Por Amanda Sadalla*

No sábado passado, estava em uma festa da faculdade quando fui abordada por um homem que me convidou para dançar. Ele era estrangeiro, disse que estava fazendo um curso lá. Enquanto conversávamos, ele aproximou sua mão da minha bunda e apertou. Eu normalmente reajo, grito e brigo quando me deparo com atitudes machistas em festas. Mas dessa vez fiquei com muito medo e travei, ele era muito grande fisicamente. Sai andando, e continuei minha festa, ainda com medo de brigar com ele.

Um pouco mais tarde, enquanto dançava, senti aquela mesma mão apertando minha bunda outra vez, olhei pra ele e fiz um “sai daqui!’, mais ainda assustada de brigar com aquele homem. No final da festa, na porta, vi ele e seus amigos, também todos muito grandes, em uma briga com meninos e meninas. Na hora imaginei que ele tivesse assediado outras meninas. No domingo, fiz um post em um grupo de meninas da faculdade relatando o ocorrido e assim duas meninas – que não eram alunas e eu não conhecia – me procuraram contando que souberam do post e que também haviam sido vítimas dele: enquanto dançavam receberam uma tapa na bunda. Uma delas assim como eu, duas vezes. Quando elas reagiram, ele se fez de desentendido.

Foi naquele domingo a noite que uma semana muito difícil começou. Eu costumo falar muito sobre sororidade, descobri o feminismo através da sororidade. A união feminina, a identificação uma com a outra, a quebra da competitividade. Mas nessa semana senti o que realmente significa a sororidade.

Me dedico ao coletivo feminista há um bom tempo e neste tempo o que mais tenho me envolvido é em questões de violência de gênero, no acolhimento de vítimas e ferramentas de denúncia. Passei o último mês realizando uma pesquisa “Violência de gênero nas universidades”, lendo e ouvindo relatos da de meninas vítimas de violência de gênero na faculdade. Mas viver o processo da denúncia me fez sentir na pele um pouco do que ouvi de outras mulheres.

Passei a segunda-feira pensando se faria ou não a denúncia. Apesar da raiva sobre o que o menino tinha feito, o que mais me preocupava era o que ele poderia fazer dali pra frente com outras mulheres se não soubesse que aquilo era inaceitável. Tudo vem à nossa cabeça nessas horas: não sabia como seria recebida na faculdade, se alguém diminuiria a gravidade da situação, se duvidariam de nós, se eu estava disposta a me envolver nesse processo em meio à semana de provas e entrega de trabalhos. Não sabia qual seria a reação dos meus pais e até mesmo dos meus amigos. Vem o medo do julgamento, e apesar de todo o meu conhecimento sobre o feminismo, toda minha consciência sobre a violência de gênero, aquele maldito pensamento foi inevitável “Mas será que um tapa na bunda é tão grave mesmo?”. Sim, eu pensei isso. E também me odiei por pensar isso. E sim, nós feministas pensamos isso, e pensamos isso porque somos vítimas, porque apesar de todo nosso empoderamento, somos mulher e somos atacadas diariamente, 24h por dia, por uma cultura que diminui nossas dores e justifica as violências das quais somos vítimas. Somos mulheres e vivemos sendo culpadas e nos culpando pela violência da qual somos vítimas.

Na terça-feira, realizei uma denúncia na faculdade e logo já realizei o reconhecimento do menino. Mas precisava que as outras duas meninas também o reconhecessem. Estava super nervosa quando liguei pra elas, tinha acabado de contar o que tinha acontecido para pessoas que não conhecia – apesar de ter sido muito bem recebida por uma coordenadora mulher – e ver a cara dele, relembrar toda a raiva como mulher e como brasileira, me trouxe sensações muito fortes. Liguei pras meninas irem para a faculdade realizar o reconhecimento, e sabe, eu não sou de sair por ai dizendo como estou me sentindo para pessoas que nem conheço, mas naquele momento, pedi com muita sinceridade pra umas delas no telefone “por favor, vem pra cá, tô muito nervosa.” Naquele momento, não havia nenhum tipo de diferença entre eu e elas: elas eram mulheres como eu, haviam sentido o mesmo que eu, eram aquelas pessoas que precisava junto comigo, e nem ao menos as conhecia. Ouvi o que realmente não esperava “tô indo agora te encontrar”.

Em 20 minutos as duas estavam na faculdade comigo. Duas mulheres que eu não conhecia e que naquele momento se tornaram meu maior apoio. O menino foi notificado e o processo se iniciou.

Eu poderia contar sobre todo o processo de denúncia, mas esse texto é sobre como me senti durante o processo, e o escrevo pelo simples fato de imaginar que outras mulheres se identifiquem.

Primeiro, senti medo. Senti muito medo. E senti raiva por sentir medo. Sim, a nossa cabeça cria todas as possibilidades possíveis: imaginava se ele iria me reconhecer, me procurar e me machucar. Sim, eu sei racionalmente que ele não sabia quem eu era, mas o medo faz a imaginação percorrer muitos caminhos.

Agora, aqui começam meus paralelos.

Se eu, que havia recebido um tapa na bunda (não diminuindo a gravidade disso, mas imagine quem é abusada, estuprada); se eu, que sabia que o menino não conhece minha identidade; se eu, que tenho o privilégio de pegar um taxi para ir para casa por medo de andar da faculdade até o metro e encontrá-lo; se eu, que tive a possibilidade de ficar em casa em um dia que o medo estava muito grande, senti medo… Imagine as mulheres que não possuem nenhum desses privilégios. Imagine mulheres que são vítimas de abusos, mulheres que os agressores sabem que foram elas que realizaram a denúncia, mulheres que não têm como parar suas rotinas para ficarem protegidas dentro de casa (isso quando a casa é um lugar que oferece proteção..). E o medo dessas mulheres?

