O custo da exclusão é a ameaça aos direitos humanos e aos feminismos
A política do ressentimento, de quem acredita estar perdendo espaço para a luta trans, tem sido a principal força por trás da agenda antitrans que une CISativistas.
Essa reflexão tem dois pontos de partida. O primeiro é que, no meu entendimento, os feminismos — assim como os direitos humanos — são expansivos, inclusivos e amplos, de modo a proteger todas as pessoas e identidades, sobretudo aquelas que se insurgem contra as múltiplas formas de injustiça social. Qualquer proposta de transformação social que se diga emancipatória deve necessariamente incluir a escuta e a defesa dos corpos e das existências historicamente marginalizados, promovendo alianças e evitando cisões que enfraqueçam um grupo em detrimento de outros.
O segundo ponto é a urgência de reconhecermos, de uma vez por todas, que quando o patriarcado se fortalece e os fascismos ressurgem e há mulheres que, mesmo sendo oprimidas, se alinham ao poder hegemônico. Nessa aliança, se negociam ou se rifam direitos que são coletivos. Essa dinâmica não é nova: nos regimes fascistas do passado, um número expressivo de mulheres compôs a base de apoio e mobilização, mesmo sem deter o poder formal, como nos alerta Sonia Corrêa.
Esse é o mesmo cenário que presenciamos nos dias de hoje, quando um número crescente de mulheres reproduz e legitima discursos e práticas de exclusão, fazendo das pessoas trans seu alvo preferencial e, com isso, comprometendo a luta por justiça social e equidade.
Assistimos hoje uma crescente mobilização de mulheres cisgêneras, feministas ou não, que assumem posturas transexcludentes e narrativas transfóbicas e aliam-se a movimentos historicamente contrários aos direitos das pessoas trans. Essa convergência tem gerado impactos negativos expressivos. Exigindo que se identifiquem e sejam acompanhados perfis que mobilizam essas posições nas redes sociais, propagando desinformação e discursos de ódio.
Essas ações, sobretudo, mobilizadas a partir do ambiente virtual, envolvem a construção de narrativas fictícias, alegorias ficcionais elaboradas ou copiadas dos Estados Unidos e Reino Unido, para atender a expectativas ideológicas específicas desses grupos.
Entre as possíveis interpretações desses fenômenos, uma das causas é a política do ressentimento, de quem acredita estar perdendo espaço para a luta trans, uma visão amplamente utilizada por feministas transfóbicas, grupos LGB cissexistas, professores universitários, políticos, pensadores e influenciadores, e perfis ligados à maternidade que se opõem aos direitos trans.
Trata-se de uma lógica de vitimização deliberada que serve para justificar ações criminalizantes e promover medidas punitivas contra pessoas trans, consolidando um discurso de exclusão e repressão. A afinidade desse modo de agir com as estratégias da extrema direita é evidente.
Essas narrativas não questionam estruturas hegemônicas, como o patriarcado ou o capitalismo, mas ao contrário direcionam seus projéteis contra a população trans. Esse turbilhão arrasta mulheres cisgêneras, muitas vezes, jovens e sem aprofundamento nas discussões de gênero contemporâneas, que são capturadas pelo discurso do ressentimento que escondem a preservação de privilégios.
A maioria das vozes que se manifestam nesse campo são de mulheres brancas, também há vozes de mulheres negras que contradizem os princípios do feminismo negro, utilizando repertórios conservadores que reforçam as narrativas excludentes que instrumentalizam o racismo.
Nesse contexto, na última semana, assistimos atônitas a uma série de ataques globais coordenados contra pessoas trans, sobretudo no âmbito da manifestação de mulheres comemorando a decisão devastadora da Suprema Corte Britânica, convergindo claramente com a caçada antitrans deflagrada pelo governo Trump.
A decisão britânica nega direitos a pessoas trans e abandona-as, desencadeando violências contra elas, ainda mais violência do que a própria decisão sugere. Mesmo assim, o mundo inteiro viu a infame imagem da escritora J.K. Rowling comemorar a institucionalização do cissexismo, brindando e fumando um charuto com registro publicado em suas redes sociais.
Ao ver a imagem, o chão se moveu sob meus pés, como se eu estivesse perdendo a visão do mundo, como se a humanidade já não tivesse sentido.
Além de pessoalmente impactada, refleti sobre a arrogância com que J.K. (e os ideais antitrans que representa) exibem sua crueldade de forma tão explícita e desenfreada. Sabia que essas forças não têm freios, porque o ódio não conhece obstáculos quando se acredita vitorioso.
