A jornalista Eliane Cantanhêde, veterana comentarista política da GloboNews e do jornal O Estado de São Paulo, foi sistematicamente acusada de machismo nas redes sociais após reportar – e a cito: um incômodo com o excesso de espaço que a Janja vem ocupando”. Isso aconteceu na sexta-feira, 11/11, no programa Em Pauta, quando Cantanhêde comentava a atuação da futura primeira-dama Rosângela da Silva nas operações de transição do Governo Federal. No dia 13/11, a própria Janja falou sobre ser primeira-dama, em entrevista exclusiva feita pelo e para o Fantástico. 

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À esquerda: print que fiz no momento em que Eliane Cantanhêde menciona Yolanda Costa e Silva no Programa Em Pauta, GloboNews, 11/11/2022 (assista o vídeo no site da Carta Capital). À direita, Poliana Abritta e Maju Coutinho entrevistam Janja; foto: Perla Rodrigues/Fantástico (fonte: g1).

Em Pauta é um telejornal diário da GloboNews com duração de 2h, em que comentaristas da emissora aprofundam notícias, dando destaque para política, cenário internacional e cultura. O Fantástico é o tradicional semanário da Globo, que vai ao ar desde 1973 por mais de 3h todos os domingos em sinal aberto.

Aqui importa avisar que não assisti a nenhum dos dois programas em sua inteireza – e importa avisar, pois análises de discurso sobre produtos de mídia feitas a partir de fragmentos deles devem levar isso em conta de forma franca. Importa também registrar que a GloboNews é um canal a cabo; estou segura de que, como eu, nem todo mundo que se juntou à conversa online assistiu ao programa todo, e não podemos desconsiderar a possibilidade (muito real e comum nas redes sociais) de que muita gente xingou Cantanhêde sem sequer ter assistido à sua fala.

Quanto à entrevista de Janja, apesar de a Globo ser um canal aberto e de o vídeo estar disponível online, tampouco assisti ao segmento; confesso não ser a maior fã da edição e linguagens do Show da Vida. O que avalio aqui, portanto, avalio a partir do trecho do programa Em Pauta em que Cantanhêde comenta um suposto incômodo causado por Janja no PT, conforme divulgado em reportagem da Carta Capital, e da transcrição da entrevista feita por Maju Coutinho e Poliana Abritta com Janja no Fantástico, conforme publicada no G1.

O texto a seguir pede que a leitora suspenda o afã de concordar ou discordar com o que será abordado – se quiser pode, mas, se peço isso de antemão, é porque o que viso oferecer com esta escrita não são conclusões sobre os temas nela presentes.

Ao contrário – e seguindo o conselho de Nancy Hartsock, para quem o feminismo não deve ser um arcabouço de conclusões fechadas sobre a opressão de gênero, mas sim uma práxis dinâmica contra ela – ensaio aqui alguns pontos de reflexão sobre misoginia e primeiro-damismo, assuntos que vêm movimentando comentários feministas desde o último final de semana.

Na sexta-feira, em sua fala, Cantanhêde comentou a presença de Janja em uma reunião entre aliados e o futuro presidente Lula, seu vice, Alckmin, e Gleisi Hoffmann, presidente do PT – um espaço onde as primeiras-damas não costumam estar. Cantanhêde então resgatou algumas figuras do passado, para fazer um registro histórico das limitações impostas a primeiras-damas, caucionado que nesse âmbito “tudo o que excede pode dar problema”, reportando para sua audiência “um incômodo com o excesso de espaço que a Janja vem ocupando”, e arrematando essa parte de sua análise com o questionamento: “qual é o papel da primeira-dama?”.

Em sua breve fala no trecho de um programa – que acontecia ao vivo, e contava com um apresentador e quatro comentaristas, e em que a pauta era factualmente dedicada a ações do novo Presidente do Brasil – a jornalista citou outras primeiras-damas para ilustrar pontos sobre a atuação histórica de primeiras-damas. Uma, Yolanda Costa e Silva, esposa do General Artur da Costa e Silva, enquadrada como sendo uma “mulher super maquiada, super artificial”. Outra, Lucy Geisel, casada com o General Ernesto Geisel, que qualificou como sendo uma representante “muito discreta, dona de casa”. E Cantanhêde também perguntou quem poderia esquecer de Rosane Collor e das confusões por ela centralizadas, fazendo menção a “coisas religiosas meio estranhas na Casa da Dinda”

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Da esquerda para a direita: Yolanda Costa e Silva e General Artur da Costa e Silva (imagem do Acervo O Globo); General Ernesto Geisel, a filha Amália, a esposa Lucy, e um dálmata, no gabinete da Presidência, em 1974 (imagem: PressReader/Folha) e Rosane e Fernando Collor (imagem do Pinterest). 

