Tem copa

Bora falar de futebol, gatas? A Copa do Mundo de Futebol Masculino do Catar 2022 ainda vai até 18 de dezembro, data da partida final e encerramento, que acontecerão no Estádio Icônico de Lusail, em Al Daayen. A competição começou em 20 de novembro, no Estádio Al Bayt, 35km ao norte de Doha. Não assisti à cerimônia de abertura, mas lendo as notícias depois, gostei de conhecer um dos apresentadores: o embaixador da FIFA e estrela do YouTube do Catar Ghanim Al Muftah – na foto abaixo, dividindo o palco com o legendário Morgan Freeman.

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Morgan Freeman e Ghanim Al Muftah na abertura da Copa do Mundo do Catar | Crédito: Adam Davy/PA Images via Getty Images via Yahoo!.

DUA LIPA DISSE NÃO

No domingo 13 de novembro, a diva pop Dua Lipa usou suas redes sociais para negar que participaria da cerimônia de abertura da Copa de 2022, aproveitando para revelar que pretende visitar o Catar somente quando o governo cumprir as promessas feitas, na direção de proteger direitos humanos, ao ganhar a disputa para sediar o mundial.

LA’EEB

O mascote dessa edição, La’eeb – que significa “jogador super habilidoso”, e cujo design foi inspirado nos lenços de cabeça da cultura árabe –  virou meme na cultura da internet brasileira, como não poderia deixar de ser. Pelo que pude ver das imagens e vídeos disponíveis da abertura, La’eeb foi o único participante branco – e, dos muitos apelidos dados à figura nas redes, destaco dois: “tapioca homofóbica”, em referência às restrições violentas contra a cultura LGBTI+ no Catar, e “fantasma dos mortos na construção civil do evento”.

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Um dos muitos memes sobre La’eeb na internet brasileira | Crédito: Reprodução Twitter via g1.

QUANTAS MORTES FAZEM UMA COPA DO MUNDO?

Alarmantes números circulam na mídia internacional sugerindo que entre seis e 15 mil trabalhadores morreram na preparação da Copa do Mundo no Catar. Como foi colocado em uma matéria de Hélen Freitas para o Repórter Brasil publicada em 22 de novembro deste ano, porém, não há números exatos ou estimativas oficiais. Mais de 90% dos trabalhadores no Catar são estrangeiros, e abundam denúncias de jornadas com condições degradantes, acomodações insalubres e tráfico de pessoas.

O governo do país está longe de ser transparente sobre a questão – mas sempre foi bastante aberto no seu posicionamento homofóbico. Bruna Calazans, em “É crime ser gay no Catar?” (publicação do UOL de 18 de novembro) reporta que o embaixador da Copa e ex-jogador do Qatar Khalid Salman afirmou em novembro que homossexualidade é um transtorno mental, e que o major-general Abdulaziz Abdullah Al Ansari reforçou, já em abril, que turistas não devem demonstrar nenhum apoio à comunidade LGBTI+.

O Código Penal do Qatar fala sobre a homossexualidade como uma prática criminosa, passível de pena de prisão, ou morte, se sob a sharia. A lei proíbe relação sexual entre homens, sem fazer menção a relações entre mulheres. 

ARCO-ÍRIS?

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Autoridades do Catar tomaram uma bandeira de Pernambuco de brasileiros logo após a partida entre Arábia Saudita e Argentina, na terça-feira (22). Segundo testemunhas, eles a jogaram no chão e pisotearam, por terem pensado que se tratava da bandeira LGBTI+. Isso devido a um arco de cores que ilustra a flâmula. Que não é nem um arco-íris. Nem o do céu, nem o da comunidade (que tem seis cores, ao invés das sete do primeiro). É um arco colorido. 

Ah, os regimes autoritários e sua implicância violenta e sem discernimento com o simbólico, hein?

MUNDIAIS MASCULINO E FEMININO: ALGUNS DADOS 

A competição da FIFA foi criada na França por Jules Rimet em 1928, ocorre a cada quatro anos em diferentes localidades, e a primeira edição foi em 1930, no Uruguai. Desde então, o mundial só não aconteceu em 1942 e 1946, por conta dos nazifascistas da Segunda Guerra. 

Até o momento, oito países são campeões. A seleção do Brasil é a única a ter jogado em todas as competições, e apesar de nunca termos ganhado em casa, o maior número de títulos é nosso: cinco, obtidos em 1958 (Suécia); 1962 (Chile); 1970 (México); 1994 (Estados Unidos); e 2002 (Japão e Coreia do Sul). Os tetracampeões são Itália (1934 em casa; 1938 França; 1982 Espanha; 2006 Alemanha) e Alemanha (Suíça 1954; Alemanha Ocidental 1974; Itália 1990; Brasil 2014).

Os bicampeões são: o Uruguai (que venceu em 1930 em casa e em 1950 aqui no Brasil); a Argentina (em casa em 1978, e em 1986 no México); e a França (também em casa, em 1998, e na Rússia, em 2018). Inglaterra tem o título de 1966 (ganhou em casa), e a Espanha o da copa da África do Sul em 2010.

