O carnaval de 2020 nem esfriou e já gerou uma série de questões controversas, textões, rusgas, alegrias e frenesis. Acompanhei, como uma carnavalesca passiva, através das redes sociais e em conversas com as pessoas mais próximas, alguns assuntos que foram suscitando interrogações, questionamentos e inquietações que julguei necessário compartilhar, sem a menor pretensão de achar respostas, fazer juízo de valor ou esgotar o assunto. Então vamos lá!

Na atual conjuntura, onde o (des)governo bolsonarista de extrema direita promove constantes retrocessos e a perda de direitos, o cenário é cada vez mais desolador e muitos cobram da sociedade um ar de introspecção, contrição e tristeza como medida de reprovação às calamidades que nos assolam. Nesse sentido, o carnaval tornou-se um entrave: “Não é possível carnavalizar com tantos retrocessos!”, bradaram alguns.

Para o Dawsey (2005), o carnaval são momentos extraordinários, interrupções do cotidiano, onde as hierarquias e papéis sociais são suspensos.  Esse efeito carnavalizante, que promove a inversão de papéis sociais e causa a desordem da rotina, são capazes de transformar melancolia em riso.

Mais que isso, além do direito ao lazer e ao lúdico do carnaval, muitas pessoas sobrevivem, ainda que de forma precária, da economia gerada nesse período. São os trabalhadores formais e informais, terceirizados, promotores culturais, artistas, empreendedores e etc, que investem seus recursos durante todo o ano para que haja algum retorno em fevereiro.

Só quem acompanha de perto os esforços, por exemplo, das escolas de samba e dos blocos afro, que cada vez contam menos com os recursos oriundos dos patrocínios de incentivo à cultura, percebe a mobilização comunitária e o trabalho sócio-político que tais coletivos promovem em seus territórios durante o ano inteiro.

Para quem “vive do carnaval”, e agora escrevo do lugar de quem atuou em um bloco carnavalesco em Floripa (SC), fevereiro é o período de trabalho árduo, noites insone, criatividade para superar os contratempos e a falta de recursos, senso de urgência e muita paciência. Durante os outros meses do ano, há muito estudo, preparo, ensaio, planejamento, contato, mobilização e a construção cuidadosa do que será apresentado na avenida. E quando acaba o desfile/cortejo, embora haja muita alegria e felicidade pela tarefa concluída, eis que tudo (re)começa.

Nesse momento, me darei ao luxo de entender que todo o contexto acerca da origem das escolas de samba, blocos afro, afoxés e maracatus, e o protagonismo da população negra nesses espaços já é do conhecimento de todas, todes e todos. Então, não é novidade o conteúdo político e a contundente crítica social presente em seus enredos e temas de carnaval. O que vem se intensificando na “Era dos lacres e likes” e do Homo Digital Influencer é a polarização dos debates e a viralização dos discursos através dos julgamentos virtuais.

Assim, cada vez mais perdemos a capacidade do diálogo e a possibilidade de sair das dicotomias e voltar a compreender a importância de viver das/nas encruzilhadas do discurso. Do mesmo modo, o jogo das vaidades se acirra e ninguém quer ceder. Herdando a racionalidade binária do colonialismo, tradição e contemporaneidade seguem num campo de disputa, como se fossem conceitos antagônicos, e palavras duras sedimentam barreiras intransponíveis de ignorância e rivalidade promovendo o fogo amigo.

É necessário resgatar o protagonismo engajado da promiscuidade alegórica do discurso purpurinado do carnaval, que só reluz, mas pouco contribui para a luta antirracista e contra a intolerância religiosa. E, no auge da minha ingenuidade, estou inclinada a crer que esse movimento só será possível coletivamente (será?). Através do esforço humilde de saber os limites dos nossos atos e da consulta aos que nos antecederam, nossos mais velhos, recobramos a sensatez ancestral que dá sentido às escolas de samba, blocos afro, afoxés e maracatus sem que seja necessário a folclorização da fé, por exemplo.

A Mãe Stella de Oxóssi (1925 – 2018), Ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, proeminente líder religiosa, reprovava publicamente a profanação do candomblé através do uso dos trajes, ornamentos, rituais nos carnavais. Em entrevista ao jornal A Tarde (1995), respondeu a seguinte pergunta:

A TARDE: Outra posição adotada pela senhora foi o combate à profanação do culto, criticando a exploração dos trajes, ornamentos e ritmos rituais do candomblé durante o carnaval de Salvador. Por quê?

MÃE STELLA: Os espetáculos eram financiados por algumas pessoas que não tinham o mínimo conhecimento da pureza do candomblé. Estavam fora da realidade e confundiam o axé com plumas e paetês. Em 1993 voltei a defender essa posição, juntamente com representantes de outros terreiros, quando surgiu a proposta de se utilizar o tema na decoração do carnaval de Salvador (CAMPOS, 2003:57).

Recupero também os trechos da carta produzida após II Conferência Mundial da Tradição dos Orixás e Cultura (1983) por importantes lideranças religiosas:

Desde a escravidão que preto é sinônimo de pobre, ignorante, sem direito a nada a não ser saber que não tem direito; é um grande brinquedo dentro da cultura que o estigmatiza, [e] sua religião também vira brincadeira […] nos descaracterizam como religião, dando margem ao uso da mesma como coisa exótica, folclore, turismo. Que nossos netos possam se orgulhar de pertencer à religião de seus antepassados, que ser preto, negro, lhes traga de volta à África e não a escravidão.

[…] Todo o nosso esforço é por querer devolver ao culto dos orixás, à religião africana, a dignidade perdida durante a escravidão e [os] processos decorrentes da mesma: alienação cultural, social e econômica que deram margem ao folclore, ao consumo e [à] profanação da nossa religião.

Salvador, 12 de agosto de 1983

Menininha do Gantois, Ialorixá do Axé Ilê Iya Omin Iyamassé;

Stella de Oxóssi, Ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá;

Tete de Yansã, Ialorixá do Ilê Nassô Oká;

Olga de Alaketo, Ialorixá do Ilê Maroia Lage;

Nicinha do Bogum, Ialorixá do Zogodô Bogum Malê Ki-Rundo (CAMPOS, 2003).

 

Ou seja, debater o uso dos elementos das religiões de matrizes africanas nos carnavais não é novidade, mas fazê-lo saindo da dicotomia “promover versus profanar” os terreiros é um exercício complexo que mobiliza outros fatores, inclusive reconhecer a posição das sacerdotisas e sacerdotes sobre o assunto e, na dúvida, compreender a importância de resguardar seus fundamentos.

É possível conceber o carnaval sem expor o sagrado das religiões de matrizes africanas? É exequível preservar a tradição dos efeitos carnavalizantes?

 

Referências

CAMPOS, Vera Felicidade de Almeida. Mãe Stella de Oxóssi: Perfil de uma liderança religiosa. Jorge Zahar Ed. Rio de Janeiro. 2003.

DAWSEY, John C. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 24, p. 15-34, jul./dez. 2005.

 

 

 

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  • Cauane Maia

    Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Mestr...

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