Sob o papado de Francisco, entre 2013 e 2025, houve avanços simbólicos e institucionais no reconhecimento da dignidade das mulheres e da comunidade LGBTI+. No entanto, esses gestos conviveram com barreiras teológicas estruturais, especialmente na manutenção de uma lógica binária e na oposição aos estudos de gênero. 

​A expressão “ideologia de gênero” tem raízes na Igreja Católica, especificamente no Vaticano. Sua origem remonta às reações da Santa Sé às conferências internacionais da ONU na década de 1990 (quando o termo “gênero” passou a ser oficialmente incorporado a documentos oficiais), soando alarmes acerca das implicações para a doutrina sobre família e sexualidade.

A expressão “ideologia de gênero” foi promovida a partir do catolicismo para desestabilizar questionamentos legítimos sobre papéis de gênero de outra falácia cristã: a da “família natural”.

“Ideologia de gênero” é um instrumento retórico inventado. Não há base científica para tal conceito. O que há é uma tentativa de converter em ameaça aquilo que os estudos de gênero — um campo consolidado nas ciências humanas — propõem como ferramenta de análise crítica de normas sociais detrimentais. Na contramão da produção de conhecimento, a Igreja ressignificou a linguagem acadêmica para “defender a ordem natural” – um eufemismo que camufla estruturas patriarcais violentas e exclusionárias.

​O Papa Francisco abordou a questão em diversas ocasiões, expressando preocupações específicas sobre a chamada “ideologia de gênero”, e ao mesmo tempo demonstrando empatia por sujeitos marginalizados. Abaixo, compartilho uma breve linha do tempo com suas principais declarações, e decisões do Vaticano, relacionadas a mulheres e a comunidade LGBTI+, com foco na ambiguidade entre avanços pastorais e afirmações doutrinárias conservadoras:

2013 – “Quem sou eu para julgar?”

Em seu primeiro ano de papado, Francisco respondeu a uma pergunta da repórter Ilze Scamparini sobre padres homossexuais com uma frase que se tornaria icônica: “Se uma pessoa é gay, busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?” Esse gesto foi amplamente interpretado como uma abertura inédita da Igreja à comunidade LGBTI+.

2015 – Críticas públicas à “ideologia de gênero”

Durante uma viagem à Polônia, o Papa denuncia uma suposta “colonização ideológica” por meio da “ideologia de gênero”: “Hoje, ensinam as crianças nas escolas que podem escolher seu sexo! Isso é contra as coisas naturais.”

2016 – Exortação Apostólica Amoris Laetitia

O Papa afirma que a “ideologia de gênero” esvazia a diferença e a reciprocidade entre homem e mulher, mantendo a crítica ao campo dos estudos de gênero. (Exortação Apostólica é um documento oficial que incentiva a reflexão e motiva a ação pastoral para fortalecer a fé dos membros da Igreja Católica.)

2019 – Mulheres nos Sínodos

Francisco nomeou uma mulher como subsecretária do Sínodo dos Bispos (assembleia convocada e presidida pelo Papa, para aconselhá-lo em questões de doutrina, pastoral e vida eclesial): a freira francesa Nathalie Becquart se torna a primeira com direito a voto.

2020 – Casamento Gay

Francisco manifesta apoio à união civil de pessoas do mesmo sexo em entrevista no documentário Francesco, onde diz: “As pessoas homossexuais têm direito a estar em uma família… O que devemos criar é uma lei de união civil.” Foi a primeira vez que um Papa se posicionou abertamente a favor de uniões civis para casais do mesmo sexo.

2021 – Mulheres nos Ministérios, erro interpretativo sobre teoria e ideologia de gênero

Em janeiro, com o Motu proprio Spiritus Domini (documento papal que expressa a vontade direta do Papa, usado para questões jurídicas ou administrativas, com força de lei), o Papa altera o Código de Direito Canônico para permitir a mulheres funções litúrgicas antes reservadas a homens, instituídas nos ministérios de Leitoras e Acólitas (funções litúrgicas que podem ser exercidas por leigos).

Em entrevista publicada pela revista espanhola Vida Nueva em setembro, Francisco comentou:​ “A ideologia de gênero […] é perigosa porque é abstrata em relação à vida concreta de uma pessoa, como se uma pessoa pudesse decidir abstratamente à sua vontade se e quando será um homem ou uma mulher.” Ele diferenciou essa ideologia da questão homossexual, destacando a necessidade de um acompanhamento pastoral individualizado.

2023 – Contradições: desmasculinização da Igreja, a falácia da “ideologia de gênero”, e a declaração Fiducia Supplican

Em entrevista ao jornal argentino La Nación em março, Francisco declarou: “A ideologia de gênero, neste momento, é uma das colonizações ideológicas mais perigosas. Vai além da esfera sexual. […] Porque dilui as diferenças.”​

Durante uma audiência com a Comissão Teológica Internacional em novembro do mesmo ano, afirmou que ​“A Igreja é mulher. E um dos grandes pecados que cometemos é ‘masculinizar’ a Igreja. Devemos desmasculinizá-la e fazê-lo a partir da teologia.” (Além disso, no prefácio de um livro dedicado ao tema lançado no ano seguinte, Francisco reiterou: ser  necessário “…ouvir-se reciprocamente para ‘desmasculinizar’ a Igreja, porque a Igreja é uma comunhão de homens e mulheres que partilham a mesma fé e a mesma dignidade batismal.”).