Mas isso no futebol masculino.

Ou de homens. Nomenclaturas como “feminino/masculino”, ou “de mulher/de homens”, usadas para qualificar e organizar a sociedade, não dão conta da sofisticação com que devemos tratar questões de gênero e esporte, mas isso abre outra conversa.

Por ora, para estarmos numa mesma página nesta coluna, vamos deixar estabelecido que por “futebol masculino” me refiro ao futebol jogado historicamente por homens cis, e por “futebol feminino” ao que tem sido jogado por mulheres cis. Não há posição oficial da FIFA sobre atletas trans.

O torneio mundial feminino acontece desde 1991, e os EUA foram campeãs quatro vezes: no evento inaugural sediado pela China, depois em 1999 em casa, em 2015 no Canadá, e em 2019 na França. A Alemanha é bicampeã, tendo levado as taças de 2003, nos EUA, e de 2007 na China. A Noruega venceu em 1995, na Suécia, e o Japão levou a Copa do Mundo de 2011, na Alemanha. 

E a Seleção Brasileira de Futebol Feminino? Essa é octacampeã da Copa América Feminina, tem duas pratas olímpicas, foi tricampeã dos Jogos Pan-Americanos (em que também tem uma prata), e foi bronze nos Jogos Sul-Americanos. Nossas guerreiras não têm nem perto do suporte que recebem os garotos. E brilham muito. Ame, admire, apoie e promova as mulheres do futebol brasileiro!

CANADÁ

No domingo, 27 de novembro, a equipe do Canadá fez seu primeiro gol em uma Copa do Mundo. Não encontrei o número exato de gols cumpridos pela seleção feminina canadense, mas elas são as sétimas colocadas no ranking mundial, atuais campeãs olímpicas, e disputaram todas as Copas do Mundo desde 1995 – então certamente este não foi o primeiro gol do Canadá numa Copa do Mundo, mas sim o primeiro gol de um homem canadense em uma copa do mundo. 

BIGODE

O goleiro Alison apareceu no primeiro jogo do Brasil, dia 24 deste mês, ostentando um bigodão – e logo a explicação surgiu nas mídias: a ação é parte da iniciativa Novembro Azul, que há muitos anos usa as simbologias do azul e da pelagem facial como ícones com que levantar atenção para a saúde dos homens. Bela ação, o look nem tanto. (Numa nota tangencial, feita a partir de observação sem fundamento além de pura percepção estética: alguém sabe se alguém já investigou as relações entre fases de ascensão cosmética do bigode e de ascensão política do fascismo?)

VERDE E AMARELO X VERMELHOS

Em sua mais recente coluna para o UOL a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado lembrou que foi na Copa de 2014, no Brasil, que a paixão brasileira pela camisa da seleção foi sequestrada para simbolizar autoritarismo patriarcal, quando, e a cito: “torcedores brasileiros mandavam a primeira presidenta mulher eleita ‘tomar no cu’ na abertura (…) na Arena Corinthians, em São Paulo.”

Desde então o bolsonarismo – e já antes o antipetismo – operacionalizou a confluência entre seu projeto “político” e o próprio conceito de Brasil com linguagem visual. Vestir verde e amarelo enrolado numa bandeira bradando o hino nacional, e looks e comportamentos derivados, são visualizações com que torcedores da seleção canarinho estão acostumados. Mas o Brasil vive em guerra consigo mesmo, e, durante um período que ainda não acabou, nacionalistas se apropriaram justamente dessa aparência — que é de todes brasileires — para se voltar contra os próprios compatriotas. 

Essa usurpação do verde e amarelo para uniforme do golpe se aproveitou do apreço nacional por Brazil Core para estimular que fanáticos da sociedade civil se julguem os “verdadeiros brasileiros”. E isso se deu ao mesmo tempo em que foi promovida a dicotomia “o Brasil contra os vermelhos” – quem pode esquecer do então candidato Jair falando que “varreria os vermelhos do Brasil”

O binário “verde-amarelo contra vermelhos” é tão simplório que “verde-amarelo” exclui brasileiros, e “vermelho” podem ser petistas e o comunismo de forma ampla, mas também o feminismo, que tradicionalmente emprega a cor roxa, ou as identidades representadas pelas muitas cores das bandeiras LGBTI, e também pessoas negras, indígenas, LGBTI+, enfim: gente de todo espectro de minorias políticas. 

Assisti ao primeiro jogo desta Copa em casa, e acompanhei as comemorações subsequentes em vídeos e fotos nas redes sociais, onde um número expressivo de verde-e-amarelos celebravam em êxtase a estreia vitoriosa do Brasil no mundial deste ano – que teve direito a gol icônico do homem-pombo e herói express, comunicador comprometido com a ciência e cidadão investido na justiça social, o fabuloso Richarlison. 

