Há que se diferenciar a vida reduzida ao mero fato de estar vivo e a vida dos portadores de direito. 

O Estado, com seu poder soberano, tem a capacidade de transformar o estatuto da vida humana a uma vida “menos que humana”, criando espaços legais dentro dos quais pode-se deixar de lado a lei, excluindo-se direitos1 (estado de exceção2). 

Com base nas teorizações do filósofo Giorgio Agamben, Penelope Deutscher discorre sobre a capacidade reprodutiva da mulher – categoria esta que deve ser lida como fictícia, incluindo-se nela todas as pessoas com útero – como a justificativa para a exclusão de seus direitos. 

Nas palavras da autora, a capacidade reprodutiva da mulher é tanatopolitizada. Em suma, significa dizer: a mulher é despolitizada em razão do controle estatal existente na administração da vida reprodutiva, quando não encaminhada a uma verdadeira política de morte (tanatopolítica)3. Se, para Agamben, a tanatopolítica ocorreu nos campos de concentração nazistas, espaços em que as vidas eram “nuas”4, o espaço biopolítico paradigmático, para Deustscher, é o útero. É no útero que se encontra o espaço vazio dos direitos legais das mulheres5.

Também em razão da sua capacidade reprodutiva, a mulher é tida como uma pseudo-soberana. A elas, são associados o poder de agenciamento da morte (fetal, individual, coletiva, de população e de futuros potenciais)6. Sim, porque nesse contexto, a mulher é vista como uma potencial matadora. Ou, nos termos do recente PL nº 1904/2024, uma potencial homicida

As narrativas que levam à imagem do corpo reprodutivo a essa potência mórbida são diversas, cabendo referenciar a forte base das crenças religiosas e sua noção de vida como criação divina. A polêmica entre as bancadas religiosas e a laicidade do Estado denotam uma cena incoerente e simbólica em relação ao aborto. Quase todos os deputados com posição contrária à extensão do aborto legal pertencem a alguma religião7, e nesse mesmo quadro devem figurar, também, os deputados a favor do PL nº 1904/2024. São os mesmos que frequentemente propõem mudanças e propostas legislativas baseadas em suas crenças, colocando-se como representantes em nome das religiões. 

Esse mesmo PL que quer criminalizar o aborto realizado após 22 semanas, com a pena de homicídio (pena de reclusão, de 6 a 20 anos) – mesmo em caso de gravidez decorrente de estupro –, ignora toda a problemática de saúde pública, esvaziando todo o debate qualificado já realizado até aqui. 

Vale citar que, na audiência pública realizada por ocasião do julgamento da ADPF 442, Lia Zanotta, representando a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), destacou que só em 2015 foram realizados 503.000 abortos, quase um por minuto. Dessas mulheres, muitas não estavam presas, mas estavam sendo processadas e, se tivessem sido presas, o sistema carcerário brasileiro seria 10 vezes maior que o atual, que já conta com milhões de encarcerados. 

Para além de tudo isso, sabe-se das profundas amálgamas potencialmente fatais advindas dos eixos interseccionais de raça, gênero, classe e outros. Mais uma vez, serão as mulheres não-brancas e de baixa classe o alvo da política criminal em discussão. 

Os direitos reprodutivos são, como argumenta Deutscher, precários. Verifica-se uma mitigação dos direitos reprodutivos da mulher em detrimento da vida embrionária, esta comumente referida nos discursos jurídico-penais, religiosos e morais. A precariedade se denota, ainda, da desinformação, da dificuldade de acesso a contraceptivos, e a atendimento hospitalar de qualidade8

Uma vez criada uma expectativa de vida dentro de um útero, ali, nesse mesmo poderoso e “sagrado” órgão capaz de gerar vida, estará também o espaço no qual a mulher se verá despida de sua personalidade jurídica e de sua capacidade de ser sujeito de direitos: gerará, talvez, sua própria morte.  

Não cabe aqui repetir os discursos tão bem impulsionados pela mídia contrária ao PL em questão. Não estamos discutindo a quantidade de pena, a notória desproporcionalidade entre a pena de uma pessoa que aborta e a pena de um estuprador. Não estamos discutindo se criança pode ou não ser mãe (óbvio que não). Não se trata (apenas) disso.  