Vale destacar que J.K. Rowling destinou 70 mil libras para financiar a ação que resultou nessa decisão desastrosa, proposta pela For Women Scotland (FWS), um grupo de mulheres escocesas que, autodeclaradas “críticas de gênero”, defende direitos humanos com base exclusivamente no “sexo biológico”. A ação, além de requerer a proibição de acesso de mulheres trans a espaços reservados a “mulheres biológicas” (sic), também solicitou que a justiça definisse o conceito de mulher com base exclusivamente no “sexo” atribuído no nascimento.
Adicionalmente, demandou à Corte que estabelecesse uma definição oficial sobre o que é ser lésbica, de modo a excluir mulheres trans de desejarem e amarem outras mulheres. Espantosamente, a justiça britânica acatou essa demanda absurda, estabelecendo que: ‘uma lésbica deve ser uma mulher AFAB (Assigned Female at Birth, ou seja, designada mulher ao nascer) que tenha orientação sexual por – ou sinta atração por – outras mulheres AFAB’. O Tribunal conclui ainda que o termo “mulher” não inclui mulheres trans, pois isso esvaziaria o “conceito de orientação sexual” afetando, indevidamente, o reconhecimento das lésbicas como grupo específico.
Para fundamentar esse argumento, a decisão cita análises e dados fornecidos por grupos abertamente antitrans, como a Aliança LGB e o Projeto Lésbico (instituições transfóbicas do Reino Unido). Sua tese é que o reconhecimento de mulheres trans teria um “efeito inibidor” nos espaços exclusivos para lésbicas cis. Vale mencionar que a maioria das lésbicas rejeita essa alegação.
Na prática, a partir de agora, no Reino Unido, mulheres trans podem ser legalmente excluídas de espaços de mulheres, como abrigos para vítimas de violência de gênero, vestiários, banheiros públicos ou prisões.
Mesmo aquelas que possuem um Certificado de Reconhecimento de Gênero — o documento oficial que reconhece sua identidade — continuarão sendo legalmente consideradas como se fossem “homens”, com todos os riscos que isso representa para suas vidas. Vão ser obrigadas a usar banheiros onde estão sujeitas a agressões, ou diretamente proibidas de participar de atividades que são parte do direito a uma vida plena.
E, como sempre acontece, essa violência legal atingirá de forma ainda mais cruel quem já habita os espaços de exclusão: mulheres trans negras, imigrantes, de baixa renda, sem apoio social, as mais vulneráveis, as mais desfavorecidas, as mais ignoradas. Trata-se de uma decisão retrógrada que instrumentaliza discursos feministas para reforçar o controle e a vigilância sobre corpos dissidentes, ao invés de questionar as estruturas de poder que oprimem todas as mulheres.
Esse cenário evidencia que não são apenas o Reino Unido ou os Estados Unidos enviaram um sinal perigoso para o mundo: o de que é possível retroceder, excluir e violar direitos sob o disfarce de legalidade.
Ao legitimar essas práticas, acenam diretamente para movimentos autoritários e fascistas ao redor do planeta, oferecendo a eles a chancela simbólica de que podem fazer o mesmo — como tem acontecido na Hungria, Rússia, Argentina, Paraguai, Guatemala.
Estamos frente a um desastroso efeito dominó, onde o retrocesso de um se converte em justificativa e incentivo para o retrocesso de muitos, normaliza a perseguição e a exclusão de pessoas trans e de todas as existências que desafiam a ordem neoliberal, patriarcal e cisnormativa.
Essa concepção essencialista de gênero, genitalista e reducionista, que combina doutrinas cristãs muito antiga e parâmetros biológicos do século 19 também foi um traço dos regimes fascistas do passado que perseguiram e eliminaram, impondo às sociedades um modelo patriarcal e normativo de mulheridade.
Em contraste, os feminismos contemporâneos vêm desde muito interrogado a lógica dominante que determina o que é uma mulher, rompendo com pseudoteorias biologizantes – que assim como as pseudoteorias raciais – cristalizam a identidade feminina em parâmetros essencialistas e ignoram a complexidade das experiências de gênero.
Agora, imaginemos se, em algum momento, grupos LGBTIfóbicos, neofascistas e fundamentalistas religiosos decidirem ampliar o escopo de aplicação do raciocínio que se tornou jurisprudência no Reino Unido? Contra quem vai se abater a próxima acusação de serem pessoas perigosas que ameaçam a segurança de outros e retiram seus direitos? Não é impossível pensar que poderia ser qualquer pessoa que não se encaixe no modelo que cabe na categoria dos “iguais”. E por qual motivo? Na prática, isso pouco importa.
O ponto é que a razão, o argumento, o motivo — o seu, o meu — jamais será relevante. Porque, lamentavelmente, a abjeção e o ódio tendem a prevalecer. Primeiro, há o ódio, puro e simples. Só depois essas forças constroem uma “teoria” e produzem informações ditas plausíveis, moldam argumentos que permitem incitar camadas profundas de malícia, exclusão e violência. É assim que o ódio opera: disfarçado de princípio, mas alimentado por medo e intolerância. E hoje, por efeito da ascensão da extrema direita ao redor do mundo, o ódio e a violência institucional e social são cada vez mais explícitos.
