Reflexões sobre algoritmos e o comércio do ódio.

Joanna Burigo para o Portal Catarinas.

Um portal de notícias compartilha reportagem própria anunciando a chegada de novo lote de CoronaVac à Florianópolis. Uma universidade privada nacional oferece pós-graduação com aulas da professora Angela Davis. Alguém fala sobre algo comezinho a respeito da própria vida. Outra pessoa fala sobre algo comezinho sobre a própria vida de forma bem engraçada. Uma ativista comenta criticamente uma ação ambiental de uma corporação racista. Uma brasileira expatriada posta sobre a nevasca no país do norte global em que reside, e sinto frio só de olhar.

Aparece um post patrocinado, é um curso de liderança. Uma revista publica uma de suas matérias #maislidas, e o texto é sobre os efeitos do Covid-19 na fertilidade das pessoas que produzem esperma, que a revista reduz a “homens”. Alguém que não conheço em um grupo que não frequento faz uma postagem sobre Sarah Thomas ser a primeira mulher a arbitrar um Super Bowl. Noto que ela é branca. Um jornal internacional expõe uma escola e alguns pais de Utah, EUA, que possibilitaram que seus filhos não participassem de atividades do Black History Month, fevereiro nos EUA. A matéria não explicita, porém deixa facilmente inferir que eles são brancos. Mais alguém fala mais alguma coisa sobre a própria vida. Post patrocinado de loja me mostra biquínis.

Um site de entretenimento compartilha um quadrinho fofo. Alguém em outro grupo posta sobre Suzanne Valadon. Abro o Google para uma pesquisa rápida, e pelo que vi sua arte parece ótima. Uma mulher da política parabeniza a formação de um sindicato de jornalistas no seu país. Alguém comenta sobre a “cultura do cancelamento” a partir do BBB, dando sua perspectiva pessoal e intransferível. Um app tenta se me vender dizendo que Elon Musk o utilizou. Não sei se rio ou se choro, mas rio.  

Alguém comenta sobre os horrores que acontecem sob o manto sagrado do futebol. (As palavras para descrever esta postagem são minhas, não da dona do post.) Alguém reposta um meme de uma página de astrologia, e me pergunto se a rapidez das redes ajudou a fixar a astrologia nos campos das comédias. Alguém comenta as eleições no Equador. Alguém posta uma imagem incomum sobre um super-herói, com um comentário daqueles que só entendedores entendem. Mais publicidade, e desta vez me oferecem vídeos lindos e em instantes.

Alguém posta um comentário meio exasperado e cem por cento debochado sobre o debate público brasileiro. Alguém posta um texto publicado em jornalão que afirma que o grande vilão deste BBB é o público. Alguém posta um artigo de um blog que diz que nenhum parasita se iguala ao brasileiro. Não quis saber se autor ou autora se referia ao povo daqui, ou a algum parasita nativo do Brasil, mas acho que era a primeira.

Alguém em outro grupo compartilha o poster do filme Amor Estranho Amor. Paro para olhar, é um poster interessante, cheio de elementos gráficos do cinema, de gênero, e do gênero de cinema pornochanchada da época. Mais um post patrocinado: agora masterclass de escrita com autor internacional de best-seller de fantasia.

Outro comentário sobre as eleições no Equador, da mesma pessoa. Um site feminista de língua inglesa publica um texto sobre direitos reprodutivos escrito em primeira pessoa, e o título indica que o feto tinha mais direitos do que a pessoa grávida. Mais alguém comenta o BBB. Mais alguém posta sobre um fato da própria vida. Mais um post patrocinado de universidade internacional, puramente institucional, sem call-to-action. Alguém posta uma lembrança de um ano atrás, de um Brasil pré-Covid-19. Quase choro.

Alguém posta, a partir das próprias memórias, memórias de uma banda clássica de rock. Alguém que acho ótima e só conheço das redes posta um meme ótimo sobre neandertais e bilionários. Alguém comenta o BBB. Mais post patrocinado de cursos, dessa vez de Google AdWords – sim, adwords, e me senti em 2008. Alguém reflete platitudes.

Alguém em mais um grupo dá uma dica de cachoeiras. Alguém posta sobre coisas importantes para a própria vida. Alguém posta sobre bifobia a partir do BBB. Mais um post institiucional de outra universidade internacional. Uma mulher da política nacional faz post sobre seu partido apoiar o retorno do Auxílio Emergencial. Me ocorre que nem essa nem a outra mulher política são brancas, e essa é trans. Um cartunista famoso compartilha sua mais recente sátira sobre a corrida do Bolsonaro. E aqui começam a aparecer postagens que eu já tinha visto.  

Esta é a descrição exata e comentada de um rolê pelo meu Facebook no meio da tarde da última segunda-feira. Fiz o registro no dia na tentativa de sistematizar a aparição de um assunto específico – o indefectível Big Brother Brasil  – como tópico no meu feed, para pesquisa para a gravação do episódio 6, Que ódio! do Coração na Boca, podcast do Sul 21 produzido pelo Kiko Ferraz em que eu e Camila Toledo falamos sobre aflições. Você pode ouvir aqui[JB1] . Guardei pelo registro do que recebo tendo em vista que há muito me parece importante debater o fato de que cada um de nós recebe muitas informações de forma não apenas profusa e rápida nas redes sociais, mas personalizada.

