Nesse turbilhão de opiniões, emoções, exacerbações e cancelamentos generalizados fico me questionando: quais são as razões pelas quais estamos discutindo raça e não racismo? Essa inquietação surge a partir do momento que confinamos os comportamentos, atitudes, habilidades, afetos e subjetividades das pessoas aos seus atributos biológicos numa perspectiva racializada, abrindo mão de uma análise crítica sobre os efeitos do racismo em si.

Quando questionamos às pessoas negras, aqui utilizo a categoria que agrega pessoas pretas e pardas por compreender que possuem os mesmos indicadores socioeconômicos quando analisados em oposição às pessoas brancas, sobre suas percepções acerca de outras pessoas negras fazemos uma inferência a uma pseudo-homogeneidade deste grupo étnico-racial, o que não ocorre com o que constituímos socialmente como sendo a “normativa”, ou seja o branco no Brasil, como nos ensina o Guerreiro Ramos.

O que quero apontar é para o fato de acreditarmos, ainda que inconscientemente, num coletivo essencializado que justifica comportamentos contraditórios individuais chamando sempre pessoas negras a responderem pelos atos, falas, escritas de outras das pessoas cujas características fenotípicas se aproximam, destituindo toda a complexidade subjetiva e a construção social subjacente nas individualidades, afinal a população negra é diversa e heterogênea.

Não me recordo de dialogar com pessoas que se autodeclaram brancas e pedi-las que justifiquem os comportamentos dos seus pares também brancos. Ou quando um programa televisivo, ao evidenciar as crueldades da branquitude, mobilizou a coletividade branca a responder por tais episódios. Afinal, não são raros os casos em que pessoas brancas foram notícia por sua mesquinhez, crueldade, corrupção, fofocas, para nomear alguns fatos, mas a sua identidade étnico-racial não foi chave de análise, pelo menos não fora dos estudos críticos da branquitude. Isso acontece pelo fato de serem compreendidos enquanto normativa, logo, são sujeitos “desracializados”.

Mas é considerando o racismo, que antecede e sucede às teorias raciais do século XIX, que penso ser profícuo debater as construções das subjetividades, das identidades coletivas versus individuais e o conjunto de privilégios que se estabelece em todas as esferas de uma sociedade racista como o Brasil.

Confinar o corpo negro a uma expectativa de comportamento é destituí-lo de humanidade, é negar a sua individualidade e as complexas formas de experienciar o cotidiano, inclusive o racismo.

Quando participava do Coletivo Negro 4P na Universidade Federal de Santa Catarina, logo após a implementação das ações afirmativas, já existiam outros coletivos negros atuando na universidade, movimentos negros e organizações sociais na cidade presentes em diversos espaços que reivindicavam os direitos mais básicos para a população negra local. Contudo, eram grupos muito diversos em suas propostas de atuação. Alguns utilizavam a linguagem artística, outros a formação educacional como ferramenta política e outros, ainda, buscavam inserir-se nas instâncias de tomada de decisão com o objetivo contribuir para as demandas da população negra de maneira endógena.

Era recorrente a interpelação de que “o movimento negro era desunido”, e essa constatação ocorria, e ainda ocorre, pelo fato de termos maneiras diversas de atuação que, para uma análise racista, onde todas as pessoas negras devem comportar-se de uma mesma maneira, isso era sinônimo de racha interno. Vale, então, negritar mais uma vez o caráter heterogêneo da população negra e dos movimentos negros.

Isso não significa que não haja conflitos, tensionamentos, disputas, assim como alianças, parcerias, redes de solidariedade e negociações. Mas isso ocorre nas relações sociais e negar isso às pessoas negras é, mais uma vez, negar-lhes a sua humanidade e confiná-las em compreensões essencializantes.

No exercício da observação sobre algo que, à primeira vista, pode parecer não ter nenhuma relação comigo, cabe refletir sobre os efeitos do racismo na construção das subjetividades e identidades negras e não-negras, suas complexidades e a vigilância constante para não cair na tentação da análise simplista do “problema do negro”.

Se pessoas negras são colocadas, em maior ou menor grau, em situação de vulnerabilização acerca das suas certezas, identidades, afetos, religiosidades, finanças, autoestima, talentos, é o racismo, e não a raça, conjugado com outros marcadores da diferença (gênero, sexualidade, classe, regionalismo…) que as sedimentam. Do mesmo modo, se não somos capazes de analisar criticamente o comportamento de pessoas lidas como brancas em situações complexas, que nos chocam e causam indignação, através da sua branquitude estamos, mais uma vez, reificando os lugares estabelecidos pelo racismo e atribuindo-lhe o caráter normativo.

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  • Cauane Maia

    Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Mestr...

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