A questão a que se refere, em verdade, trata de uma escolha. Uma escolha racional político-criminal-religiosa, através da qual serão estabelecidas quais mulheres poderão recorrer ao aborto seguro e aquelas que serão expostas à prisão, quando não à morte. Esse sempre foi o centro do debate acerca da (des)criminalização do aborto.  

Desde sempre o aborto foi criminalizado no Brasil (com as exceções previstas no artigo 128 do Código Penal, que agora correm o grave risco de serem condicionadas), e as ocorrências habituais de aborto demonstram que a criminalização continua servindo tão somente como um instrumento que alimenta ainda mais o direito soberano de excluir e matar. Como bem ensina Achile Mbembe, o Estado não apenas deixa morrer, mas também faz morrer9. Faz morrer as mulheres que abortam

O resultado prático, caso esse projeto seja aprovado, será esse: as mulheres continuarão abortando, com menos ou mais de 22 semanas. Algumas, porém, sobreviverão, como se nada tivesse acontecido, longe das delegacias e da prisão, carregando o peso do pecado em segredo na missa de domingo. 

Outras, grupalmente endereçadas (a depender da sobreposição dos fatores sociais que a definem), infelizmente, encontrarão no próprio útero, um campo de concentração. Não mais vistas como humanas, serão desprovidas de toda humanidade, em detrimento ao valor da vida embrionária. 

Viverão a vida – reduzida ao mero fato de estar viva – em regimes de segregação, dominação e exclusão. Ou morrerão. Se não de morte “morrida” pelo infortúnio das complicações de um aborto inseguro, de desgosto por continuarem vivas, carregando o “bendito” fruto do ventre gerado mediante estupro. Parindo dor e nojo: um filho desprezado. Deixando de lado a boneca, a menina desejará, no seu íntimo, essa morte anunciada. 

Notas de rodapé

1 –  DEUSTSCHER, Penelope. Crítica de la razón reproductiva: Los futuros de Foucault. Trad. Fernando Bogado. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, 2019, p. 216-217. 

2 –  Para Agamben, no estado de exceção há uma separação entre a norma e sua aplicação, a fim de tornar possível sua aplicação, introduzindo “no direito uma zona de anomia para tornar possível a normatização efetiva do real” (AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção: homo sacer, II, I., p. 59). E ainda: “O estado de exceção é um espaço anômico aonde o que está em jogo é uma força de lei sem lei” (Idem, p. 61).

3 –   DEUSTSCHER, Penelope. Crítica de la razón reproductiva. Op. cit., p. 247. 

4 – A vida nua é a “vida humana despida de sua personalidade jurídica, da capacidade de ser sujeito de direitos, de contrair direitos e obrigações. À sombra do conceito de vida nua, nos deparamos com a vida abandonada à relação não perfeitamente oculta entre direito e violência e, em última instância, com a vida exposta à morte” (NASCIMENTO, Daniel Arruda. Do fim da experiência ao fim do jurídico: percurso de Giorgio Agamben. 2010. 185 f. Tese (Doutorado) – Curso de Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010, p. 83).

5 – DEUTSCHER, Penelope. Crítica de la razon reproductiva. Op. cit., p. 249.

6 – DEUSTSCHER, Penelope. Crítica de la razón reproductiva. Op. cit., p. 254.

7 –  MARIANO, Rayani; BIROLI, Flávia. O debate sobre aborto na Câmara dos Deputados (1991-2014): posições e vozes das mulheres parlamentares. Cadernos Pagu, [S.L.], n. 50, p. 230-260, 28 set. 2017. FapUNIFESP (SciELO). Acesso em: 20 jun. 2024. Disponível em <https://doi.org/10.1590/18094449201700500013>. 

8 –  MACCOPPI, Jaqueline Alexandra. Governantes ou governadas: O útero como campo de gestão biopolítica e suas implicações práticas e legais. Minas Gerais: D’Plácido, 2023. 140 p.. P. 121-122. 

9 –  MBEMBE, Achile. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2020.

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  • Jaqueline Alexandra Maccoppi

    Mestra em Direito pela UFPR, servidora pública estadual, integrante do Coletivo Valente, diretora do Sinjusc. Autora do...

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