Não sei a que Cantanhêde se referiu quando falou de “coisas religiosas meio estranhas”, mas uma busca rápida na internet me revelou que revistas de fofoca e jornais sensacionalistas afirmam que Rosane supostamente acusou seu ex-marido e nosso ex-presidente de fazer “magia negra”, mas não pesquisei esta questão além disso. A Casa da Dinda, para quem não lembra, é a mansão da família Collor de Mello no Distrito Federal, que serviu de residência oficial de Fernando durante sua breve passagem pela Presidência do Brasil.

Vale lembrar, também, que a residência oficial dos Presidentes da República é o Palácio da Alvorada — onde morou Ruth Cardoso nos governos Fernando Henrique, outra primeira-dama a quem Cantanhêde se referiu, e da seguinte forma: “como a Janja, tinha um brilho próprio, uma professora universitária, uma mulher super respeitada na área dela”. Foi apenas depois de estabelecer um comparativo positivo entre Dona Ruth e Janja que a jornalista fez uma distinção entre as duas, salientando que a primeira “não tinha protagonismo; ela não tinha voz nas decisões políticas, e se tinha, era a quatro chaves dentro do quarto do casal”, e concluindo, assim, que a segunda, com o espaço que vem ocupando, “já incomoda, sim”.

Aqui vale ressaltar que um dos temas do programa era “Janja além da primeira-dama”, e que Cantanhêde era a única mulher participando no momento deste debate; das cinco pessoas cis brancas que compunham o quadro, foi a ela destinado o comentário sobre primeiro-damismo.

Também importa notar que a questão que Cantanhêde estava respondendo no momento da fala, que depois veio a pegar fogo nas redes sociais, e pela qual ela foi acusada de machismo, era se o protagonismo de Janja incomoda o PT. Cantanhêde respondeu que sim. Incomoda. O PT. E fez isso traçando um comparativo com incomodações sobre primeiras-damas de outrora. 

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Prints que fiz do Programa Em Pauta, GloboNews, 11/11/2022. Fonte do vídeo: Carta Capital

Uma primeira-dama cujas ações e atividades Cantanhêde não comentou foi Michelle Bolsonaro, e não penso que essa ausência tenha sido acidental. Foi interessante sua escolha de sequer ter mencionado a quase-futura-ex-primeira-dama, ainda que ela seja a grande representante do primeiro-damismo submisso que pessoas parecem ter entendido que Cantanhêde defendia.

Durante a transmissão André Trigueiro pareceu nervoso e achou prudente estabelecer em meio a falas da colega que “lugar de mulher é onde ela quiser” – e não errou: é mesmo papel dos homens promoverem essa noção, tanto quanto puderem.

É claro que lugar de mulher é onde a gente quiser, e Cantanhêde deve saber disso, afinal ela é uma mulher que ocupa uma posição ainda relativamente incomum para mulheres: a de analista política.

Trigueiro parece ser um doce, e até onde posso ver é excelente jornalista; todavia, acabou parecendo paternalista ao constatar o óbvio perante alguém com muito mais experiência do que ele no trabalho que dá poder exercer o privilégio de estar onde se quer.

Quanto à internet, bom, se tem uma coisa na qual as redes sociais são competentes é em vilanizar sujeitos com repetições de ultraje via câmera de eco, e coube à Eliane Cantanhêde ser vilanizada sem ter vilanizado.

Cantanhêde é uma mulher cis branca e mais velha, que – como é comum em canais especializados em notícias políticas mundo afora – tece comentários informativos sobre configurações correntes do poder institucional.

Assisti à sua fala mais de uma vez, e minha impressão é de que ela reconhece o protagonismo de Janja e percebe um incômodo sobre isso no PT, independentemente do que Janja vai ou não fazer do roteiro esperado do primeiro-damismo.

