Por Carmen Lúcia Luiz*

Outro dia, falava para um grupo de pessoas sobre a política de saúde LGBT do SUS, recentemente aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde, e uma pessoa perguntou: “Inseminação assistida para lésbicas? E lésbicas querem ser mães? Elas não querem ser homens?”. Numa outra situação, um rapaz me disse: “Eu acho que travesti é um gay que saiu do armário e se mostra do jeito que é mesmo”. Ou seja, na cabeça dele, os gays sonham ser mulheres e as lésbicas sonham ser homens, porque na cabeça dele só existem mulheres para desejar homens e homens para desejar mulheres. Então, num par de pessoas do mesmo sexo, um pólo tem que fazer o papel social esperado de um homem e o outro pólo, o papel da mulher, porque é muito difícil para a maioria das pessoas pensarem fora da lógica binária.

Quando nos referimos a pessoas LGBT não estamos necessariamente nos referindo a pessoas homossexuais. Neste grupo de pessoas apontadas nestas letrinhas, são homossexuais aprioristicamente só as mulheres L (lésbicas) e os homens G (gays). As pessoas que compõem a letra B, tanto homens quanto mulheres, não são homossexuais, pois, como o próprio nome diz, são bissexuais. As pessoas reunidas na letra T, que engloba mulheres travestis, mulheres transexuais e trans-homens, são em grande parte, pessoas que assumem orientação sexual heterossexual. Algumas poucas pessoas T são lésbicas e gays.

Então, podemos dizer, sem medo de errar, que não é a homossexualidade que aglutina essa que chamamos de população LGBT. Temos pensado que o que aglutina estas pessoas é o sofrimento, em vários níveis dessas existências, causado pelo preconceito e pela discriminação. Portanto, da maior importância para a equidade de direitos das pessoas LGBT, é o enfrentamento do preconceito e da discriminação que tem sido buscado, entre outras formas, através da criminalização da homofobia (ódio aos homossexuais). Porém, o enfrentamento da homofobia não compreende o enfrentamento do preconceito contra pessoas que tem identidade de gênero T e orientação sexual heterossexual. Então, temos usado um neologismo, que amplia o conceito deste enfrentamento, que é a palavra LGBTfobia. Talvez não rime tão bem, quando transformada em palavras de ordem, mas explicita melhor esta ideia de ódio a todas as pessoas  LGBT e não só a aquelas que são homossexuais.

Muitas são as linhas teóricas de pensamento que definem o feminismo e as estratégias para alcançá-lo. Algumas linhas incluem somente mulheres, outras linhas acham possível haver homens feministas. Outras ainda só incluem “mulheres de verdade” ou seja, não entendem mulheres transexuais nem travestis como verdadeiras mulheres… Quem são as verdadeiras mulheres? Existe a verdadeira mulher? Monique Wittig dizia, há quase 50 anos atrás, que lésbicas não são mulheres, pois segundo ela ser mulher é depender econômica, social, política e/ou ideologicamente de um homem. Ou seja, se mulher é uma categoria relacional, se só existe em relação ao homem, e se lésbicas não vivem esta relação, não são mulheres. Para entender Wittig, temos que aceitar o termo mulher como uma categoria social e não como sinônimo de fêmea da espécie humana.

Teorias à parte, o que posso dizer é que na minha experiência de vida, como nas de quase todas as lésbicas, vivi muitas situações de preconceito. Nunca vivi situações-limite, com risco de agravos importantes. Na maior parte, foram situações de preconceito velado, muito sutil, por parte tanto de homens quanto de mulheres, feministas ou não. E preconceito, velado ou não, sutil ou escancarado, traz muito sofrimento para quem o sofre. Baixa a auto-estima, produz sofrimentos físicos e mentais, podendo se transformar em doença e até causa de morte.

A Convenção Interamericana contra o Racismo e todas as formas de Discriminação e Intolerância diz que ‘Esta sociedade que ainda penaliza a expressão da lesbianidade, da travestilidade, da transexualidade, da bissexualidade e da homossexualidade masculina com atos preconceituosos e discriminatórios favorece que atores privados e públicos realizem atos de violência física e mental, intimidações, brutalidades e outras formas de violação aos direitos humanos.’ São os jovens negros os que mais morrem de alguma forma de morte violenta. A cada dois dias uma pessoa LGBT é assassinada no Brasil. Lésbicas sofrem violência sexual por parte de parentes próximos para aprender que homem é bom. Poderia ficar desfilando manchetes deste tipo, são muitas e várias, o que significa que os nossos desafios são muitos e se localizam em muitas frentes.

