Por Kátia Brasil e Nicoly Ambrozio, da Amazônia Real*

De janeiro a julho, nove mulheres foram assassinadas por crime de feminicídio no Estado, segundo a SSP. Em relação ao ano 2019, com oito mortes, o aumento nos casos foi de 12,5%

Manaus (AM) – A psicóloga M.C.C, 36 anos, relatou sua história de violência doméstica na primeira série de reportagens Um vírus e duas guerras. Em junho, quando leu o texto publicado no site da agência Amazônia Real percebeu o quanto permanecia imobilizada diante das agressões verbais e psicológica do marido. E se perguntou: “O que estou fazendo comigo? Tenho que tomar uma providência. É a gente que dá um basta na violência e mais ninguém”, afirmou.

A providência veio quando decidiu, com a ajuda do pai, alugar uma casa em sua cidade natal. Mas, antes, ouviu do pai, solidário em um primeiro momento, a pergunta se ela tinha “outro”. “Os homens sempre acham que a gente só se separa por causa deles”, relatou a psicóloga. Para o companheiro agressor, ela disse que tinha de cuidar dos pais diabéticos. Na cidade, buscou uma advogada para iniciar o processo de divórcio.

Depois de alguns dias, M. ligou para o marido e disse: “Voltei à minha cidade por não aguentar mais você gritar comigo todos os dias. Me xingar, me rebaixar, me agredir. Tentei até te denunciar na Delegacia da Mulher, mas não tive coragem. Eu entrei com um pedido de divórcio. O casamento chegou ao fim. Bastou a violência contra a minha vida”.

O marido ouviu calado. Ainda tentou convencer a psicóloga a manter as aparências para passarem o Natal juntos, com os dois filhos pequenos. “Disse que ele não iria fazer nada contra mim. Mas eu não mudei uma palavra. Finalizei dizendo: ‘O nosso casamento acabou. Eu tenho que buscar minha felicidade’. Ele disse: ‘eu vou procurar um advogado’”.

A decisão de sair de casa da psicóloga foi o ponto final de uma série de violências que sofreu. Ela passou a atender aos seus pacientes de forma muito nervosa. Já ele, continuava bebendo, vendo TV e gritando. Num dia em que ela errou um pedido de delivery, quase foi agredida. “Ele estava bem embriagado, partiu pra cima de mim com mão pra me bater, mas recuou. Isso foi em frente aos meus filhos. Eu pensei: na próxima ele não vem com tudo.”

A psicóloga contou que no processo do divórcio os filhos terão a guarda compartilhada, mas como o marido é natural de Manaus e lotado em repartição pública militar, as crianças terão que viajar nas férias. “Essa foi uma decisão já compartilhada”.

O casamento de dez anos tinha chegado ao fim. Não fosse a ajuda e o acolhimento de mulheres psicólogas, M. não teria tido coragem para fazer a denúncia. Conseguiu na Justiça uma medida protetiva e já se vê diante de um novo desafio. “Tenho a clareza de que ninguém merece viver um relacionamento abusivo, constrangedor e violento. Não quero ter essa experiência nunca mais em minha vida. Quero ensinar aos meus dois filhos que amem a todos sem distinção, e aprendam a respeitar as mulheres”, afirma.

A psicóloga M.C.C. foi uma das 196 mulheres que denunciaram à violência doméstica em uma delegacia no Amazonas no período da pandemia do novo coronavírus, de março a julho de 2020. A Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Amazonas não divulgou os dados de agosto, assim como informações sobre a idade das vítimas, raça, etnia e orientação sexual. Também não autorizou uma entrevista com a delegada Marília Campello, coordenadora do recém criado Núcleo de Combate ao Feminicídio. Em razão dos dados incompletos, o Estado não entrou no segundo monitoramento da série Um vírus e duas guerras.  

De janeiro a julho, nove mulheres foram assassinadas por crime de feminicídio no Estado, segundo a SSP. Em relação ao ano 2019, com oito mortes, o aumento nos casos foi de 12,5%. 

Infográfico de Fernando Alvarus

O segundo monitoramento Um vírus e duas guerras traz dados sobre mortes por feminicídios de 19 Estados e mais o Distrito Federal. No segundo quadrimestre do ano ocorreram 304 assassinatos de mulheres. Houve uma queda de 7% nos casos, mas faltaram dados de sete estados, incluindo o Amapá – onde a reportagem da Amazônia Real teve de solicitar os dados por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

O projeto de monitoramento é uma parceria inédita entre as mídias independentes Amazônia Real, sediada no Amazonas; Agência Eco Nordeste, no Ceará; #Colabora, no Rio de Janeiro; Marco Zero Conteúdo, em Pernambuco, Portal Catarinas, em Santa Catarina; AzMina e Ponte Jornalismo, em São Paulo. A série Um vírus e duas guerras tem o objetivo de visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil.

