Transitando entre o pessoal e o coletivo, a peça “Darei mil saltos” convida o público a rever e desconstruir o discurso colonial, impregnado na formação da identidade da mulher brasileira. Apresentado pela coletiva Abya Yala, o espetáculo faz uma releitura feminista dos relatos dos europeus em sua chegada no Brasil.
“Darei mil saltos pelas coisas que perdi e outros mil saltos pelas coisas que ainda irei encontrar”. Inspirada no sumiço real do caderno da atriz Camila Duarte e seus pulinhos em promessa para São Longuinho na ânsia de encontrá-lo, a peça se dá em uma costura entre metáforas e a realidade.
“Cada um desses saltos tem a ver com coisas que a gente perde ou com coisas que a gente reencontra, que poderiam estar no meu caderno, mas que também podem estar no caderno da história da humanidade, no caderno da história das mulheres”, conta Duarte.
“Um objeto perdido, nele listas, poemas, memórias, sonhos. Um pedido para que reaparecesse e a urgência de reencontrar-se”. Camila atua na peça representando a si mesma na busca pelo seu caderno, e em cada um dos saltos, em suas diferentes intensidades, atua como porta-voz da coletiva Abya Yala e dessa história de perdas – de memórias, da ancestralidade feminina e de todas as perdas como mulher vivendo em um mundo construído pelo patriarcado.
A peça inicia com a leitura de um texto que contextualiza como foi a formação da identidade das mulheres brasileiras segundo a perspectiva colonial, e no decorrer do espetáculo vai questionando e desconstruindo essa narrativa. Ao subverter esses relatos, a personagem escancara o contrassenso que é a história da colonização dócil e amigável que foi contada, mostra forças femininas que se recusaram e que ainda se recusam a serem dominadas.
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Para Camila, a peça não é, contudo, apenas sobre perdas, mas também sobre reencontros. “A gente perdeu muita coisa e continua perdendo, direitos estão sendo perdidos o tempo todo. Mas tem o que está por vir, e como que a gente vai trabalhar juntas, quais as forças que a gente vai angariar para que essas coisas que a gente encontre se realizem”.
Maria Clara Teixeira, integrante da coletiva e diretora da peça, conta que esse processo de revisão histórica proposto no espetáculo permite explorar quais foram as perdas das mulheres ao longo da história, e com isso recuperar seu protagonismo. “Tem essa coisa de rever tudo que a gente perdeu para vermos o que podemos recuperar disso. É um convite para a gente se repensar e se ressignificar enquanto mulher”.
Ao questionar e inventar identidades, a partir de uma perspectiva feminista, a peça desconstrói os estereótipos do feminino. “A peça faz uma desconstrução desse corpo, onde a gente aponta como esses estereótipos – como recatada, por exemplo -, podem aparecer em diferentes relações sociais. Quando eu relato a história da minha avó aqui, é a história da minha avó, mas podem ter outras histórias diferentes da dela que se assemelham a essa figura”, explica Camila.
Ao ser realizada em casas, a peça também foge do espaço convencional de se fazer teatro. As cenas circulam entre os cômodos e interagem com o público, proporcionando uma experiência dinâmica e imersiva. Para Maria Clara, tirar o teatro do lugar institucionalmente aceito de se fazer teatro, permite aproximar-se do público e fazer com que sua voz chegue em mais lugares.
COLETIVA ABYA YALA
O projeto teve seu primeiro ensaio aberto ao público em dezembro de 2018, em Florianópolis, e foi viabilizado através de uma campanha de financiamento coletivo realizada pela plataforma Catarse. Na estreia da peça também ocorreu o lançamento e publicação do livro “Poemas para leer desde adentro de una semilla”, de Camila Duarte. Composto por sete capítulos, que vão desde micropoemas à escritas feministas, o livro contém alguns dos poemas que aparecem na peça.
A coletiva Abya Yala é formada por Camila Duarte, Daiani Brum, Ana Pi, Thiag, Gabriela Guadalupe, Maria Clara Teixeira, Mayara Mattar e Regina Vivanco. A peça estreou em 6 de julho e encerra com apresentações no sábado (20) no Espaço Transformando, e domingo (21) na Meta-Casa, ambos às 19h.