Em relação às travestis, não podemos dizer com certeza qual é o tamanho da travestifobia, pois a maioria é dada como homem pelos serviços de segurança pública. O mesmo em relação às mulheres transexuais que não completaram o processo transexualizador, ou seja, não fizeram a transgenitalização. Também estas são anotadas como homem na maioria das delegacias de polícia. Mais vulnerabilidades ainda se agregam se for uma lésbica negra, de periferia, com baixa escolaridade. Então, é tarefa importante manter estas pessoas na escola, com capacitação para o trabalho e com acesso a projetos de geração de emprego e renda.

O movimento feminista questiona o papel das mulheres na sociedade e cria estratégias para a ampliação dos seus direitos. Uma estratégia importante é incluir os homens na construção da equidade entre mulheres e homens. Os homens precisam compreender seu papel social e histórico na construção das iniquidades, precisam debater sobre as diversas formas de exercício da masculinidade, sobre seus privilégios. Difícil abrir mão de privilégios, então precisamos fazer este debate com meninos e meninas, desde idade tenra. Temos que enfrentar esta questão tão atual da retirada da palavra gênero dos planos de educação de muitos estados e municípios e debater a construção das masculinidades e feminilidades, geração de violência e diversidade sexual.

Quando se fala de feminismo, temos que pensar que nem todo movimento de mulheres é feminista. Elas podem se associar para lutar por uma causa em comum que nada tem a ver com mulheres, ou que não interfira nos direitos das mulheres especificamente. Essas mulheres também precisam ser foco da nossa atenção. Querer ser livre é também querer livres os outros, disse Simone de Beauvoir. Então, queremos livres as mulheres feministas e não feministas, as mulheres cis e as mulheres trans. Acho que um grande desafio do feminismo na atualidade é a interseccionalidade. Uma destas questões é a incorporação das mulheres transexuais como possíveis feministas. Algumas não serão, como muitas mulheres cis não são. Mas muitas serão feministas, se se sentirem acolhidas pelo movimento.

Sendo o tema da livre orientação sexual de tão recente debate para a nossa sociedade, inclusive para dentro do próprio Movimento LGBT, muitas das demandas ainda estão sendo focalizadas. Enquanto a sociedade não compreender quem são estas pessoas LGBT, não daremos conta de acabar com o preconceito e com a discriminação, que proporcionam diferentes formas de adoecimento e morte, conforme o Ministério da Saúde afirma em documento da Área Técnica de Saúde da Mulher.

É urgente que a política de saúde para pessoas LGBT seja totalmente incorporada pela Área Técnica de Saúde da Mulher e pelo Programa de Saúde do Homem, entre outras áreas do Ministério da Saúde para atender as nossas necessidades específicas. Ainda há também – nosso grande desafio – a necessidade de pactuação entre Ministério da Saúde, Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde para a descentralização das ações em saúde da população LGBT. Num plano mais geral, é fundamental a elaboração de leis que protejam as pessoas em relação à expressão de suas orientações sexuais e identidade de gênero e o cumprimento do princípio de laicidade do Estado, nas práticas e políticas de suas instituições.

Para nós que atuamos no movimento social, a linha teórica deve servir para orientar nossa prática. E a nossa busca é pela emancipação dos seres humanos, sejam homens, mulheres, intersexuais, pessoas não binárias, com identidade fluída ou qualquer outra identidade que a pessoa proclame. Para tornar possível o mundo que queremos, nossa atuação precisa ser interseccional e precisamos ter foco na diversidade humana nos seus vários níveis de existência.

E para finalizar, quero deixar nos corações e mentes estes versos antigos de Bertolt Brecht, mas que continuam sempre atuais: ‘Não digam nunca: isto é natural. A fim de que nada passe como imutável.’

 

*Conselheira nacional de saúde pela UBM – União Brasileira de Mulheres, fundadora e ex-integrante da Liga Brasileira de Lésbicas e diretora de saúde da União Nacional LGBT – UNALGBT. Artigo produzido com base nas intervenções realizadas na Ciranda das Mulheres, evento do Fórum Social Mundial Temático realizado em Porto Alegre (21/01/2016;) e na mesa “Garantia de acesso universal em Saúde Mental: enfrentamento das desigualdades e iniqüidades em relação à raça/etnia, gênero, orientação sexual e identidade de gênero”, na IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial.

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