Sustentamos conversas nas redes sociais a partir de fragmentos compartilhados à distância e individualmente em plataformas que, elas mesmas, e com nossa ajuda, criam universos infinitamente particulares para cada um de nós. Ainda que exista um assunto ao redor do qual objetivamente exista mais assunto em um determinado período de tempo – e o BBB tende a ser um dos produtos culturais cuja veiculação causa que ele seja o assunto, e as mídias e as redes sociais garantem suas múltiplas interpretações e reverberações – não podemos não ter consciência constante de que cada um de nós continua recebendo conteúdos a partir da leitura que o algoritmo faz das nossas escolhas, fazendo com que em cada um de nós chegue o que venho chamando de “discurso personalité”.

E tem mais. Ontem encontrei uma matéria que foi publicada aos 17 de janeiro deste ano no Wall Street Journal, assinada pela repórter de tecnologia da casa, Joanna Stern, chamada Social-Media Algorithms Rule How We See the World. Good Luck Trying to Stop Them, que traduzo para Os algoritmos das redes sociais regem como vemos o mundo. Boa sorte ao tentar impedi-los”; link para o artigo original. Stern abre a reportagem sinalizando ser difícil identificar exatamente o momento em que perdemos o controle do que vemos, lemos e até o que pensamos para as maiores empresas de mídia social, mas aponta para 2016, ano em que Twitter e Instagram se juntaram ao Facebook e YouTube no que ela chama de “futuro algorítmico”. Em outros termos, isso aconteceu no momento em que a rolagem dos nossos feeds mudou de temporal para personalizada, num espaço de redes sociais então já “governado por robôs programados para manter nossa atenção o maior tempo possível”.

Ela mesma reconhece que podemos pensar que isso não é grande coisa. Mas é. Esta mudança algorítmica significou a maximização do alcance daquilo que tem potencial incendiário, do que nos pega não pelas histórias do que aconteceu na realidade do mundo dos nossos familiares e conhecidos ou mesmo das notícias, mas pelo gancho forte das emoções. E como se não bastasse, a distribuição desse conteúdo nas redes sociais se dá, em peso suficientemente crítico para valer o alerta, por meio de desinformação e teorias da conspiração.

As redes hoje operam como um funil para dentro de espaços discursivos em que “(a)s pessoas veem as coisas que mais as atraem, elas clicam, lêem, assistem, caem em tocas de coelho que reforçam seus pensamentos e ideias, elas se conectam com pessoas com ideias semelhantes. Eles acabam em sua própria versão personalizada da realidade.”

Os robôs e algoritmos são frequentemente apontados como culpados por este estado de coisas, mas Stern lembra que o silenciamento recente das contas do ex-presidente Donald Trump no Facebook e no Twitter revelaram o oposto – e penso que forma muito explícita: são pessoas que comandam estas empresas, e decidem sobre seus rumos.

Isso ressoa o que Carole Cadwalladr (jornalista investigativa e autora britânica finalista do Prêmio Pulitzer de 2019 por sua cobertura do caso Cambridge Analytica) fez em seu TED Talk de abril de 2019, O papel do Facebook no Brexit e a ameaça à democracia, falando para os “deuses do Vale do Silício” que  suas tecnologias são incríveis, porém hoje sabe-se também que são “a cena de um crime”.  Cadwalladr finaliza chamando-os nominalmente (“Mark Zuckerberg, Sheryl Sandberg, Larry Page, Sergey Brin, Jack Dorsey, seus funcionários e investidores”) para a responsabilidade por danos à Democracia, permitidos por suas redes pela difusão, de forma personalizada, de narrativas falsas e/ou inflamadas, contornando legislações eleitorais nos países onde operam durante processos democráticos.

A pesquisadora feminista Dani Marino, ao se referir ao conceito de liberdade de expressão em seu perfil de Facebook, lembra que “nenhuma constituição do mundo ampara discurso de ódio, mas algumas possuem limites bem mais elásticos que outras em relação ao que se define como discurso de ódio. Quase nenhuma dessas constituições leva em conta o alcance das redes sociais, o que acarreta uma série de problemas em relação à interpretação de certos atos.”

Joanna Stern termina seu artigo em comiseração, sabendo que infelizmente não cabe a nós decidir se cada vez mais os algoritmos que atendem às demandas financeiras das grandes empresas de tecnologia e comunicação continuarão a informar nossas visões de mundo deste jeito altamente individualizado e inflamatório. Mas o comércio de ódio privê parece estar em alta, e vale estarmos atentas ao valor dos nossos engajamentos e mobilização.


*Joanna Burigo é mestre em Gênero, Mídia e Cultura (LSE), coordenadora Pedagógica da Emancipa Mulher e conselheira editorial do Portal Catarinas. 

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    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

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