Minha interpretação é de que Cantanhêde admira Janja como a Ruth Cardoso. Não encontrei comparação, em seu discurso, entre Janja, Yolanda, Lucy e Rosane, por exemplo. Cantanhêde – talvez sem linguagem técnica com que fazer isso – descreveu primeiras-damas notórias por incorporarem características que compõem justamente imagens de feminilidade enfatizada (o excesso de artifício em Yolanda Costa e Silva, o recato e do-lar-zismo em Lucy Geisel, o fetichismo espiritual em Rosane Collor), e situa problemáticas da feminilidade cis branca e primeiro-damista em figuras da história para, daí, distinguir Janja e Ruth delas, positivamente.

É só então que ela faz a distinção entre Janja e Ruth Cardoso. É fato que Ruth Cardoso não protagonizou o governo Fernando Henrique, onde teve participação ativa. Também é fato que ainda estamos por ver – eu, vocês e Eliane Cantanhêde – como se desdobrará a participação de Janja no Alvorada e além.

Na entrevista ao Fantástico, veiculada dois dias depois das falas de Cantanhêde, Janja afirmou seu compromisso com e apoio ao companheiro, e também disse querer “ressignificar o conteúdo do que é ser uma primeira-dama”, visando trazer “algumas coisas importantes de algumas pautas importantes para as mulheres, para as pessoas, para as famílias de modo geral. (…) Um papel mais de articulação com a sociedade civil.”

Durante a campanha e depois desta entrevista, Janja estabeleceu sua presença no debate público nacional como uma inteligente e sagaz mobilizadora de signos, com competência para potencializar sua habilidade para liderança política, e fez tudo isso a partir do papel de companheira de político eleito. Algo parecido pode ser dito sobre Michelle Bolsonaro – e esse comparativo não cria equivalência nenhuma entre as duas, positiva ou negativa. Percebem? No meu livro Patriarcado Gênero Feminismo, recém lançado pela Editora Zouk, falo que:

 “O conceito de masculinidade hegemônica é parte de uma teoria geral da ordem de gênero proposta por R.W. Connell, e pode ser definido como qualquer que seja a configuração de práticas de masculinidade que legitimem a posição dominante dos homens na sociedade, e justifiquem a subordinação de todas mulheres e de outras formas marginalizadas de ser homem. (…) Para Connell, a feminilidade que enfatiza a hegemonia da masculinidade é aquela organizada como uma adaptação ao poder dos homens. O interesse feminista na construção simbólica de feminilidades urge.

Nos dois anos entre a eleição de Dilma Rousseff para seu segundo mandato como presidenta do Brasil e seu impeachment, muitas mulheres brasileiras vinham denunciando o firehosing de misoginia na política, manifesto na retórica a favor de sua saída. 

Em abril de 2016… do momento imóvel fez-se o drama, e de repente, não mais que de repente… surgiu uma narrativa aceitável para mulheres na política. Uma matéria veiculada na Revista Veja qualificou a então primeira-dama interina Marcela Temer, 43 anos mais jovem que seu marido, o então presidente interino Michel Temer, como bela, recatada e do lar. A reação de muitas brasileiras frente à sugestão de que mulheres são aceitáveis na política contanto que como objeto decorativo para homens na política foi de fúria e deboche.

O primeiro-damismo endossa a perspectiva de Connell, e sustenta o lugar discursivo das feminilidades submissas no patriarcado. Em 2022 o presidente Jair Bolsonaro, no palanque das celebrações do bicentenário da independência – em que sequer poderia ter feito menção à campanha eleitoral, por estar na disputa –, propôs que, antes de votar, eleitores considerassem as diferenças entre sua esposa Michelle, e Janja, a do candidato a presidente Lula, como se primeira-dama fosse plano de governo.”

Quando jogou para o público a pergunta cuja resposta Janja acabou fornecendo, em outro programa para suas colegas da mesma Rede Globo (“o que significa ser uma primeira-dama?”), Cantanhêde  ensaiou um comentário sobre o primeiro-damismo que acabou saindo pela culatra, e uma enxurrada de misoginia compôs as acusações de seu machismo.

Ao final de sua entrevista para o Fantástico, Janja afirmou querer ressignificar o termo, dizendo que vai operar em questões raciais e de violência contra mulheres. É um alívio, depois desses anos aguentando Damares, Bolsonaro e cortes em pastas relacionadas sendo literalmente louvados pela primeira-dama Michelle, que a primeira-dama Janja priorize o racismo e a misoginia tão obviamente intrínsecos ao cenário político, de mídia, e do debate público brasileiros. 

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  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

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