Há muito tempo abdiquei da vontade de tentar entender as razões das pessoas transfóbicas. A verdade é que elas não atuam a partir de “razões”. Guardam rancor e ódio em tesouros e deles se alimentam. Hoje, direcionam esse ódio contra pessoas trans; amanhã, contra outros corpos considerados indesejáveis — pessoas com deficiência, migrantes, refugiados, praticantes de religiões de matriz africana, e qualquer um que fuja da norma imposta. Normas essas que, vale lembrar, já foram legitimadas pelos mesmos tribunais que autorizaram a escravidão, a perseguição de mulheres acusadas de bruxaria.
O mais assustador é perceber que as mulheres que hoje atacam pessoas trans estão abertamente alinhadas às políticas antigênero da extrema direita, a Trump, a Putin e ao bolsonarismo, amanhã podem voltar-se contra lésbicas, contra mulheres negras, feministas transinclusivas, a justiça reprodutiva, prostitutas, as pessoas que estudam de gênero e quem mais contestar o essencialismo ortodoxo em que se baseia sua política. É um ciclo perverso, movido pelo mesmo ódio disfarçado de argumento, e para mim isso é insano, cruel e profundamente abominável.
Apesar da vitória judicial no Reino Unido, da cruzada antitrans do governo Trump, das tentativas de Milei de abolir a lei de identidade de gênero na Argentina, dos graves recuos que vivemos no Brasil, pessoas trans não deixarão de existir ou ocupar espaços na sociedade. Os que hoje defendem a segregação racial, o genocídio indígena, as políticas eugenistas e fascistas, as proibições do casamento entre pessoas do mesmo gênero serão lembrados não como protetores da tradição, mas como relíquias de uma era intolerante — e o mesmo destino aguarda as vozes mais veementes do feminismos transfóbicos.
Embora dados abrangentes sejam limitados, números recentes dos Estados Unidos mostram que 2024 viu um dos maiores aumentos na identificação LGBTQIA+ da história recente. No Reino Unido, as comunidades LGBTQIA+ apoiam esmagadoramente os direitos das pessoas trans. Uma pesquisa da YouGov de 2023 descobriu que apenas 8% das pessoas cisgêneras lésbicas, gays e bissexuais tinham opiniões negativas sobre os direitos trans, enquanto 75% expressaram apoio. Ou seja, as pessoas transgêneras não vão voltar para o armário pois à medida que a visibilidade trans se amplia o mesmo acontece com seu reconhecimento pelas sociedades.
Na prática, o movimento antitrans nunca se tratou de questões como políticas públicas sobre banheiros ou esportes juvenis, como muitas vezes é argumentado. Trata-se, na verdade, de uma reação de grupos que sentem o mundo mudando sob seus olhos e se incomodam profundamente com isso. Elas foram criadas em um contexto onde a crueldade contra pessoas trans era normalizada, e agora se ressentem dessa evolução social. Esses grupos, especialmente as feministas transfóbicas, veem a plena igualdade de direitos das pessoas trans como uma ameaça direta ao que consideram sua cultura e suas normas, temendo perder privilégios e o controle sobre a narrativa estabelecida que sempre marginalizou essas identidades.
Para compreender o impacto da agenda transfóbica, é essencial observar o que está em jogo: estamos falando não apenas de pessoas trans, mas da própria ideia de feminismos e dos direitos humanos, da luta por uma sociedade diversa e justa.
Se a sociedade permitir que esses ataques se concretizem e sejam ampliados, o risco é o retrocesso em outras áreas também, prejudicando outras minorias sociais e de gênero.
No fundo, o que está sendo buscado é legitimar ações punitivas e excludentes contra o avanço da cidadania de pessoas trans, distorcendo a luta por igualdade e transformando-a em uma ameaça falsa.
A confluência entre os grupos de mulheres cisgêneras transfóbicas, feministas ou não, e figuras ultraconservadoras e neofascistas em torno a uma pauta ampla de violações de direitos humanos está criando um cenário de retrocesso político e social significativo no mundo e no Brasil. Reconhecer e denunciar essas dinâmicas e responder a elas de maneira eficaz, é uma responsabilidade coletiva que deve ser assumida por mulheres cis e trans, feministas ou não. Esse enfrentamento é essencial para fortalecer respostas comprometidas com os princípios de igualdade, liberdade e justiça para todas as pessoas.
*Este texto tem reflexões a partir das elaborações feitas por Cristina Fallarás e Erin Reed