“Não vejo nosso afeto como uma obra do destino. É uma construção baseada na real disponibilidade de me relacionar com a verdade de quem eu sou e de quem ela é. De forma mútua. Teve muito suor, conversa, abertura e superação pra que hoje esse afeto possa se manifestar de uma forma livre, nutridora e autêntica. Entre nós, nosso afeto me relembra de que eu sou amável. Que posso e mereço ser amada por uma outra pessoa que me respeita tal qual eu sou”.

O relato e imagem integram o projeto fotográfico artístico  “Afet@ – Como o afeto te afeta?” que retrata casais apaixonados LGBTs, em nu artístico na natureza. Cada imagem é acompanhada de um depoimento dos casais sobre sua afetividade e os efeitos e reflexos dela em suas vidas. De autoria da fotógrafa e artivista, Melissa Maurer, o projeto teve início em junho, em alusão ao Dia Internacional do Orgulho LGBT, e encerra em agosto, para comemorar o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica*, 29. As fotos continuarão a ser postadas nas redes sociais da fotógrafa até a primeira semana de setembro de 2018.

De junho a agosto deste ano, passaram pelas lentes de Melissa, em Alto Paraíso de Goiás – Chapada dos Veadeiros, casais que entraram em contato com a fotógrafa após o lançamento de uma chamada pública nas redes sociais. Mais de 40 casais de todo país manifestaram interesse em participar da ação.

“No dia das namoradas, fiquei refletindo sobre as homenagens….Estou apaixonada… Pensei em como poderia falar da temática”, disse a autora sobre a motivação em realizar o ensaio.

As publicações de fotos e depoimentos nas redes sociais – Facebook e Instagram –, feitos com casais de corporalidades e expressões diversas do gênero, renderam vários bloqueios e exclusão de fotos da fotógrafa, tendo por alegação que suas publicações violam os “Padrões da Comunidade sobre nudez ou atividade sexual, (…) porque alguns públicos são sensíveis a diferentes questões em relação à nudez.”

Mesmo com o domínio das regras e padrões das redes sociais (como ocultação completa dos mamilos femininos e órgãos sexuais) dada à sua experiência em vários projetos fotográficos que desenvolve com a nudez há anos, Melissa não conseguiu impedir os bloqueios. Isso porque, como a autora acredita, além de uma nudez “quase coberta”, o projeto “desnuda afetos que não são heteronormativos”.

“A censura recai sobre a felicidade das pessoas que demonstram a plenitude e a integralidade do ser fora dos padrões que nos obrigam seguir e viver. Isso contradiz a diversidade humana, a democracia e, ainda mais, o amor”, avalia Melissa.

Questionando os padrões aceitos socialmente como “normais e respeitáveis”, o projeto põe em foco a auto-aceitação, a conexão com a natureza, a visibilidade da pluralidade, a (des) naturalização e descolonização de corpos e afetos, questões relacionadas à cidadania, democracia e ao amor. Os depoimentos trazem desde narrativas poéticas e apaixonadas sobre a descoberta e vivência da afetividade até relatos de violência por parte de familiares, amigos, nos âmbitos profissional e religioso, entre outros.

“Como o afeto te afeta? traz, por meio do olhar da fotógrafa e dos depoimentos dos casais fotografados, sementes e frutos de processos históricos e socioculturais de (des)naturalização das sexualidades e afetividades que envolvem e afetam essas pessoas e, de modo geral, comunidades sexo-diversas”,  afirma Priscila Marília Martins, Mestra em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e namorada de Melissa Maurer.

Confira algumas obras que retratam a visibilidade lésbica:

“Amar é algo que requer coragem pra mergulhar numa infinitude de sentimentos complexos e profundos seus e de um outro ser. Inicialmente tive muita dificuldade de viver meu amor com a minha companheira por questões pessoais e sociais. Essas dificuldades estavam muito ligadas a um medo do desconhecido e de me entregar a ele. Apesar disso, minha sintonia com ela era inegável, parece até que já nos conhecíamos de outras vidas. Então, com o tempo, essa sintonia foi se tornando mais forte, e a partir daí só me vinha a vontade de mergulhar nessa relação; assim o fiz. Hoje vejo que fazer o que nosso coração deseja alimenta nossa alma, preenche nossa essência. Logo, ter escolhido ficar ao lado dela me deu exatamente essa sensação; me sinto em paz e feliz demais nessa relação, ela me acalma, me ensina e me acolhe quando preciso. A sensibilidade da minha namorada torna tudo suave. É incrível como evoluímos juntas e lutamos pra estar juntas todos os dias em meio ao caos de preconceitos. No fim, a gente se segura e assim ficamos firmes lado a lado enquanto esse for o desejo do nosso coração (espero que esse desejo perdure e que seja sempre da forma que é: lindo e doce.”

