A defesa do SUS como instrumento para o acesso à saúde integral e o impacto da reforma da previdência na saúde das mulheres foram assuntos recorrentes nas intervenções do primeiro dia de atividades da 2ª Conferência Nacional de Saúde das Mulheres (2ª CNSMu) que começou ontem (17) e segue até domingo (20), em Brasília/DF.

Cerca de 1800 pessoas ocuparam o Centro de Convenções Ulysses Guimarães nesta sexta-feira (18) para debater o arco de temas concentrados no mote geral da conferência: “Desafios para a integralidade com equidade”. O conjunto de delegadas e delegados devem elaborar e votar proposta para compor a política nacional de atenção integral à saúde das mulheres.  A CNSMu mobilizou em torno de 70 mil pessoas, em todos os estados brasileiros, em processo desencadeado em março de 2016, quando aprovada a sua realização.

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31 anos após a primeira edição, realizada em 1986 sob o tema “As mulheres adoecem pelo fato de serem mulheres”, a 2ª CNSMu traz à luz problemas latentes acentuados pelas atuais políticas de recessão, como a Emenda 95/2016, que prevê corte de recursos em saúde e educação por 20 anos. Na mesa de abertura do evento, um protesto do plenário contra o governo de Michel Temer (PMDB) durante a fala do ministro da saúde, Ricardo Barros (PP) demonstrou o descontentamento diante do quadro político e das medidas do governo federal pós-impeachment.

Veja o vídeo publicado pela blogueira Conceição Lemes:

Foram centenas de conferências municipais, regionais e livres, além das etapas estaduais, estimuladas pelos quatro eixos de debates que tratam da ação do estado, vulnerabilidades, mundo do trabalho, políticas pública e participação social de forma transversal à saúde das mulheres.

Aproximadamente 1800 pessoas participam da II CNSMu. Foto: Catarinas.

Eixos temáticos estimulam o diálogo sobre saúde das mulheres

O primeiro dia de debates discutiu em mesas concomitantes os quatro eixos mobilizadores. No eixo I,  “O Papel do estado no desenvolvimento socioeconômico e ambiental e seus reflexos na vida e na saúde das mulheres”, as debatedoras trouxeram para a cena questões sobre financiamento e políticas de equidade que contemplem a diversidade das mulheres brasileiras.

Para a representante da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Marinhas do Brasil (Cofrem), Celia Regina das Neves, é preciso que o estado brasileiro atue com políticas de acesso e equidade para as mulheres extrativistas, ribeirinhas, campesinas, do campo e da floresta que produzem nesses ambientes e se responsabilizam pelo seu cuidado. “Temos muito a construir para a agenda 2030, cuidamos desse ambiente, fazemos um trabalho ambiental que não é remunerado. Pensar o meio ambiente é pensar em soberania”, reforça.

Mesa debateu o papel do estado no desenvolvimento socioeconômico e ambiental e seus reflexos na vida e na saúde das mulheres. Foto: Catarinas

A Subprocuradora da República, Ela Wiecko, também participou da mesa e trouxe elementos para se pensar o financiamento em saúde. “Os parâmetros internacionais indicam que deve haver aplicação mínima de 7% do PIB para sistemas que funcionam como o SUS, mas no Brasil, estados e municípios aplicam menos de 4%. Passamos anos tentando ampliar o orçamento, mas emendas como a 95 e a proposta de reforma da previdência demonstram o que pensa esse governo. Isso nos obrigada a pensar se todos os cidadãos serão afetados da mesma forma e se são os gastos públicos o problema. Por que não se pensa em recolher mais impostos dos ricos?”, sugere. Wiecko também aponta o impacto das medidas de recrudescimento sobre as mulheres.

“O ajuste fiscal e emendas afetaram as mulheres com mais força devido as relações de gênero”, argumenta.

