Enegrecer o feminismo é enegrecer também o Fazendo Gênero
Aproveitei a lacuna entre os horários que tinha disponível no auxílio à monitoria, na última terça-feira (1), para acompanhar as atividades que ocorriam na UFSC, no 13º Mundo de Mulheres e Fazendo Gênero 11. Com a escassez de tempo que disponho atualmente, me agarrei fortemente à programação procurando otimizar a minha empreitada de, em uma tarde, absorver o máximo possível, especialmente das intelectuais negras que aqui estão.
Comecei então pela Tenda Mundo de Mulheres, acompanhando o sarau Vozes Negras, que peguei já em seu final, lá pelas 13h, mas foi possível perceber a riqueza do momento: vozes negras autônomas recitando, cantando, falando, emocionando com o ecoar de cada palavra proferida, pois não se tratava apenas da relação entre emissor e receptor da mensagem dos que estavam ali presentes, mas de todas as vidas negras.
No mesmo local, na sequência, surgiu uma comitiva de mulheres quilombolas para debaterem as suas lutas e trajetórias, apresentando as comunidades de quilombo de Santa Catarina em conjunto com o Movimento Negro Unificado (MNU). As comunidades remanescentes de quilombo como Invernada dos Negros (Campos Novos-SC), Comunidade da Toca (Paulo Lopes-SC), Comunidade da Aldeia e Morro do Fortunato (Garopaba-SC), Comunidade Vidal Martins (Floripa-SC) e tantas outras, não só de Santa Catarina, mas de todo o Brasil, se fizeram presentes por meio daquelas Lideranças. Fiquei ali, já com o coração transbordando e com uma sensação de alívio por ter aquelas narrativas presentes num evento dessa magnitude, pensava: Agora o mundo saberá que no sul do Brasil temos Quilombos, população negra e muita resistência dessas mulheres e comunidades invisibilizadas pelo discurso do “Estado Branco” que Santa Catarina ostenta.
Corri para o auditório do Centro Socioeconômico (CSE) para acompanhar o Fórum do Eixo Raça e Etnia, a mesa era coordenada pela Cristiane Mare, nos olhamos como quem diz “estamos juntas”. Ouvi atentamente as considerações feitas pelas debatedoras Tsitsina Xavante (APIB), Sandra Maria Job e Joisielli (UFPA), Valdecir Nascimento (AMNB) e Ana Beatriz da Silva (UNIRIO) e foi muito simbólico ter uma mesa composta por mulheres negras, indígenas e ribeirinhas nas dependências da UFSC, especialmente no CSE, onde presenciei diversos eventos, debates, seminários, congressos, colóquios que, nem de longe, se preocuparam em abordar as pautas de raça e gênero. O auditório era um espetáculo à parte, pois ali estavam grandes intelectuais negras, cujas trajetórias são fontes de inspiração para a juventude negra. Naquele momento a significação de ancestralidade se estabeleceu: pensar nas que se foram, nas que aqui estão e nas que virão permeou todo o debate. A todo o tempo, a tradição contestou a epistemologia científica e deu ênfase aos saberes periféricos. Bem como o “canto da sereia” das universidades que seduzem as mulheres negras com promessas de “chegar lá” por meio dos seus diplomas, mas esse “lá” nunca chega, apontou a Valdecir.
Ouvimos as mais velhas, as mais novas e, por fim, fizemos os encaminhamentos para, também, compor a construção da carta da plenária final do evento seguindo as orientações de quem, desde a década de 1980, já está na luta e conhece todos esses ritos. Nos encaminhamentos denúncias sobre situação de vulnerabilidade da população de mulheres do Norte do país, sobre a ameaça de redução das Cotas na UFRGS e na UFSC e sobre a ausência de Negras na coordenação do Fazendo Gênero.
Após o fórum, olhei para o relógio e fui para o auditório Garapuvu, não podia correr o risco de perder a mesa redonda Mulheres Negras, resistência e interseccionalidade coordenada pela Joana Célia dos Passos (UFSC), onde as debatedoras era Lucia Xavier (Crioula), Cláudia Pons Cardoso (UNEB), Nilma Lino Gomes (UFMG) e Janja Araújo (NEIM/UFBA).
