopedagogos e outros conhecedores dos processos de aquisição de conhecimento tomassem conhecimento dele para me apontar na direção de mais reflexões sobre esses assuntos. Mas o que espero mesmo com ele é que quem o lê se sinta um pouco mais equipado para levar adiante as reflexões sobre uma constatação óbvia, porém nem sempre ativa: pensar não é o mesmo que buscar evidências daquilo em que já acreditamos.
* Amiel Vieira em Tem saída? Perspectivas LGBTI+ sobre o Brasil (Editora Zouk, 2017), citando Anne Fausto-Sterling; a OMS estima que sejam 1.9%
** Mythos, Stephen Fry, 2017.
*** Aqui referencio de memória Lévi-Strauss via Gayle Rubin em “O tráfico de mulheres”.
**** Em “Da Sedução” Baudrillard é terrivelmente misógino e transfóbico, mas não é difícil encontrar misoginia e transfobia no tema que ele desdobra com seu próprio machismo…