Quando falamos da intersecção entre saúde e feminismo, provavelmente seja a questão do aborto a que venha à sua mente – uma luta histórica e urgente para a garantia do direito à vida, autodeterminação e redução das desigualdades de gênero. Porém, gostaria de argumentar que a alienação, a falta de autonomia e agência para decidir sobre nossos próprios corpos estendem-se e imbricam-se por diferentes esferas de nossa saúde sexual e reprodutiva, a depender de raça, classe e gênero. 

A pandemia da Covid-19 escancarou a crise científica da medicina, dominada por conflitos de interesse econômicos e políticos, que são ainda mais gritantes na ginecologia e obstetrícia, áreas nas quais persistem práticas comprovadamente danosas.

A assistência à saúde de mulheres e pessoas com útero é marcada pela falta de respeito às evidências científicas, por gargalos de entendimento sobre nossa fisiologia e por inadequada comunicação sobre os riscos dos inúmeros procedimentos realizados sobre nossos corpos. 

Desde muito cedo, somos orientadas a uma vigilância que mais se aproxima do controle do que de cuidado. Cauterização de “feridas” do colo do útero que são fisiológicas e não demandariam qualquer procedimento; recomendação para o uso de hormônios para “tratar” condições clínicas que exigiriam investigação adequada, como síndrome dos ovários policísticos e endometriose, por exemplo; falta de acesso a opções para contracepção segura e eficaz;  realização de exames “de rotina” cujos benefícios não parecem sobrepesar seus riscos; perpetuação de procedimentos obsoletos, como a curetagem, quando poderíamos resolver abortos incompletos e retidos com misoprostol, aspiração intrauterina ou mesmo de maneira expectante; e partos atendidos de forma medicalizada, agregando risco a um evento na grade maioria das vezes fisiológico.

A ginecologia dita “moderna” nasce com James Marion Sims (1813-1883), médico estadunidense que desenvolveu várias técnicas cirúrgicas, como a histerectomia e a correção de fístulas, experimentando sobre o corpo de mulheres escravizadas. Um passado racista que se evidencia no presente quando mulheres negras recebem cuidado inferior ao preconizado, quando têm menor acesso à analgesia no parto, quando sofrem esterilização compulsória, quando não conseguem acessar serviços de aborto legal, quando são mais criminalizadas pela realização de abortos inseguros porque ilegais, quando morrem mais de parto e aborto. 

O preconceito se estende diante de sexualidades e identidades que não se conformam à cis-heteronormatividade monogâmica e voltada à reprodução que fundamenta os discursos e “cuidados” da ginecologia. “Qual método contraceptivo você usa?” é um jeito comum de se começar uma consulta sem que ao menos se pergunte de antemão qual a orientação sexual da pessoa.

Pessoas transgênero têm ainda mais dificuldade em encontrar cuidado adequado no que se refere à comunicação e uso adequado de tecnologias, o que acaba as afastando dos serviços de saúde.  

É mais do que hora de entendermos que profissionais de saúde são prestadores de serviço e não entidades divinas diante de quem silenciamos e dizemos amém. Profissionais de saúde deveriam agir como tradutores de evidência científica e fisiologia, colocando-se numa relação horizontal e auxiliando processos de conhecimento de si.   

Traduzido para muitas línguas, Our bodies ourselves teve sua primeira publicação em 1970.

Mas, paternalismo e moralismo são queixas antigas que desencadearam importantes movimentos dentro da saúde.  O self-help movement feminista das décadas de 1960 e 1970 pretendia certa insubordinação e inversão de hierarquia, colocando as interessadas na construção do conhecimento sobre seus corpos, deu origem ao primeiro livro sobre saúde escrito por mulheres e profissionais de saúde parceiras – Our bodies ourselves – traduzido para muitas línguas, e que em breve estará disponível em português. No Brasil, o PAISM também pretendia romper com a lógica de saúde das mulheres voltada exclusivamente à reprodução. Grupos como Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, SOS Corpo e Curumim no Brasil buscam há décadas construir reflexões e críticas sobre a atenção à saúde de mulheres e pessoas com útero.

Precisamos questionar o modelo de atenção comprado pela classe média brasileira, que tem o/a ginecologista como principal provedor/ra de cuidado, com consultas anuais. Não existe paralelo dessa prática em países socialmente desenvolvidos com sistemas de saúde públicos como o nosso. A atenção a mulheres e pessoas com útero deveria se dar prioritariamente na atenção primária pela enfermagem e medicina de família, com encaminhamentos a ginecologistas e suas subespecialidades – mastologistas, cirurgiões, entre outros, quando necessário. A recomendação de visitas anuais carece de evidência que corrobore seu benefício e evidencia, na verdade, o conflito de interesse da lógica da assistência privada à saúde. Exames como preventivo ou papanicolau devem ser coletados a cada três anos depois de dois exames consecutivos negativos e exames de imagem devem ser solicitados conforme demanda clínica ou avaliação de risco individual e não anualmente. 

 A manutenção da assistência à saúde sexual e reprodutiva exclusivamente nas mãos de ginecologistas e obstetras é parte importante dos desafios que enfrentamos.

A resistência a oferta de métodos contraceptivos de longa ação sabidamente eficientes no enfrentamento às gestações não planejadas deveria ser pensada com a ampliação de profissionais capacitados na inserção de DIU nas unidades básicas de saúde, como a enfermagem – modelo exitoso em diversos países, que enfrenta resistência da corporação médica em municípios brasileiros nos quais tenta-se implementá-lo.

A atenção ao parto precisa de novos cenários como centros de parto normal (e abortamento?) atendidos por enfermagem obstétrica, obstetrizes e parteiras com profissionais médicos de apoio em centros hospitalares. Abortos previstos em lei, para que estejam acessíveis no vasto território brasileiro, precisam contar com telemedicina e uso de medicações providas por profissionais de saúde treinados que não só ginecologistas. É imprescindível que centros de saúde estejam em contato íntimo com escolas nas quais possam contribuir para processos educativos relacionados às sexualidades e ao cuidado de si. 

Além de instituições formais, precisamos da politização de grupos de ginecologia natural, tão difundidos no Brasil entre as camadas médias urbanas, para que não reproduzam ideias essencialistas e dogmáticas. É urgente pensar uma ginecologia política e autônoma que dialogue com conhecimentos tradicionais e diferentes racionalidades de cuidado e com os serviços de saúde a partir de um SUS forte. É preciso pensar não só a integralidade, mas a indissociabilidade das diferentes frentes da saúde reprodutiva.

Diante de tantos desafios, não basta mais reclamar entre os seus e sentir muito ter sofrido humilhações, violências e cuidado inferior ao esperado. Para além de repensar o modelo de atenção, a gente precisa aprender a usar os mecanismos de denúncia dos quais dispomos. É inadmissível que aceitemos esse acordo que nos é tão desfavorável. Olhar para esse fenômeno de maneira mais abrangente e integrada pode nos ajudar a compreender as dinâmicas de poder que permitem a perpetuação de situações inaceitáveis, unificar pautas e traçar estratégias para a construção de políticas públicas que respondam às nossas demandas, respeitando nossas vidas e diversidades.

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  • Halana Faria

    Mãe. Feminista. Médica ginecologista e educadora em saúde. Formada pela Universidade Federal de Santa Catarina com Mestr...

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