Logo depois do segundo jogo, em alegria pela classificação para a próxima rodada, saí de casa e aumentou ainda mais a sensação de alívio de ver nossos símbolos não sendo usados contra nós, mas para nos representar a todos, mais uma vez. 

NEM TODO OPORTUNISMO…

O italiano Mario Ferri invadiu o campo do Estádio Icônico de Lusail na segunda-feira, 28, durante o segundo tempo do jogo entre Portugal e Uruguai, carregando uma bandeira LGBTI+ e vestindo sua tradicional camiseta azul com o logo do Super Homem e frases de efeito. Ele fez isso nas edições de 2010 e 2014. Para 2022 seus slogans foram “Save Ukraine” (Salvem a Ucrânia) e “Respect for Iranian Women” (Respeito pelas Mulheres Iranianas). 

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Crédito: AFP via Superesportes.

IRANIANAS E IRANIANOS

O jornal Português Observador reportou em 25 de novembro que o jogador iraniano Voria Ghafouri – que dizem não ter sido convocado para o mundial por ser uma voz crítica ao governo do Irã – foi detido por autoridades que o acusam de “propaganda”. Ghafouri publicamente apoia os protestos que começaram no Irã em setembro, e que desafiam a autarquia patriarcal fundamentalista instaurada no país desde 1979.

Os jogadores da seleção iraniana também demonstraram apoio às mulheres de seu país: ouviram o hino sem cantar uma única palavra, honrando a revolução que elas estão fazendo desde a morte de Mahsa Amini pelo esquadrão especial da polícia iraniana encarregado de implementar regulamentos e costumes acerca do hijab. O patriarcado policia mulheres, não a violência do próprio olhar.

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Mahsa Amini | Crédito: IrãWire via REUTERS via EBC.

O OLHAR DO PATRIARCADO

No podcast Isso é Fantástico, que foi ao ar no domingo (27), a atriz e comentarista ocasional de Copa do Mundo, Deborah Secco, afirmou seu incômodo com críticas feitas ao seu figurino para o programa Tá na Copa, do SporTV, da seguinte forma:

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Crédito: Instagram do Fantástico @showdavida 

“O que vale ressaltar é que a hipersexualização da mulher, ela não é feita pela roupa e, sim, pelo patriarcado”.

– Deborah Secco.

No ponto. E se Secco e a leitora quiserem, podem substituir o olhar do patriarcado sobre as mulheres pelo olhar das mulheres sobre o patriarcado: meu livro ‘Patriarcado Gênero Feminismo’, lançado em novembro pela Editora Zouk, está disponível aqui. 

OLHO NO PATRIARQUINHA

O streamer brasileiro Casimiro vem batendo recordes de audiência com sua transmissão da Copa do Mundo pelo YouTube. Nesta segunda-feira (28), enquanto ele e sua equipe majoritariamente cismasculina e branca comentavam o evento ao vivo, as câmeras flagraram ninguém menos do que Eduardo Bolsonaro posando para fotos na arquibancada em um dos estádios no Catar.

A imagem viralizou, e a presença do sujeito rindo e festejando, bem longe do Brasil, desapontou aquela parcela da população dedicada à manter a ilusão de patriotismo dos Bolsonaro, que segue acampada sob sol ou chuva na frente dos quartéis brasileiros pedindo por intervenção de seus mitos. Um salve para a realidade. 

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Crédito: reprodução, do canal de YouTube do Casimiro.

PIONEIRAS

A narradora e jornalista Renata Silveira foi a primeira mulher a narrar uma partida de Copa do Mundo em rede de TV aberta, no Brasil, e isso só aconteceu em 2022, agorinha mesmo, nesta Copa do Mundo do Catar. Com narração dela, o jogo que resultou em Japão 2 x 1 na Alemanha, dobrou o ibope da Globo. Já a comentarista Ana Thaís Matos, que há anos vem brilhando lá e onde mais passa, se tornou a primeira mulher a comentar um jogo da Seleção Brasileira masculina in loco em Copas do Mundo, ao lado de Galvão Bueno na vitória do Brasil contra a Sérvia. 

TRAZ O HEXA, BRASIL

Torcer pela vitória esportiva da seleção de nosso próprio país suscita saudáveis emoções ligadas à nação. E torcer pelo Brasil, além do mais, é torcer por mais do que pelo time do Brasil ou pelo país Brasil. É torcer por um símbolo que talvez represente, como nenhum outro, vitória do Sul Global – como denota a aparente adesão de simpatizantes encontrados pelas ruas do Catar e ostentando indumentária brazuquinha, vindos da Índia, Sri Lanka, Bangladesh, Líbia Sudão, Egito, Omã, Malásia e onde mais… Ouço abrirem as porteiras para nos sentirmos mais tranquilamente representados pela amarelinha, e vocês?

Apesar de tudo, torço muito para que o Brasil seja hexacampeão. Vamo, canarinho, pruuuu!

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  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

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