 

“Sinto que ao nosso redor muitas pessoas enxergam nosso amor no nosso olhar, cuidar e carinhar uma a outra. Como sou bissexual, já estava muito habituada a compartilhar meu afeto em público por conta das minhas relações hétero. Isso pra mim nunca tinha sido um problema ou uma questão, e assim agi com minha companheira desde o início. Demorei pra perceber o quanto isso afetava pessoas ao meu redor, até porque tive a sorte de ter um círculo que lidou muito bem com essa descoberta da minha sexualidade. Mas aos poucos fui percebendo olhares de reprovação por estarmos no meio do shopping ou da rua sem qualquer vergonha ou pudor de andar de mãos dadas, nos abraçar ou trocar carinhos como casais hétero fazem. Esse afeto, além de ser nossa construção e direito, também é meu protesto e forma de resistência. Nem sempre consciente, mas sempre legítimo por ser o nosso amor se expressando da sua forma única.”

 

“Meu filho sempre me pediu um irmão… disse pra ele que eu não planejava mais ter outro filho. Ele demorou, mas aceitou. Comecei, há três anos atrás, pela primeira vez, a me relacionar com outra mulher. Preocupada em como ele processaria a informação, eu resolvi contar só quando ele viesse me perguntar. Com 5 anos de idade, meu filho percebeu que minha demonstração de afeto por ela era diferente que pelas outras pessoas. Ele me perguntou “você beija ela na boca?” Eu disse “sim”. Ele perguntou ‘então vocês são namoradas?’ Eu, preocupada, disse que sim. E ele, bem genuinamente, disse “então deu certo! Você não queria mais ter filhos mesmo…! Imagino que a preocupação dele era como poderia dar certo pra mim… se certificou de que meus planos se encaixariam! Muito bom perceber a aceitação da criança, ainda não contaminada pelo olhar preconceituoso da sociedade. Tão simples.”

 

“Amar e aceitar o seu par, a sua semelhante, é se amar e se aceitar… o que antes em mim parecia feio ou incorreto é hoje o que tenho de mais bonito. Esse é um ato de reivindicar o amar livre. Sem a roupa pesada que não queremos mais vestir… nos despir de construções sociais que não nos cabem mais. Seremos nossos afetos! Inteiras! Se esse afeto te afeta, pense, inspire-se e se deixe afetar. O julgamento não cabe nesse espaço. É muito além do que sua crença pode querer mostrar. Então afete-se com esse lugar de amor e de carinho, da livre escolha.”

 

“Eu me sinto fortalecida com todo o amor e carinho que ela me dá. Ao lado dela passei a me enxergar de outra maneira, descobri e reconheci qualidades em mim que antes eu não as via assim ou não as aceitava. Com o afeto que desenvolvemos juntas eu enxergo um mundo mais leve, criativo, colorido e verdadeiro…me vejo ser possível existir nele, eu me aceito.”

 

“Acredito que o amor, assim como o riso, é contagioso. O afeto tem o poder de sequestrar atenções alheias quando deixamos que ele grite, cante e rodopie aos quatro ventos. Por vezes pessoas das mais diversas vieram nos contar como se sentem ao perceber a atmosfera que nos cerca. No simples existir de duas pessoas que se amam e que deixam que isso transborde e se manifeste do jeito que quiser – seja num cuidado, numa gentileza, num carinho, num andar de mãos dadas na rua. Em teoria isso não precisaria acontecer. Deveria ser algo corriqueiro. O amor deveria ocupar todas as esquinas da gente e do mundo que nos cerca. Há poesia no entremeio dos (re)encontros que acontecem nessa vida: seus afetos são a prova cabal disso. É o amor em sua mais pura e autêntica manifestação.”

* Em 1996, no Rio de Janeiro, o I Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE) instituiu o 29 de agosto como o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica.  A partir da ação, o SENALE  cria um marco demarcatório das lutas das mulheres lésbicas no Brasil.

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