Segundo, senti culpa. Sou feminista, estudo sobre violência de gênero, tenho consciência da culpa que mulheres se colocam em processos de denúncia. E sim, me culpei. Me culpei por pensar que iria prejudicar a vida desse menino. Sim, eu pensei isso.Sim, eu sei que ele é um agressor, que assédio é crime, que ele é um risco para outras mulheres. E, sim, eu me culpei em um dado momento, por algumas horas, por ter realizado a denúncia. E sabe por quê? Porque nós mulheres crescemos em uma cultura que nos coloca como aquelas que cuidam, que se sensibilizam. Que devem cuidar do homem, até mesmo do agressor. Nesse momento de culpa, considerei a possibilidade de retirar a queixa.

Em uma mesma noite tive milhares de sentimentos: eu sabia que estava entrando em um processo de culpabilização mas não conseguia sair dele. E isso me fez sentir louca, como se estivesse perdendo o controle sobre minhas próprias certezas como feminista.

Vou te contar o que me fez me agarrar às minhas certezas: falar. Tive medo de falar o que estava se passando pela minha cabeça, medo das minhas melhores amigas. Medo de contar que estava pensando em retirar a queixa. Medo de ser julgada. Medo. Mas tentei, falei. Falei e isso me salvou. Me salvou porque fui relembrada das minhas certezas que estavam dentro de mim, mas que precisavam ser resgatadas, e eu sozinha não estava conseguindo fazer isso, precisava de ajuda. Fui relembrada de que não era minha responsabilidade pensar no que aconteceria com o assediador. Fui relembrada de que eu havia feito aquilo por mim e por tantas outras mulheres. Fui relembrada de que se havia alguém culpado nessa história era ele, e não eu.

Próximo paralelo: se eu, que possuo bastante conhecimento sobre feminismo, que estudo violência de gênero, que tenho consciência da culpabilização que ocorre nesses processos, me culpei. Se eu, que estou rodeada por amigas feministas, amigos extremamente compreensivos e familiares que me apoiaram desde o início do processo, me culpei, imagine mulheres que não tem o privilégio do acesso às informações a respeito da violência de gênero, que não conhecem o feminismo, que são vítimas de relacionamentos abusivos dentro de casa há anos com pessoas com quem formaram suas famílias. Mulheres que são culpabilizadas e abandonadas por amigos e familiares quando decidem buscar ajudar e denunciarem seus agressores. Mulheres que são culpabilizadas porque estavam alcoolizada quando foram estupradas. Mulheres que têm suas dores diminuídas e não consideradas. Não há no Brasil nenhum tipo de protocolo nacional de atendimento à mulher vítima de violência de gênero nas delegacias. Menos de 10% dos municípios no Brasil têm uma delegacia para a mulher. E a culpa que essas mulheres sentem?

Essa semana senti o peso do mundo nos meus ombros. Ontem senti como se grande parte desse peso tivesse ido embora: o assediador não está mais no Brasil, esse peso era em grande parte, medo.

A situação do processo atual é a seguinte: o caso está na Comissão de Ética da universidade. A comissão julgará o caso, e enviará um relatório para a faculdade do menino nos EUA. A faculdade dele irá reavaliar o caso, dar um veredito e, se ele for considerado culpado, será aplicada uma punição. A faculdade dele acompanhou o caso desde o início e o menino já está bem encrencado por lá, independente de qual for o resultado final do processo, a diretoria da faculdade está ciente do que ocorreu.

Com toda certeza esse homem pensará dez vezes antes de encostar um dedo em uma mulher sem seu consentimento.

O processo de denúncia não foi fácil. Pensei em desistir, exigiu bastante de mim e das outras duas vítimas. É muito fácil falar “denuncie!”, porque é sim difícil – e como já disse antes, se pra mim, que recebi um tapa na bunda, foi difícil, imagine para meninas que sofrem com outras violências (não gosto de comparar a intensidade das dores sentidas, mas é importante pontuar isso).

Há ainda muito a melhorar na universidade para esses casos, mas há melhorias graças a ação das alunas que têm se mobilizado por mudanças.

Mas a questão central pra mim aqui foi: a união entre mulheres. Essa união foi minha base esta semana. Essa união que me levou a denunciar e a manter a denúncia. A união com meninas que nem ao menos conhecia antes dessa semana. Essa união que nos move e tenho certeza que se, cada uma de nós mulheres, abrirmos nossos corações para as mulheres que encontramos em nossos caminhos, isso resultará em muito mais força para que em casos como esse, a denúncia seja realizada. E lembrando que, a decisão de realizar ou não a denúncia é da vítima, não se deve pressionar ninguém para que isso seja feito, pois só quem está vivendo ou já viveu uma violência sabe a dor que está sentindo e os medos de realizar uma denúncia, mas o apoio é tudo. Ficar junto, por perto, se mostrar disponível para buscar ajuda junto com ela, buscar os meios para que ela realize a denúncia, se mostrando disponível para estar junto dela durante o processo, isso faz toda a diferença.

Vamos juntas, porque sim, fica mais fácil e faz muito mais sentido. Essa semana me relembrou: somos muito fortes, mas muito mais fortes juntas.

E daqui pra frente, vai ter muito, mas muito mais barulho por mudanças!

 

* Estudante de Administração Pública

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