Por Yara Peres Colaboradora
No período da pandemia, até agosto, dois estados do Nordeste tiveram aumento no número de feminicídios: Maranhão e Piauí.
Esta matéria, da Eco Nordeste, trata dos constrangimentos e ameaças às mulheres que estão na linha de frente do combate à violência contra a mulher nos dois estados e faz parte do Projeto ‘Um vírus e duas guerras’, parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, AzMina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo.
Dentre tantas pessoas que atuam na linha de frente na defesa dos direitos de mulheres vítimas de violência, estão outras mulheres. Advogadas, promotoras ou líderes de organizações não-governamentais também ficam vulneráveis a situações de constrangimento por parte dos acusados. Sim, isso é mais comum do que se imagina. Todavia, a quem essas mulheres podem recorrer em situações pela qual estão em defesa? Vamos acompanhar a história de duas delas que, em comum com as vítimas que defendiam, compartilhavam não apenas o temor pelo mesmo agressor, mas também, as dores pelo simples fato de serem mulheres.
A promotora de justiça do Piauí Têmis* nos conta que, apesar de histórias cruéis de violência que acompanha diariamente, vivenciar situações de desmoralização associada ao gênero é algo bem dolorido. “Um agressor respondia processo por violência doméstica na promotoria que eu estava. A ex-mulher dele foi ameaçada, sofria agressão física e pedi uma medida protetiva para ela, mas ele estava descumprindo. Daí eu fiz um pedido de prisão por descumprimento da medida protetiva. Ele foi pessoalmente à porta do fórum e colocou um avental branco escrito que minha petição não tinha fundamentação legal. Eu não estava no fórum, mas tomei conhecimento e uma amiga tirou uma fotografia do ocorrido”.
O fato surpreendeu a promotora, tendo em vista que os protestos, de um modo geral, são feitos com cartazes ou manifestações pacíficas por uma das partes que discordam das decisões judiciais. “Isso me chocou muito. Me senti pela primeira vez, como mulher, desqualificada. Ele insinuou que não tinha condições de ser promotora de justiça e que meu lugar era na cozinha, por isso foi de avental. A cozinha é um lugar digno! Mas, para aquele homem machista, o lugar da mulher é única e exclusivamente na cozinha. Isso é inadmissível. A mulher pode estar onde ela quiser!”, declara.
Para ela, a atitude foi um ato intencional de violência misógina. “Fiquei muito desestruturada, mas superei rápido essa situação. Eu acho que ele me atacava porque achava que eu não deveria processá-lo e não aceitava o fato de eu ser mulher. Todos os relacionamentos dele estavam na Lei Maria da Penha”.
O acusado, segundo Têmis, já é conhecido no Estado por ser uma pessoa extremamente violenta. Além de responder por tentativa de feminicídio, ao entrar num hospital para tentar matar uma de suas ex-mulheres, ele também responde por violência sexual contra os próprios filhos. Os colegas de trabalho temiam pela segurança da promotora, tendo em vista o currículo agressivo do acusado. “Todos estavam com receio pela vida dessa última companheira dele e também porque ele poderia atentar contra a minha integridade física. Logo depois, ele foi preso, conseguiu um habeas corpus, quebrou a tornozeleira e está foragido. É uma sensação ruim de saber que você está ali para proteger e também está vulnerável”.
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Profissionais dessa categoria, que atuam na linha de frente, acabam por se privarem de algumas atividades sociais temerosas por sua segurança. Para Têmis, o apoio do Grupo de Segurança Institucional (GSI), órgão de defesa institucional para o cargo que exerce foi determinante. “Foi o GSI, por meio da coordenadora na época, que me protegeu e me deu o apoio necessário. Além de uma delegada que também se disponibilizou a fazer um trabalho articulado com o GSI”, explica.
Apesar do caso sofrido por Têmis ter sido praticado por um homem de classe média baixa, ela relata que as situações mais vexatórias são àquelas em que pessoas com poder econômico elevado estão envolvidas. “Essas pessoas se acham acima da lei. Isso é em qualquer âmbito da nossa área e a violência doméstica não fica de fora e não escolhe classe social. Muitas pessoas ricas respondem por isso e tentam nos atacar com representação no Ministério Público (MP) para nos desestabilizar emocionalmente. Na hora da audiência a gente vê essas pessoas apenas com advogados homens na sua defesa. Eu nunca vi nenhuma mulher defendendo esse tipo de processo. Alguns tipos de homens que se prestam a isso…”, comenta.
A representação judicial por parte dos acusados contra defensoras da mulher parece ser uma atitude comum e intencional para inibi-las e tirar o foco do processo. Para a diretora da Casa da Mulher Brasileira no Maranhão, Susan Lucena, acostumada a acompanhar processos envolvendo atos de violência no seu dia-a-dia, ser envolvida em um desses casos foi desestruturante.
“Estou sendo processada por crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação) de forma genérica pela família de um homem que cometeu feminicídio. Apenas dei entrevista falando questões técnicas e corroboram na minha fala as diretrizes nacionais de feminicídio construída pela ONU Mulheres”, explica.
Ainda segundo Susan, atitudes de intimidação fortalecem o sentimento de injustiça em casos evidentes de dolo: “No Maranhão, foi criado o Instituto de Genética Forense, que é muito importante para a elucidação de crimes porque ele encontra o material genético, identifica e constrói uma prova sólida para elucidar crimes que aconteceram. Sempre falo sobre isso. A intimidação é uma forma de nos calar para não incentivar a sociedade a punir o culpado”.
Durante a pandemia, os profissionais públicos do Ministério Público exerceram atividades remotas e audiências por videoconferências, tendo em vista as medidas de segurança contra a contaminação. Ainda assim, alguns defensores relatam receber postagens de intimidação por meio das redes sociais.
Mais feminicídios na pandemia
O Maranhão e o Piauí foram os únicos estados do Nordeste a registrarem aumento no número de feminicídios durante a pandemia em comparação a igual período do ano passado, até o mês de agosto, período levantado por este especial que envolve sete mídias independentes do Brasil, Amazônia Real, AzMina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo. No caso do Maranhão, foram 31 feminicídios de março a agosto de 2020 em contraposição a 28 em igual período de 2019, uma elevação de 11%.
* Nome fictício para preservar a identidade da vítima.
A série Um Vírus e Duas Guerras vai monitorar até o final de 2020 os casos de feminicídio e de violência doméstica no período da pandemia. O objetivo é visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. Parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, AzMina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo.