“No tempo das catástrofes – resistir à barbárie que se aproxima”, título do livro de Isabelle Stengers, que chega ao Brasil em 2015, escrito durante a crise de 2008, momento em que o colapso financeiro estava em curso. A autora afirma que não sabe como estará a situação quando seu livro chegar às mãos dos leitores. Sem prever, estamos em outra crise. Em meados de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou a situação de pandemia da doença designada como Covid-19, causada por um novo tipo de vírus. O SARS-CoV-2 (Severe Acute Respiratory Syndrome) é um tipo de coronavírus (CoV) que ficou conhecido por causar a doença Covid-19, que tem nos acometido nos tempos atuais.
A pandemia, termo que leva em consideração à distribuição geográfica de uma doença, gerou uma crise internacional, que ressoa nos setores da saúde, sociais, ambientais, políticos, econômicos e, subjetivos. As pandemias são o combustível para pensarmos em catástrofes como a extinção da espécie humana no planeta. Stengers, ao relatar a crise financeira, assolada pelos subprimes, deixa questões que podemos tencionar ao momento atual, o do novo coronavírus. A autora realiza algumas reflexões a respeito de um mundo que se tornou “global” e suas consequências e que serve para pensarmos a crise pela qual estamos passando.
Talvez estejamos em suspenso por conta da avalanche de inquietações que o vírus, essa entidade controversa em si mesma quanto a ser ou não uma forma de vida, a Covid-19, nos impeliu a vivenciar. Em qual circunstância imaginaríamos o que poderia frear a economia? Quais eram nossas apostas do que balançaria o capitalismo? Em qual momento na história vivenciaríamos um cenário de empatia comum para com as vidas em detrimento do sufocamento econômico?
Em uma sociedade onde os interesses de mercado prevalecem sobre quaisquer outros, o que ou quem poderia fazer repensar os modos de vida capitalistas, e também, matar milhões de pessoas? O novo coronavírus!
Indo além da questão de que se os vírus são ou não seres vivos, os primeiros coronavírus humanos foram isolados em 1937, e em 1965 ele foi nomeado. Seu nome advém, da observação microscópica de sua estrutura, semelhante a uma coroa (do latim – o vírus como símbolo de disputa política). De acordo com a OMS, no ano de 2002, o SARS-CoV foi transmitida por gatos selvagens para humanos na China. Já em 2012, na Arábia Saudita, MERS-CoV foi transmitida pelos dromedários para humanos. A essa transmissão de uma espécie animal, não-humano, para humano, denomina-se spillover. Os primeiros casos, desse vírus zoonótico, aconteceram por volta de dezembro de 2019, em um mercado de frutos do mar e animais vivos na cidade de Wuhan, na China. A doença causada pelo SARS-CoV-2 foi chamada de COVID-19, uma sigla que vem do inglês Corona Virus Desease, no ano de 2019.
Levando em consideração que o novo coronavírus ataca o sistema respiratório, não seria esse o exemplo para se pensar na intrusão à Gaia* que tem os humanos como intrusos?
Vivemos tempos de incertezas e ambiguidades em muitas áreas, como pungente, na ciência. De um lado, líderes mundiais – se é que podemos chamá-los de líderes – de forma rasa, superficial e tola informam suas nações de forma néscia, demonstrando a carência de uma alfabetização científica. Vimos Trump e suas propostas de injeções de desinfetante e luz solar, Bolsonaro em seu porte atlético enfrentando uma gripezinha e sua desatenção em frisar que quem tem mais chances de ser acometido pelo vírus são idosos e doentes, portanto o Brasil não pode parar. Neste cenário também temos a cloroquina como uma histeria de salvação, que apresenta, ainda, poucos estudos e resultados científicos, que pode gerar efeitos colaterais graves.
Tolice ou necropolítica? Como lembra Stengers, a tolice se apodera daqueles que o poder – capitalismo, faz assumir a responsabilidade em manter a ordem pública, ou seja, a tolice é também, uma forma de fazer política. E essa tolice deve promover nossa repulsa.
Sem contar os descasos com a quarentena em prol de um “desenvolvimento econômico”. E talvez a palavra desenvolvimento e ainda, “flexibilização” – dos direitos trabalhistas, da vida, de Gaia – sejam o mantra dos neoliberalistas, os desprovidos de empatia, que desfilam de dentro de seus carros pedindo abertura do comércio. Empresto da autora o termo de “pânico frio”, a esta atitude de colocar o consumo como dependente do crescimento, transvestido muitas vezes até, de uma pegada ecológica. E de outro lado, temos as universidades, com suas pós-graduações, os institutos e fundações, como o Butantã e a Fiocruz, e a comunidade científica mundial, coletivamente, desenvolvendo estudos numa velocidade nunca antes experimentada pela ciência, na busca por fármacos que tratem/curem os enfermos do novo coronavírus.
Vale o adendo de que vivemos uma espécie de crise desde o primeiro dia de janeiro de 2019, quando um governo de extrema direita toma posse e que, em 2020, desestruturado e fragmentado, ressoa no modo como lida com a pandemia.
Para além de pensar a ciência nesse contexto de catástrofe, podemos pensar também nas crises ambientais, sociais e subjetivas. Sociais, pois estamos experimentando outras problemáticas, como desempregos, dilatação das desigualdades sociais, empregos informais e precarização dos meios de trabalho (vide trabalhadoras e trabalhadores autônomos de aplicativos de delivery), bem como em modos de nos relacionar; e subjetivas, porque essas questões reverberam em nossos corpos e mentes. A abrangência e o estrago dessas reverberações estão produzindo mazelas que podem instaurar diversas patologias psicológicas, desencadeadas pela ansiedade, pânico, depressão, medo e do próprio isolamento social e distanciamento com entes queridos.
Sabemos que o vírus não escolhe condição financeira de quem será afetado. Em contraponto, tem-se o coronavírus dos ricos e dos pobres. Há aqueles núcleos familiares que possuem um espaço físico para isolamento e condições de sustento para tal, e há as famílias que vivem juntas em um mesmo cômodo, com condições precarizadas de acesso à saúde. E são os mais ricos que estão forçando as manifestações contra o isolamento, ou seja, contra uma das únicas formas de proteger as vidas humanas. O vírus poderia vir a ser democrático caso vivêssemos em uma democracia social, racial e de gênero.
Uma das enxurradas das questões que assolam a mente é, como resistir à barbárie instaurada junto à Covid-19?
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Para tatear alguma possível resposta, podemos pensar nos povos que sempre lidaram com vírus, pandemias e fins de mundo: os povos autóctones, antigos, originários, aborígenes, indígenas, ou seja, aqueles que habitavam a Terra muito antes da colonização (leia-se exploração) por outros povos.
“Talvez nós sejamos a peste”, é o que Ailton Krenak, liderança indígena, diz em uma entrevista ao Intercept Brasil. A Covid-19 ataca o sistema respiratório, a capacidade de respirar, usamos máscaras na face, velamos parte do corpo para diminuir as chances de sermos contaminados. De forma lúcida e visceral, Krenak afirma que a Terra é um organismo vivo, e que a Covid-19 é uma resposta de Gaia, a mãe terra, aos modos de vida dopados do consumismo – poluições das mais diversas formas, envenenamento por agrotóxicos, esgotamento de fontes naturais, extrativismo descontrolado, consumo excessivo de carne – e tudo que adoece o organismo vivo que é Gaia. Os atuais adoecimentos dos humanos, como a dengue, a gripe H1N1, a chikungunya, a zika vírus, sarampo, e também o novo coronavírus, talvez sejam uma resposta de Gaia pela intrusão. Ele lembra ainda que a teoria ou hipótese de Gaia é para os incrédulos, para explicar a realidade que não se enxerga.
Assumindo a posição de incrédulos, podemos refletir junto à Stengers, e propor criar uma resposta à intrusão de Gaia.
A resposta indica que não podemos mais conceber Gaia como fonte inesgotável de recursos naturais. As formas de vida, humanos e não-humanos, formam o sistema Terra de modo interdependente. Ou seja, da simbiose entre seres bióticos e abióticos – os vírus se situam na fronteira, em uma espécie de “limbo” – que influem no ambiente e também sofrem influência.
A bióloga Lyn Margulis, junto a James Lovelock, propõe a Hipótese de Gaia, Gaia – a Terra como um sistema complexo que se auto regula. Há algumas controversas em torno da teoria que constituem alguns paradigmas científicos contemporâneos. Porém, segundo essa hipótese, a Terra é vista como um organismo vivo, em que toda matéria viva é responsável pela manutenção do planeta, em termos da composição atmosférica, manutenção da temperatura e das condições para existência de vida.