Vale, antes de mais nada explicar que conceito de interseccionalidade, de acordo com Fernanda Lopes e Jurema Werneck (2000, p.18) foi elaborado por Kimberlé Crenshaw no final da década de 1980 com o objetivo de elucidar as maneiras como raça e gênero interagem modelando as diversas experiências. Sendo assim, a interseccionalidade, quando utilizada como ferramenta de análise, permite visibilizar as complexidades das vivências (LOPES; WERNECK, 2000, p.18).
Quando as debatedoras iniciaram suas falas o auditório já estava apinhado de gente e pintado de azeviche. “Pintado de povo” afirmou uma das mulheres negras da plateia, quando o microfone foi aberto pra perguntas. Essa era a segunda vez que presenciei o auditório do centro de eventos da UFSC pintado de povo, a primeira foi no III Encontro Nacional de Estudantes Indígenas que ocorreu em 2015 quando a universidade foi pintada de urucum. Nesses momentos, fica explícito o quão hegemonicamente branca ainda são as universidades públicas no país.
Nilma Lino trouxe em sua fala a importância de uma interseccionalidade emancipadora e questionou: Interseccionalizar como? Com quem? Para quem? Considerar as categorias sociais e as formas como as analisamos e, experienciamos, sem perder de vista o nosso compromisso com a ancestralidade, com as nossas irmãs negras e negros.
Já Cláudia Pons Cardoso abordou os alarmantes indicadores do feminicídio, ranking do qual as mulheres negras ocupam seu triste topo, lembrando o recente caso da ativista e intelectual negra Helen Moreira, morta a facadas dentro da sua casa, cujo principal suspeito é o marido.
A brutalidade dos casos de feminicídio e sua flagrante expansão apontam para o descaso da sociedade diante do tombamento de nossos corpos. Com a malemolência concedida pela vida e pela capoeira de Angola, Jana Araújo nos trouxe as suas experiências e recentes pesquisas, onde o fio condutor de sua narrativa foi apontar para a importância da luta antirracista no crescimento das produções de pesquisas acadêmicas e científicas cujas pautas do povo preto ganham centralidade. Mas ela não sairia dali sem antes compartilhar, um pouco, a experiência com o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Mulher (NEIM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a recente presença de Angela Davis como conferencista do evento Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o racismo realizado no auditório da reitoria da UFBA (25/07).
Os questionamentos e provocações ficaram por conta da Lucia Xavier que, brilhantemente, foi cutucando a todas com suas perguntas inquietantes que tinham a intenção de nos direcionar para um pensamento crítico e constantemente questionador: “Como fazer para que categorias sobre nós sejam questionadas?”, essa pergunta proferida por Lucia ainda reverbera em minha existência.
Contudo, um dos pontos altos de toda a mesa-redonda que, inclusive, levantou a plateia em aplausos entusiasmados e chuvas de gritos eufóricos veio quando a Professora Dra Joselina da Silvia (UFC) compartilhou com todas a sua percepção sobre o evento. Ela afirmou que aquele era, de fato, o Fazendo Gênero com maior participação de negras, mas na cerimônia de abertura ficou desconfortável ao perceber que a Coordenação do evento carecia de representação negra. E, acionando a proposição de Sueli Carneiro (2011) sobre enegrecer o feminismo, disparou: Que tal enegrecer o Fazendo Gênero? Exigimos 50% de participação na organização das próximas edições.
Naquele espaço, tanto na composição da mesa redonda quanto na plateia, estava todo o meu referencial teórico e muitas outras possibilidades de descobertas epistêmicas. Mulheres negras que, em momento algum, falavam no singular. As intenções eram coletivas, nenhuma a menos e a proposta de pintar de povo (azeviche e urucum) o Fazendo Gênero me fez sair com um sorriso bobo nas faces.
Adupé!
Referências
WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimento de mulheres negras e estratégias políticas contra o racismo e o sexismo. In. Mulheres Negras Um Olhar Sobre as Lutas Sociais. 2015;
CARNEIRO. S. (2011). Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil. Ed. Selo Negro. São Paulo;