O mundo do trabalho e suas conseqüências na saúde das mulheres, Eixo 2 da Conferência Nacional de Saúde das Mulheres, procurou visibilizar a condição das profissionais que prestam serviços e de usuárias. Representando as trabalhadoras da saúde, Ivete Santos Barreto, do Conselho Regional de Enfermagem, partiu da realidade da sua própria categoria para apontar a condição das mulheres que prestam atendimento aos usuários do SUS. Turnos irregulares e baixos salários são algumas das situações recorrentes para quem atua nestas funções. Para além disso, há os efeitos da precariedade material que enfrentam para desempenhar suas tarefas em consequência do sucateamento dos serviços. “Lidamos cotidianamente com o sofrimento e com os limites que impedem a resolutividade dos problemas de saúde.  Somos as primeiras a receber as reclamações e assédio dos usuários. Isso provoca uma enorme sobrecarga psíquica”, exemplificou.

Os reflexos do mundo do trabalho na saúde das mulheres. Foto: Catarinas.

Os entraves sociais enfrentados pelas mulheres negras foram sublinhados nas intervenções de Maria Conceição Silva, da União dos Negros pela Igualdade (Unegro) e da representante do Movimento Nacional de Pescadoras e Marisqueiras, Elionice Conceição Sacramento. “O capitalismo modelou a estrutura social para limitar o espaço das mulheres na sociedade, especialmente para as mulheres negras”, afirmou Maria Conceição. Elionice falou da própria história para fazer compreender a condição das mulheres quilombolas pescadoras que tantas vezes a sociedade branca ignora. “Ocupamos a beira da praia porque foi o que nos restou e hoje o capital se interessa pelo nosso espaço para os seus negócios.  Levamos nossos filhos para pescar conosco, que é uma forma de passar a eles a nossa cultura, e falam que é trabalho infantil”, exemplificou, convocando o público a avançar na solidariedade às mulheres negras.

A mesa que tratou do Eixo III, “Vulnerabilidades e equidade na vida e na saúde das mulheres, emocionou a plateia com o relato da representante da Associação Baiana de Deficientes Físicos, Luiza Câmera. Keila Simpson, presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais falou de situações individuais que representam realidade da população trans. “Sou de uma época em que travesti não ia ao médico nem à farmácia. Foi através da AIDS que fomos levadas para os serviços de saúde décadas atrás, mas mesmo hoje os médicos não entendem a nossa condição. Não compreendem quando uma trans injeta silicone por uma questão de saúde mental, de se aceitar como se sente”, relatou.

Também participaram da mesa Carmen Grilo Diniz, da faculdade de saúde pública (USP) e Margareth Arilha, do Núcleo de Estudos de População “Elza Bequó”.

O quarto eixo que baliza as discussões da 2ª CNSMu trata das “Políticas públicas para as mulheres e a participação social”. A saúde integral das mulheres, a responsabilidade do SUS para a implementação de políticas públicas com equidade e a organização do movimento de mulheres e feminista para a participação social foram pontos de destaque.

Ana Costa, do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), relembrou o movimento sanitarista que proporcionou a construção do SUS e sua forte relação com o movimento de mulheres e feminista que, naquele período, se fortalecia na pauta de saúde. “A saúde foi o tema que mobilizou e fortaleceu a luta feminista no processo de redemocratização. E não podemos falar de saúde da mulher sem falar no SUS e no conceito ampliado de saúde, articulando qualidade de vida”.

Ana também problematizou questões relativas aos direitos reprodutivos e sexuais, a partir de um debate politizador. A questão foi alvo de divergências no plenário e gerou manifestações.

“Precisamos repolitizar temas crônicos como o aborto. A ilegalidade do aborto nos reduz a uma democracia de segunda linha. Mulheres de todas as classes e religiões fazem aborto, isso é estatístico. O aborto legalizado permite o acesso aquelas que precisam. Esse é um tema de confronto com o fundamentalismo e precisamos radicalizar com ele sim”.

A manutenção de direitos sociais percorreu todas as mesas. Foto: Catarinas.

Alessandra Lunas, coordenadora nacional da Marcha das Margarida, trouxe a unidade como essencial para enfrentar a retirada de direitos. “As experiências de políticas públicas foram conquistadas com luta e nós estamos neste espaço hoje para dizer a esse governo golpista que não vamos recuar. Faço um chamado a cada uma de nós para uma luta conjunta”, propõe.

A integrante da Marcha das Mulheres Negras, Angela Martins, demonstrou, a partir de dados, de que forma o racismo impacta na saúde da população e da juventude negra.

Neste sábado, 19, os temas debatidos nas quatro mesas e as propostas construídas nas etapas locais serão esmiuçados em grupos.

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