Ainda em 2023, em 18 de dezembro, a declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé do Vaticano Fiducia Supplicans foi publicada, autorizando padres a abençoar casais em uniões “irregulares”, incluindo casais divorciados e homoafetivos, desde que essas bênçãos não sejam confundidas com ritos matrimoniais. Francisco disse: “A bênção não legitima uma situação, mas acolhe as pessoas.”

2024 – Publicação da declaração Dignitas Infinita

O Vaticano reafirmou sua oposição à “teoria de gênero” e a procedimentos de redesignação de sexo, alegando que tais práticas atentam contra a “dignidade humana”. Em 1º de março, durante a conferência “Homem-Mulher, imagem de Deus. Por uma antropologia das vocações”, no Vaticano, o Papa afirmou: “Hoje o perigo mais feio é a ideologia de gênero, que anula as diferenças. […] Cancelar a diferença é cancelar a humanidade.” O Papa descreveu a teoria de gênero como uma “ideologia horrenda de nossos tempos, que anula as diferenças e torna tudo igual.”

2025 – Francisco reforça acolhimento e inclusão

Em entrevista à CBS, o Papa afirmou que a Igreja deve acolher todos: “Se a Igreja coloca uma alfândega na sua porta, ela deixa de ser a Igreja de Cristo.” A reafirmação doutrinária insiste que todos devem ser abençoados, independentemente da identidade sexual ou conjugal.

​O conceito de “ideologia de gênero” é amplamente reconhecido por estudiosos como uma construção discursiva originada no seio da Igreja Católica em resposta aos avanços dos movimentos feministas e LGBTI+.

O pesquisador Lucas Bulgarelli se dedicou a analisar criticamente essa construção e suas implicações sociais e políticas, e destaca que essa retórica foi eficaz em criar um “pânico moral” que transcende as fronteiras religiosas, sendo adotada também por grupos evangélicos e políticos conservadores. 

Essa aliança resultou na disseminação de campanhas antigênero, que impactam diretamente a formulação de políticas públicas e o ambiente educacional. As campanhas contra a “ideologia de gênero” têm consequências negativas, especialmente na identificação e prevenção de abusos sexuais contra menores. Ao cercear discussões sobre sexualidade e gênero, reduz-se as possibilidades de reconhecimento e denúncias de violência.

Já o conceito de gênero é uma ferramenta analítica, desenvolvida pelas ciências humanas para compreender fenômenos relacionados a identidades e papéis sociais. Contrariamente à narrativa de que gênero seria uma “ideologia”, ele enfatiza que se trata de um campo legítimo de estudo científico, essencial para a promoção de políticas públicas inclusivas e equitativas. 

A ambiguidade do Papa Francisco não é um desvio pontual. Ela revela a estratégia cuidadosamente calibrada de uma Igreja em transição forçada, entre o dever de manter sua autoridade doutrinal e a pressão social por inclusão.

É nessa tensão que se delineia o paradoxo: um Papa que se dispõe ao diálogo, mas reafirma dogmas que patologizam existências diversas. Seus gestos sussurravam esperança, porém acolhiam com uma mão usando a outra para reforçar normas excludentes.

Ao denunciar que a “ideologia de gênero” cancela a diferença entre homem e mulher, o Papa não está celebrando a diversidade — está, na verdade, reiterando uma hierarquia. O “masculino” e o “feminino” são, no magistério católico, categorias ontológicas e complementares, não construções sociais sujeitas à crítica. É por isso que, mesmo quando acolhia, Francisco o fazia com reservas: aceita-se a pessoa LGBTI+ desde que ela não reivindique legitimidade para seu modo de viver o gênero ou a sexualidade. 

Aceita-se a mulher, desde que ela não queira presidir a eucaristia. Essa postura é particularmente eficaz porque opera no campo do afeto: Francisco não é um inquisidor — é carismático, misericordioso, “pop”. Mas não é necessário ser brutal para reforçar exclusões. A violência simbólica que recusa à mulher o acesso ao sacerdócio e à pessoa trans a dignidade de seu corpo opera de forma sutil, mas contundente.

Reconheço a complexidade de disputas internas em instituições milenares. Mas, como feminista, não faço vistas grossas a acenos que mantêm as estruturas intactas.

Não basta dizer “quem sou eu para julgar?” se, na sequência, se reforça um juízo teológico sobre o corpo e a identidade das pessoas. A Igreja pode e deve se transformar, mas isso exige mais do que compaixão seletiva. Exige disposição para rever fundamentos que sustentam desigualdades.

A crítica ao conceito de “ideologia de gênero” não é apenas defesa epistemológica — é defesa de vidas. Vidas que são empurradas para as margens quando não cabem na moral oficial. Vidas que não podem esperar que os gestos simbólicos de uma instituição se tornem ações concretas de justiça. Vidas que têm pressa porque viver já é, para muitas, um ato de resistência. 

Que possamos, então, desmascarar a retórica da acolhida sem ruptura. Que possamos reconhecer o que há de político nas bênçãos concedidas e, sobretudo, nas que são negadas. Que possamos continuar exigindo — dentro e fora da Igreja — aquilo que o discurso da misericórdia, por si só, não garante: igualdade apesar das diferenças.

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  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

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