A propósito da matéria do Catarinas para a qual contribuí analisando a conduta assediadora do vereador Marquinhos contra a vereadora Carla Ayres, em Florianópolis (SC), gostaria de aprofundar algumas reflexões de natureza dogmático penal que me parecem urgentes.

Sem dúvida alguma, como muito bem mostram as cenas registradas no plenário no exato momento em que a vereadora é interpelada pelo colega de parlamento, a conduta configura crime de importunação sexual, nos termos do que está previsto no artigo 215-A do Código Penal Brasileiro.

Mas, observem que o dispositivo legal prevê como criminosa a conduta de quem “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”.

Com base no tipo, seguramente, também não tenho dúvidas, de que não faltarão juristas a dizer ter faltado ao agressor o ânimo de “satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”.

Imagino, inclusive, que o farão baseados em uma interpretação “clássica”, mas, digo eu, limitada, de que lascívia significa a propensão para a luxúria e/ou uma expressão de sensualidade exagerada ou de lubricidade.

E suponho, enfim, que entenderão que “embora reprovável e blá-blá-blá” o ato não constitui crime.

Não, não, não. Vamos pensar juntas e juntes!

A pré-compreensão de que o “prazer masculino” vincula-se necessariamente ao falo é algo que precisa ser superado.

Há um gozo, não somente do agressor, mas dos que o cercam e riem do ocorrido, ao ver uma mulher submetida e constrangida com atos ligados ao seu corpo.

Entre os homens um abraço, ainda que não querido e não consentido – e, principalmente, em um espaço público de poder, em absoluta regra significa o reforço da masculinidade pelo apoio mútuo. Daí porque atos como esse ocorrem (se ocorrem) são capazes de provocar risos de satisfação. 

Já em relação às mulheres esse mesmo ato, igualmente gerador de risos (dos demais homens que o presenciam!), o mesmo ato opera como um instrumento de submissão pela vexação da vítima e pela pretensa superioridade do agressor.

A interpretação do que é lascívia trata-se, portanto, de entender o que é poder e a satisfação que o exercer em relação ao corpo de uma mulher gera no agressor.

O ato praticado contra a vereadora Carla tem, em seu âmago, o mesmo mote do estupro utilizado seja como “arma” em situação de guerras, seja como um mecanismo de tortura de opositoras políticas.

O prazer, o gozo, ou seja, a lascívia do militar na guerra ou do torturador que estupra uma “inimiga” ou “militante de esquerda” está no poder que exercem naquele momento em que a destitui de sua condição de nacional ou de oponente política.

A satisfação está em exercer e reafirmar seu poder desempoderando-a. Mostrando a ela que nada, absolutamente nada é mais seu. Nem seu corpo, nem seu querer, nem seu consentir, nem seu prazer.

De igual modo, o prazer, o gozo, ou seja, a lascívia de um parlamentar que abraça, beija, cheira o pescoço ou passa a mão pelo corpo de uma colega é o de vê-la diminuída, acuada… De vê-la desempoderada.

Em síntese, para bem interpretar o tipo penal é preciso desconstruir as bases doutrinarias e jurisprudenciais de que se valem os homens, em defesa dos homens.

Somente sob esta perspectiva, que nada mais é do que um avanço civilizatório, é que se poderá compreender que nunca é só uma brincadeira.

Foi crime, sim!

Solidariedade à vereadora Carla Ayres!

Foi crime, sim! Em solidariedade à vereadora Carla Ayres!

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  • Soraia Mendes

    Soraia Mendes é jurista, doutora em Direito, Estado e Constituição com pós-doutorado em Teorias Jurídicas Contemporâneas...

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