A negligência nos dados continua

Foto: Nay Jinknss/Amazônia Real/2020

A professora-doutora, antropóloga e criadora do Observatório da Violência de Gênero da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Flávia Melo, lamenta que o Amazonas tenha adotado a política de não divulgar adequadamente os dados de violência doméstica, problema que se arrasta desde o início da pandemia. “É bem complicado para a investigação científica e o jornalismo esses silêncios e interditos, baseados no sigilo (da informação) e na ausência de respostas. Essa postura, disse a professora, é coerente com o que acontece no País.

De janeiro a julho, as delegacias registraram 13.340 denúncias de violência doméstica no Amazonas, sendo 8.856 de março a julho, período do distanciamento social da pandemia do coronavírus. Desse total, 4.193 foram de ameaças. Os dados estão na estatística da SSP, mas o órgão só informa os casos registrados em Manaus: um total de 13.010. Não há informação dos casos notificados em cada um dos outros 61 municípios amazonenses.

Para Flávia Melo, dados sobre as vítimas da violência doméstica como raça, etnia, orientação sexual deveriam constar nos boletins de ocorrência. “A primeira falha do processo é do agente [na delegacia] que registra essa ocorrência, omite e não indaga a pessoa [a mulher] sobre essas informações. Se os agressores são, em sua maioria de convívio doméstico, como é que essas informações não são obtidas? É possível que algumas mulheres não informem os dados, mas o que explica a lacuna de informações sobre as próprias mulheres?”, questiona.

A professora da Ufam explica que os outros documentos úteis para traçar um perfil das vítimas da violência doméstica seriam os inquéritos policiais, “que tendem ser mais completos”. Mas esses inquéritos não são públicos como as ações penais. Algumas, que são públicas, podem ser acessadas no Judiciário. Resta às entidades traçar um perfil mais detalhado pela contagem dos casos por meio da imprensa ou por denúncias do movimento social. 

“Se a gente tem delegada ou delegado proibidos de falar, relatórios da SSP não disponíveis, temos um fosso que não nos permite sequer quantificar, imagina descrever essas mulheres e acusados envolvidos nessas denúncias. Essa negligência observada em diferentes níveis da segurança pública revitimiza as mulheres”, afirma Flávia Melo.

Não existe queda, elas continuam morrendo

Protesto pede justiça por Jacira (Foto FPMM/2020)

Das nove mulheres mortas por crime de feminicídios de janeiro a julho no Amazonas, sete foram assinadas em casa. Três casos tiveram grande repercussão. Na madrugada de 12 de maio, a modelo Kimberly Karen Mota de Oliveira, de 22, foi morta com golpes de faca no pescoço e no abdômen pelo namorado, em Manaus. Miss do município de Manicoré, ela foi assassinada por ciúmes, segundo a polícia. O acusado tentou fugir para a Venezuela, mas foi capturado antes de atravessar a fronteira. Ele está preso sob acusação de crime de feminicídio e aguarda o julgamento. 

Em 25 de agosto, Talita da Silva Tavares (não foi divulgada a idade), foi assassinada pelo marido, em Coari. No dia 30 do mesmo mês, a vítima foi Jacira Souza de Lima, na cidade de Careiro da Várzea, também assassinada pelo marido. As delegacias das duas cidades confirmam que investigam crime de feminicídios, mas a SSP ainda não divulgou esses casos em sua estatística, que agora está publicada no site do órgão.  

A feminista Luzarina Varela, 59 anos, do Fórum Permanente das Mulheres de Manaus (FPMM) e Movimento Mulheres Solidárias do Amazonas (Musas), acompanha as investigações sobre a morte de Jacira Souza de Lima, assassinada pelo marido com 30 facadas. Ainda na pandemia e, com todos os cuidados para não pegar o vírus da Covid-19, ela e outras ativistas protestaram na porta da Delegacia de Homicídios. “Na audiência de custódia, [o acusado] estava preso provisoriamente e tinha um advogado tentando tirar ele [da prisão]. A gente tem que estar acompanhando a família para não deixar uma morte assim ficar no esquecimento”, diz Luzarina. Jacira era mãe de quatro filhos. “Temos que pressionar a Justiça. Foi um assassinato cruel, não pode ser deixado que seja mais um só na estatística, essa é a nossa preocupação.”

Sobre os dados do monitoramento Um vírus e duas guerras que apontam uma queda no número de feminicídios nos 20 estados pesquisados, Luzarina Varela diz não crer que a violência contra a mulher tenha caído. “Não existe queda, as mulheres continuam morrendo, não só em Manaus como em todos os municípios brasileiros. Os assassinos continuam soltos, a maioria deles. Antes a gente podia acompanhar as audiências de custódia. Agora, com a pandemia, não podemos. Isso prejudica muito porque a gente não está acompanhando os julgamentos”, disse a feminista do FPMM.

Veja os dados nacionais sobre as mortes de mulheres em 20 estados,

A média proporcional é de 0,34 feminicídios por 100 mil mulheres.

Arte: Fernando Alvarus

*Reportagem: Kátia Brasil e Nicoly Ambrozio
Análise de dados: Maria Elisa Muntaner

A série Um Vírus e Duas Guerras vai monitorar até o final de 2020 os casos de feminicídio e de violência doméstica no período da pandemia. O objetivo é visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. Parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, AzMina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo.



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