Gaia está asfixiada frente às comodidades e vaidades do consumo, do “crescimento”, do “desenvolvimento”, da globalização, do mercado, metafísicas que possuem uma realidade: extração e consumo de fontes não renováveis de energia, problemas ambientais causados pelo extrativismo, oceanos e ilhas de plásticos, gases poluentes como o CO2, agrotóxicos, a quantidade de radiações eletromagnéticas oriundas dos aparelhos eletrônicos, e problemáticas de cunho histórico e social.
Tememos uma entidade invisível, a Covid-19, no limbo do que se entende por ser vivo. Se o rigor com que Gaia responde às nossas intrusões não nos causa espanto, é porque confiamos cegamente na tolice com que a subjetividade capitalista nos captura. Essas intrusões possuem alguma reciprocidade ao conceito de Antropoceno, a era geológica em que os seres humanos provocaram transformações na estrutura física – química da Terra, que não por acaso, está relacionada aos processos de ocidentalização, colonização, globalização e captura capitalista. É necessário então, reinventar-se na era do Antropoceno, ou como sugere Donna Haraway, que prefere denominá-lo de Capitaloceno, para evitar que o homem volte a ser o centro da problemática. Ou ainda, de Chthuluceno, em referência aos deuses que tinham relação com a Terra, como Gaia e Medusa.
Como a pandemia irá terminar? Como lidar com os modos de vida no Chthuluceno? Não sabemos, temos o exemplo da China, que por meio da vigilância digital, controla corpos – e dados dos usuários, na tentativa de mitigar contaminações. Vale lembrar que Haraway em seu livro “Manifesto ao Cyborgue” já havia nos alertado que não há separação da máquina com o orgânico. É o que observamos nessa quarta revolução industrial: a tecnologia está em simbiose com o orgânico. Ou, talvez então, esperemos a criação de vacinas (que levam um ano a um ano e meio entre estudo de testes e efeitos) ou melhorar o sistema imunológico dos humanos e de Gaia.
Enquanto isso, continuamos em um baile solitário de máscaras em nossas casas, cuidando de si, do outro e de Gaia. Uma coisa é certa: devemos buscar alternativas.
Cabe a nós mulheres, ou os corpos que se encontram em devir-mulher, pensarmos em ecofeminismos, ecocríticas e cosmopolíticas. Não há soluções simples para problemáticas que envolvem um alto grau de complexidade. Podemos ainda, buscar respostas nos povos originários, ameríndios, que nos mostram outros modos do cuidado e respeito à Gaia (vide o texto da Els Lagrou “Nisun: a vingança do povo morcego e o que ele pode nos ensinar sobre o novo coronavírus”). Há também, algumas pistas, como teorizou Lynn Margulis, com o termo holobiontes, que oferece uma visão holística da complexidade biológica.
Outras receitas de bruxarias nos apresenta Isabelle Stengers, a recuperar, regenerar ou curar, uma vida que explora conexões com novas potências de agir, sentir, imaginar e pensar. A intrusão de Gaia exige que aprendamos, novamente, a ter cuidado.
Para terminar, invoco a imagem da cena do filme Matrix que Morfeu, o deus do sonho, está de frente com o agente Smith, que compara a espécie humana aos vírus, pois vamos de uma área e outra, se multiplicando até que todos os recursos naturais sejam consumidos e a única forma de sobrevivência seja migrar para outra área. Ailton Krenak, em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, também menciona algo muito semelhante, ao dizer que, ao que parece, as comunidades humanas para continuarem a existir, vivem às custas da exaustão de outras formas de vida.
Para se informar mais a respeito do novo coronavírus, uma dica é o curso EaD da Fundação Oswaldo Cruz, Fiocruz, que disponibiliza em seu endereço eletrônico um curso, gratuito, intitulado: COVID-19 Manejo da infecção causada pelo novo coronavírus.
* Gaia é personificação do planeta Terra, representada como uma figura feminina, gigantesta e poderosa.
** Bruna Fary é Professora na Educação Básica. Doutoranda e mestra pelo Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Licenciada em Química (UTFPR). Especialista em Educação & Sociedade, e Neuroaprendizagem (UNIMA). Estudante de Psicanálise pelo Instituto Gaio. Membra do Grupo de Estudo e Pesquisa do Pensamento Matemático (UEL) e membra do Ciclo de Estudos em Crítica e Clínica da Cultura (UTFPR). Acredita que ser professora implica em retirar o pensamento da inércia.